Antes de virar modinha em circuitos mais elitistas, o rapper paulistano Criolo já compunha (há décadas) letras de franca provocação contra gente que pertence a esses mesmos círculos. “Gosta de favelado mais que Nutella/ quanto mais ópio você vai querer?/ uns preferem morrer a ver o preto vencer”, ele provocava mauricinhos e patricinhas em “Sucrilhos”, do álbum “Nó na Orelha”, justamente aquele que faria o músico virar modinha, logo que saiu, no início deste ano.

O tema aqui é a cruel ambiguidade da guerra racial nossa de cada dia. Planta uma pergunta direta no coração do mauricinho que despreza e/ou teme o menino da favela, mas precisa dele para obter sua cota mensal de maconha ou outro brinquedo químico.

“Eu tenho orgulho da minha cor/ do meu cabelo e do meu nariz/ sou assim e sou feliz/ índio, caboclo, cafuzo, crioulo/ sou brasileiro”, dizia na mesma “Sucrilhos”, raspando a pele de brasileiros que tendem a cultivar preconceitos contra nordestinos, negros, índios, mestiços, pardos e não-brancos em geral (e que, de resto, precisam deles para tudo, dos pequenos serviços do dia a dia à construção da casa onde moram).

Criolo é, ele próprio, mestiço: de negro e branco com certeza, talvez de índio com cigano, provavelmente de muçulmano com judeu. Criolo é o retrato do Brasil multirracial que, pela primeira vez na história de seus censos demográficos, acaba de se assumir menos branco do que pardo e/ou negro.

Na sexta-feira passada, Criolo se apresentou no Cine Joia, um novo espaço de shows no bairro paulistano da Liberdade, na região central da cidade. A maioria absoluta do público era branca. Quando muito era mestiça de crioula para branca, e assim deve ser em todas as noites roqueiras daquele espaço.

A plateia era branca e/ou branqueada, mas cantava de cor e em coro os versos que, aparentemente, Criolo fez para agredi-la – ou, sendo mais brando, para despertar sua consciência social e racial – os ingressos não eram caros, o que ajuda a ver que o corte de público costuma ser menos social que racial.

Há até um termo para isso, quando o sequestrado se apaixona pelo sequestrador: síndrome de Estocolmo. Menina rica branca “honesta” cai nas garras de menino pobre preto “bandido”, e logo se dá conta que o cara que a sequestrou não era assim o bicho papão que seus pais pintavam nos contos de fadas.

É fenômeno nada novo, mais comum que chuchu na serra. Cabe aqui até uma inversão desconcertante. Moleques periféricos como Criolo estão mais para sequestrados que para sequestradores. Playboys e playgirls que hoje cantam “eu tenho orgulho da minha cor, do meu cabelo e do meu nariz” e “uns preferem morrer a ver o preto vencer” estão mais para sequestradores que para sequestrados. Afinal, quem sequestrou quem em Estocolmo?

Sempre ando meio desconfiado do pessoal que adora o termo “hype” e ama de paixão sueca a última modinha do momento. Já andei desconfiado com o “hype” em torno de Criolo (escrevi sobre isso). Não me parece atitude honesta revistas e jornais de grande circulação publicarem fotos maquiadas, passadas no Photoshop, com o objetivo de embranquecer gente como Criolo.

Muito comumente há traços de simbiose perversa entre sequestrado e sequestrador, e nenhum de nós escapa de estar num desses dois lados, ou nos dois simultaneamente. Tópico espinhoso: Criolo (não) é vítima da mídia que (não) é vítima de Criolo.

Mas tenho prazer de dar aqui meu braço a torcer em favor de Criolo: lá no Cine Joia, na sexta-feira, o espetáculo mais prazeroso de testemunhar era o do coro rendido à síndrome de Estocolmo, por um cara que de “bandido” não tem nem o mais leve traço.

