ESPECIAL HIP-HOP. Depois do sucesso de Emicida e Criolo, uma nova leva de rappers apresenta CDs repletos de autoestima e autoconfiança: Dryca Ryzzo, Kamau, Projota (foto), Rashid.
A senha foi dada por Emicida e, em seguida, por Criolo: era tempo de renovação no rap paulista. Nos dois últimos anos, desde que esses dois artistas se atiraram com apetite à conquista de territórios inalcançados pela cultura hip-hop nacional, o terreno sempre fértil foi mais uma vez semeado. Atemporada 2012 é de plena colheita.
Há no mínimo quatro excelentes discos de estreia representando a nova florada rapper: os de Dryca Ryzzo, Kamau (em seu segundo CD), Projota e Rashid. Seus CDs ou mixtapes (como MCs e DJs denominam lançamentos que não consideram trabalhos oficiais, prontos, aptos a receber a alcunha de “álbuns”) vêm se somar a outros títulos recentes de impacto, como MP3 – Música Popular do 3oMundo (2010), de Rael da Rima, e Crônicas da Cidade Cinza (2011), de Ogi. É muita música nova dentro desse gênero de que a cidade de São Paulo se apossou como se fosse seu. É música rap, e de muita qualidade.
O padrão de produção de gravações e videoclipes parece ter se redefinido a partir da estreia de Emicida, com a mixtape Pra Quem Já Mordeu Cachorro a Grito, Até Que Eu Cheguei Longe… (2009), e do lançamento do segundo álbum de Criolo, Nó na Orelha (2011), bastante festejado inclusive na mídia tradicional. Os exemplos de Criolo e Emicida, somados a outros equivalentes nos gêneros sertanejo, pagode, tecnobrega, forró etc, foram fertilizantes para as sementes que estão agora brotando.
Uma das 16 faixas de Não Há Lugar Melhor no Mundo Que o… Nosso Lugar, do jovem Projota, é útil para sintetizar a força deste momento. O título do disco já é bastente eloquente – o rap paulista insinua, nesta frase, que ser paulistano, paulista, brasileiro é melhor que (querer) ser gringo, norte-americano ou coisa que o valha. Ou, ainda que porventura não seja bem assim, isto é o que temos, é o que somos.
Colocado quase ao final do CD de Projota, o rap “Pra Não Dizer Que Não Falei do Ódio”, de evidente referência crítica ao “Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores” (1968) do paraibano Geraldo Vandré, é especialmente eloquente e contundente: “Pra não dizer que eu não falei do ódio/ digo que isso aí não me faz bem, então eu excluí do que minha alma contém/ ainda sinto nojo, sinto pena e raiva de alguém/ mas sei que meu jeito, meu mal, meu defeito fazem com que alguém sinta isso por mim também/ cresci sem mãe, ninguém pode ocupar o lugar/ fechei meu peito e passei sete anos sem chorar/ quando eu chorei foi pra minha alma se lavar/ então me tranquei, me calei, me entreguei e chorei por sete horas sem parar/ hoje o que eu quero é só sorrir”.
Sob o pretexto de falar de ódio, Projota fala de antídotos potentes contra o ódio: riso, choro, afeto, autoconhecimento. Adiante, “Pra Não Dizer Que Não Falei do Ódio” surpreende de novo e afrouxa ainda mais os nós emotivos que antes o rap não ousava tocar: “Mais obras serão construídas/ aprendi com meu pai, que é pedreiro/ e eu brincava com a pá, colher de cimento no barro, assistindo o guerreiro/ carregava tijolo só por diversão ou pra ver o olhar de orgulho daquele negão vindo do Piauí, construindo aqui muito mais do que entulho/ força e coragem pra minha família de sangue e de rua/ da luz da lâmpada e também da luz da lua/ pra quem se identifica, mostra pros amigos e pode dizer que essa é sua, falô?/ já tive ódio demais, hoje eu só busco o amor”.
Ao final da faixa e do CD de Projota, o que poderia ser qualificado como ódio se dissolveu em amor. Não é algo que a geração de Thaíde, DJ Hum ou Racionais MC’s estivessem preparados para dizer ou praticar. Mas hoje é a vida real. Mais uma prova de amor: Projota disponibiliza Não Há Lugar Melhor no Mundo Que o… Nosso Lugar a quem quiser ouvi-lo, para download gratuito. É só chegar e entrar.
Se tomarmos como parâmetros os trabalhos de Projota, Rashid e Kamau, o também jovem Emicida é o homem mais influente do rap paulista atual. Seus discos têm em comum com as três mixtapes e vários singles lançados por ele desde 2009 o apreço por falar de peito aberto sobre a experiência de ser rapper e independente dos circuitos tradicionais da mídia em 2012.
…Entre…, sequência da estreia de Kamau em 2009, brinca com a autorreferência confessional em “Música de Trabalho”. O título é já uma alusão crítica, irônica e certeira aos vícios da antiga indústria fonográfica, na qual as propinas, apelidadas de jabaculê ou jabá, definiam (definem) o que emissoras de rádio e TV iriam (vão) bombar “espontaneamente” em suas paradas: “Eu trabalho no seu horário de lazer, mas é mais fácil dizer que eu não tenho mais o que fazer/ se perguntarem o que eu faço da vida vão dar risada se eu disser que é rima e batida/ e vão pensar que eu sou repentista ou barman/ mas vai pegar bem se eu disser que eu sou artista”.
