Renan Inquérito foi para a ilha socialista gravar um videoclipe com o rapper Cepero. Tudo no improviso, tudo entre companheiros. Aqui ele conta a experiência


Chegar em Cuba foi mágico. Ver os 50 tons de verde e azul daquele mar caribenho foi arrebatador. Num primeiro momento fiquei vislumbrado ao ver aqueles carros antigos circulando, uma atmosfera nostálgica no ar, uma mistura de moderno e de antigo, algo muito singular. Mas como eu não estava muito pra turista e tinha uma missão fui logo acionando meus contatos. Comprei uma cartão telefônico e liguei para Cepero, rapper do grupo La Invaxión com quem eu gravaria um som no dia seguinte. Três meses antes estive no Uruguai, lá conheci Mala Bizta, cubano integrante do mesmo grupo de Cepero que se mudara a pouco para Montevidéu. Foi ele quem nos apresentou, fez a ponte.

O encontro ficou marcado para o outro dia, nos encontramos no hotel e Cepero chegou acompanhado de seu parceiro de grupo Black Soul, que também cantaria nessa música. Eu havia produzido a música no Brasil no estúdio Groove Art’s em Campinas com meu mano DJ Duh (Inquérito). Tentei mandar o instrumental com antecedência pela internet para eles irem escrevendo, mas ao chegar soube que eles não haviam conseguido baixá-lo, pois a conexão que conseguiram não permitia. A internet é precária em Cuba.

Mal nos encontramos e já fomos para o estúdio que eles haviam arrumado. Ainda no caminho eu disse: “Precisamos criar um refrão juntos, algo que una Brasil e Cuba, talvez um grito de guerra, algo que misture português e espanhol.” E assim foi fluindo. Quando chegamos no estúdio, o refrão já estava pronto. Foi muito rápido, criamos no caminho. Fiz minha parte em português e eles praticamente reproduziram a mesma coisa em espanhol, o que casou perfeitamente.

Já era tarde, ouvimos o instrumental no repeat trocentas vezes e cada um ia sentindo o groove e escrevendo sua parte. Gravamos a noite toda. O estúdio era no quarto de um amigo: um PC, um microfone e uma acústica improvisada no guarda-roupa. Às 3 horas da madrugada, a música estava terminada. Cada um pegou uma cópia, passamos pro celular e o combinado era tentar ouvir e decorar para gravar o clipe no outro dia. Aliás, no mesmo dia, né? Porque já eram 3 da madrugada rs.

Making of do clipe gravado em Cuba - Fotos: Jéssica Balbino
Making of do clipe gravado em Cuba – Fotos: Jéssica Balbino
Após “dormir” por apenas três ou quatro horas nos encontramos no hotel e partimos para a casa de Mandefro Rosa Pagán, cinegrafista e diretor que já havia filmado outros clipes do La Invaxión e ficou incumbido de fazer o registro de nossa parceria. A primeira pergunta que ele me fez foi se eu tinha alguma ideia de como fazer o clipe. Eu disse que não, pois até poucas horas nem sabia o tema da música e que teríamos apenas um dia para registrar as imagens. Portanto, não haveria roteiro. Queria filmar pelas ruas de Havana, algo bem solto, o que rolar rolou.

Tínhamos pouco tempo, precisávamos de mobilidade, agilidade. Alugamos uma perua Kombi por 50 dólares e o motorista se encarregou de perambular conosco pela cidade em busca de alguns picos pra gravar. Era parar, descer, gravar e ir pro próximo pico. O ritmo foi frenético, alucinante eu diria rs. Logo no meio das gravações já começamos a perceber algo que iria mudar um pouco os planos…

Como havíamos acabado de gravar a música na madrugada anterior e tivemos pouquíssimo tempo, nenhum de nós tinha tanta familiaridade com a letra, o que travava um pouco as filmagens. A gente errava muito. Resultado: chegamos ao final do dia com menos imagens do que gostaríamos para terminar o clipe. Assim, resolvemos apostar em mais um dia de gravação. Voltamos embora e cada um tratou de escutar exaustivamente a música para que no outro dia o erro não se repetisse, e assim fizemos. Logo na primeira tomada do segundo dia pude notar a diferença, sentir o quanto estávamos afiados, em sintonia. Eu tinha decorado até as partes dos caras, e vice-versa, e aí a gravação rolou com segurança, problema resolvido.

Durante as filmagens, a perua parava em algum ponto da cidade e andávamos um bom trecho a pé, passando por vielas e ruas estreitas, casas, construções históricas, cortiços em ruínas e onde uma brecha se abria a gente gravava. As pessoas eram solícitas, emprestavam a tomada para ligarmos a caixa, nos deixavam usar o banheiro. Uma senhora até emprestou uma poltrona que colocamos no meio da rua pra gravar uma cena do clipe. Só houve um incidente. Gravando no meio da rua, fomos interrompidos por um cidadão que disse que chamaria a polícia se não parássemos. Alegava que não possuíamos autorização. Depois de um breve bate-boca decidimos abortar a missão e ir gravar em outro lugar.

Cepero e Renan Inquérito gravam com um Cadillac conversível, de 1956
Cepero e Renan Inquérito gravam com um Cadillac conversível, de 1956
Em Cuba há muitos carros antigos, uns conservados outros nem tanto. Eu queria muito gravar uma cena em um daqueles conversíveis dos anos 1950, porém sabia que não seria barato, pois o preço de quase tudo na ilha é pareado em euro ou dólar e nós sabemos que o real é bem desvalorizado em relação a essas moedas. Após muita pesquisa conseguimos alugar em uma praça no centro de Havana um Cadillac conversível vermelho, modelo Eldorado, ano 1956. Eu estava louco para dirigir, mas o dono do carro não permitiu. Disse que era o único desse modelo em perfeito estado em toda Cuba, por isso o xodó. Até o rádio funcionava, era incrível. Como a grana só dava pra bancar o aluguel de uma hora tivemos que ser muito rápidos e não podíamos errar. Todas as imagens do carro foram captadas em uma hora apenas. A Kombi ia na frente e o diretor pendurado pela tampa traseira filmava o carro que vinha logo atrás.

No final do segundo dia de filmagem estávamos exaustos, fomos todos para a casa do mano que filmou, fizemos uma vaquinha e demos dinheiro para sua tia que foi ao mercado e comprou frango, batata, refrigerante e cerveja, preparou uma janta e ficamos até tarde ouvindo música brasileira (ele é um grande fã de música brasileira), comendo, bebendo e trocando ideias com o corpo moído e um sentimento de missão cumprida.

O que mais me chamou a atenção nessa passagem por Cuba foi como os rappers de lá criam tanto com tão pouco. Eles se viram, produzem, sem internet, sem equipamentos de ponta, sem muito software, sem muito hardware. Se existe um aplicativo que eles tem é a vontade, a raça! Sem falar na poética das letras dos caras. Faziam umas analogias bem foda. Mesmo sem saber quase nada de espanhol, eu sacava, entendia a profundidade da letra. Depois da experiência desse clipe eu acredito ainda mais no lema do Glauber Rocha. Com uma câmera na mão e uma ideia na cabeça dá pra fazer muita coisa.

* Aqui, o relato da jornalista Jéssica Balbino, que acompanhou Renan Inquérito em Cuba

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