* Texto publicado originalmente no blog Ultrapop, do Yahoo! Brasil

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5 COMENTÁRIOS

  1. Voc~e foi é, sendo brando, bem rasteiro nessa análise – tanto das músicas e da persona do Criolo quanto do fenômeno de abraçar a cultura periférica ou de massa que nesse 2011 foi mais forte do que nunca.
    Criolo afirmou numa entrevista para o Ferrez que acha ótimo os playboys gostarem de sua música e que se a música servir de união, ótimo. Concordo plenamente com ele. E quem gosta mais de favelado do que Nutella é cientista social, casas bahia e tragédia, não a burguesia (da qual eu e vc e quase todos os colunistas daqui fazemos parte). A crítica é contra as instituições e não um setor da sociedade (porque afinal somos tão poderosos quanto criolo ou qlqr favelado frente à Casas Bahia.

    Fora isso encaro com orgulho o reconhecimento do rap no brasil. acho que todo mundo sempre gostou, sempre mexeu conosco, sempre foi uma paixão, mas era menor. A paixão cresceu, a quantidade de rap que o publico médio (classe A, C ou D) gosta aumentou, embora a quantidade de pessoas que gosta de rap permaneça quase inalterada (mas enfim, isso é uma opiinião, uma análise bem sem fundamento). A coisa é bem maior.
    E por ultimo, não se pode sequestrar um artistas porque artista nenhum pertence a ninguém, nem a classe nem a gravadora. Essa coisa do pertencimento já caiu desde o Oswald pelo menos. É triste ver que aidna tem gente pensando nos termos do século XIX.

  2. Pois é, como o Antônio já citou, quem gosta de favelado mais que Nutella é cientista social, Casas Bahia e tragédia, ou seja um gosta de “estuda-los” e procurar uma solução, o outro gosta das dividas enormes contraídas através de carnês com juros altíssimos e serviços embutidos e não solicitados e por fim, a tragédia, que ronda a vida do “favelado”, citado por Criolo.

  3. Nunca li tanta bobagem sobre o Criolo como essa. Primeiramente, o cara faz o trabalho dele para expor suas vivências e suas idéias, independente de quem seja, branco, negro, rico ou pobre, ele não tem o poder de escolher quem escuta, e isso seria hipocrisia de sua parte. Segundo, o trabalho bem feito tem que ser apreciado, não importa quem escute. Concordo com os movimentos sociais, sou do subúrbio e sinto na pele muitas coisas por aí, porém, uma coisa temos que concordar, não da pra atacar o preconceito, sendo preconceituoso. Tem muito “muleque” boy que não passou o que passei, porém, tem um pensamento diferenciado, sabe do seu lugar e o que os outros passam. Não tem nenhum problema, não! Ninguém é ninguém pra apontar o dedo gordo na cara da outra pessoa, e esse talvez seja o grande erro de alguns movimentos. Eu escuto muito Criolo, acompanho tudo o que envolve ele, escuto ele desde o “Ainda há Tempo” e não aceito um comentário infeliz desse a respeito desse cara que sabe o que é realmente melhor do que eu e você também o que viveu. Quer dizer também, sou da comunidade, “muleque de rua” já passei por muita coisa, sou filho de professor, porém sou branco, e por conta da minha cor da pele independente do pensamento que eu tenho eu não posso ouvir rap, fazer rima, que eu sou chamado de “modinha”? Não existe modinha, o som é pra escutar, livro é pra ler, LÊ E ESCUTA QUEM QUER. Pronto! Para de defender algo atacando o polo contrário, agindo assim, não tem diálogo e nem equilíbrio. Se por na sociedade e manter o pé no chão pra viver sua vida sem atrapalhar ninguém, esse é o segredo. Sem mais aí, espero que tenha mudado esse pensamento que NA MINHA OPINIÃO, é ridículo.

  4. falando dos brancos sendo branco. vc que escreve que o playboy precisa do menino da favela para as drogas, vc nunca usou nenhuma droga?sei…

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