A partir daí, Kamau ensaia um diálogo bem-humorado com atarantado interlocutor. “Artista?” “É.” “Cantor? Que nem o Cauby?” “Não, senhora, eu faço rap, eu sou MC.” E chega o vibrante refrão desse canto de trabalho (ou work song, como chamavam os caipiras country-folk norte-americanos com que os rappers daqui se comunicam à distância de anos-luz): “Música é meu trabalho, música de trabalho, música dá trabalho, mas cê não tá ligado/ parece fácil pra quem olha de fora, mas o quadro é bem mais pesado (…) tô reclamando, não/ eu faço o que eu gosto, então só agradeço por ser abençoado”.
Então Kamau vai direto ao nervo do assunto, conhecido por brasileiros de diversas profissões que tentam, nestes anos relativamente prósperos de início do século XXI, sair da condição de empregados para a de patrões (de si mesmos, mais que de outros cidadãos): “Difícil ser patrão e funcionário/ é bom não ter horário, mas não ter salário?, hmm/ sem benefícios, sem fundo de garantia, sem plano de saúde nem aposentadoria/ as contas chegam no dia, mas se o cachê atrasa…”.
Segue outro pequeno diálogo, e as conclusões do rap autônomo praticado no modelo artesanal espetacularmente bem-sucedido do Laboratório Fantasma, a produtora independente de Emicida (que, por sinal, abriga, além do próprio dono, trabalhos de Rael da Rima, Ogi e do grupo Mão de Oito). “Trabalha, trabalha, trabalha, nego!”, continua Kamau, exultante, em contexto completamente diferente ao do canto de trabalho “Retirantes” (1976), concebido por Dorival Caymmi para ilustrar a versão televisiva da Rede Globo para o cruel romance Escrava Isaura (1875), de Bernardo Guimarães (“vida de negro é difícil, é difícil como o quê”, cantava Caymmi, num lamento quase conformado com a escravidão).
“Vale a pena?”, pergunta outra voz colocada dentro do rap. O rimador responde: “Até que tem compensado, pago as contas do mês e ainda sobra um trocado/ viajo pra alguns lugares e sou bem recebido/ bem melhor que ser lembrado é não ser esquecido/ lisonjeado me sinto, muito obrigado, se eu fico encabulado não acha que eu tô metido/ (…) nem tudo aqui é paparazzo, glamour, nem toda viagem é tour, tá mais pra expedição/ desbravador com carga de estivador, com carma de sofredo, e a calma que a profissão exige”.
Não deve ser coincidência o fato de a Rede Globo, difusora do ideário escapista “não somos racistas”, namorar as classes médias ascendentes (predominantemente não-brancas) ao som de tecnobrega, kuduro, forró, tecnobrega, pagode e sertanejo, mas não inserir nenhum rapper sequer em suas trilhas atuais.
Outro detalhe pode ajudar a entender o estranhamento entre cultura hip-hop e a mídia de massa tipo Organizações Globo. Mais que nunca, a nova safra de rappers preza pela politização – outra qualidade detestada em silêncio pelos meios tradicionais de comunicação, de TVs a jornais e revistas. Diz Projota, no rap de trabalho “Nós Somos Um Só”, dirigindo-se mais a seus pares na periferia que a quaisquer outros interlocutores: “Somos guerreiros sem greve, sem pausa/ os verdadeiros rebeldes com causa/ nossa força vem da união, você sabe/ então não lute contra mim se existem tantos kassabs por aí”.
Rashid, que apresenta (inclusive para download gratuito) seu Que Assim Seja, também reserva críticas ásperas ao hedonismo e à alienação política como praticados por Globo, Record, SBT, Band etc., e apreciados também por grande parte dos governos de plantão no poder.
É o que o artista testa, por exemplo, a de resto autocrítica e autoamorosa “R.A.P.”: “O rap não tá longe dos consumidores, ele tá longe dos consumidos/ é o terror, é o terror de quem tem que empurrar novela e BBBesteira nos seus ouvidos/ porque quando o Teleton não veio o rap tava lá/ Criança Esperança não veio, o rap tava lá/ quando o pivete não queria ouvir o pai quem é que ele ia escutar?/ se isso fez por nós tudo que a escola não faz/ me deu ideais/ sei que vários caras lá de fora se entupiram de dinheiro e já não pensam mais/ só que os MCs daqui ainda são racionais”.
A devoção pelo grupo de Mano Brown é explícita, mas não impede que Rashid – a exemplo de Emicida – divirja dos mestres quando acha que deve. “Um por amor, dois por amor, três por quando éramos reis/ se foi nós por nós quando éramos reis/ em uma só voz quando éramos reis”, conclama em “Quando Éramos Reis” (dedicada a Muhammad Ali), discordando do “1 por Amor, 2 por Dinheiro” (2002) dos Racionais.
“Eu fui humilde demais, e quase pisaram na minha cabeça”, constata. “Cara feia não é capricho/ sou moleque que faz barulho/ já fui motivo de orgulho, agora a minha cota é dar orgulho”, conclui, mostrando-nos o edifício – de orgulho – que ele e seus colegas de geração estão empenhados em construir.
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