Há tempos a sisudez do rap brasileiro vem sendo relativizada pelos novos artistas, seja pela inclusão de samplers de samba, forró e música romântica à la Roberto Carlos, seja pela disposição em falar de amor, seja pela coragem de se atirar ao hedonismo sem freios ou travas.

No quesito hedonismo, as meninas do hip-hop são mais despojadas que os meninos. Pela primeira vez desde a ascensão do rap brasileiro em meados dos anos 1980, elas saem da toca e se apresentam na boca do palco, e não mais como backing vocals ou figuras secundárias entre dezenas de homens. É É o caso de Karol Conka (criativa desde o nome artístico), Flora Matos (que lançou Flora Matos vs. Stereo Dubs em 2009) e Lurdez da Luz (autora de CD homônimo de 2010).

Neste 2012, é vez de Dryca Rizzo, companheira de palco de Mano Brown e Racionais MC’s, que acaba de debutar com álbum homônimo dançante, moldado numa fusão livre, leve e solta de rap, funk, soul, dance e discothéque. A máxima de que o rap tem de ser duro, pesado, maciço, cai por terra diante do suingue de Dry.

“Ritmo devora como Pac Man/ ladies e gentlemen loucos por jeans/ pros jovens e teens, b-boys e b-girls/ playboy e plebey/ latino e judeu/ chicano, europeu/ africanos e orientais/ pode vim, vem, peça sempre mais/ a música que traz paz, bons ideais”, canta ela, devotada ao multiculturalismo e à rejeição aos preconceitos, na pulsante “Não Me Diga Bye Bye”.

Dryca Ryzzo - foto Carina Zaratin/divulgação

 

A disco music estilizada de discurso interessado em valores positivos é o mote principal de Dryca Ryzzo, reproduzido em várias faixas. “Festeja o Que Tem”:  “Me chame quando o sol vier/ me tire pra dançar que eu vou/ me abrace se puder/ vamos fazer nosso show”. O samba-funk-rock “O Que Me Faz Sorrir”: “Amigos verdadeiros quero ter ao meu redor/ família o tempo inteiro pra eu me sentir melhor/ desejo tudo de bom/ saúde e muito som/ a cidade me alegra e o tom/ pro bem desviou seu dom”. A sonhadora “Tem Que Sonhar”: “Tem que sonhar, tem/ tem que sonhar, vem/ acreditar que o sonho já começou”.

Entre essas, “Acreditar É Vencer” é especialmente emblemática. “Cantar e não sair do compasso/ eu danço, mas não me embaraço/ sei, vou seguir os meus sonhos pra me sentir viva/ numa selva de pedra/ onde eu enfrento as feras/ nada vai me deter/ acredtiar é vencer”, determina Dryca, com autoridade e autoestima de co-compositora.

Karol Conká - foto divulgação

Mais dedicada ao rap de núcleo duro, Karol Conká, paranaense vivendo em Curitiba, não lançou trabalho cheio ainda, mas há faixas promocionais circulando pela internet. Apesar de produções mais compenetradas que festivas, ela usa sampler de “Errare Humanum Est” (1974), de Jorge Ben, na feminista “Marias”. Esse rap critica frontalmente a automutilação física praticada por muitas marias, de quaisquer classes sociais. É que se ouve em trechos como os seguintes: “Num país rico de beleza misturado com pobreza meninas se fantasiam negando suas natureza”, “ela procura entender por que essa desilusão/ pois quando alisa o seu cabelo não vê a solução”, “repara nas dondocas desfilando suas cirurgias caras/ ocultando suas raizes, inventando novas crises, esticando tudo que é ruga”.

Os rapazes, sempre mais travados, também se esmeram em ensaiar alguma descontração e leveza. Em suas Crônicas da Cidade Cinza (2011), Ogi movimenta-se no pêndulo entre a dor e o prazer desde “Cidade com Nome de Santo”, que abre o CD com a voz do dramaturgo Plínio Marcos, na fala inicial do espetáculo musical e LP Nas Quebradas do Mundaréu, de 1974.

“Eu conto histórias das quebradas do mundaréu, lá de onde o vento encosta o lixo e as pragas botam os ovos. Falo da gente que sempre pega a pior, que come da banda podre, que mora na beira do rio e quase se afoga toda vez que chove e que só berra da geral sem nunca influir no resultado”, dizia Plínio nos anos 1970, antes de começar a apresentar os desconhecidos sambistas de São Paulo Geraldo Filme, Zeca da Casa Verde e Toniquinho Batuqueiro.

Com jogo de cintura de quem descobre aos poucos que pode, sim, influir em resultados diversos, Ogi intercepta o discurso de Plínio pelo meio e transforma “Cidade com Nome de Santo” num samba-funk gostoso, suingado, cheio de ritmo e poesia.

Ogi - Foto Daniel Assis/divulgação

“Era uma cidade com nome de santo que atraía a todos pra nela morar/ e nessa cidade com nome de santo foi onde eu nasci e aprendi a sambar/ eu já conheço bem seu jeito, eu conheço como a palma da mão/ eu sei bem que ela tem defeitos, mas guardo ela no meu coração”, ginga, desenvolvendo o mote-provocação de Criolo em “Não Existe amor em SP” (2011), no sentido de declarar por São Paulo amor raramente demonstrado, muito menos exibido com orgulho, por seus habitantes de classes sociais superiores.

Logo em sequência vem o lindo work-rap “Profissão Perigo”, crônica de motoboys sob a ótica de um motoboy, que emite confissões de amor por São Paulo em versos como “a busca por dinheiro sufoca, machuca/ no corredor quase bati a motoca na fuca/ mas tô ligeiro, no piloto não durmo de touca/ (…) retrovisores cutuco, com a buzina eu abro espaço no horário de pico/ conheço todos os trajetos dessa capital/ correr já é parte do meu ritual/ filho do estresse paulistano, dessa cidade maluca/ mas eu já sou veterano, conheço as arapucas que esse gigante preparou pra nos capturar”.

Rael da Rima - foto José de Holanda/divulgação

Ogi também tenta visitar oas temas amorosos e/ou sexuais, em faixas ainda algo tensas como “Minha Sorte Mudou” (sobre uma situação de possível abuso sexual), “Os Tempos Mudam” e “Eu Me Perdi na Madrugada”.

Mais malemolente, Kamau corteja uma “Pretinha” em seu …Entre…, fazendo duo com Rael da Rima: “Pretinha, desse jeito cê me deixa sem chão/ me dá um minuto só da sua atenção/ pisa devagar aqui no meu coracão/ e toma esse lugar que agora é seu”.

Rael, contemporâneo da guinada midiática de Emicida e Criolo, é autor do mais luminoso e musical dos álbuns de partida do rap anos 2000, MP3 – Música Popular do 3º Mundo, lançado em 2010. Sem abrir mão das batidas quebradas do rap, ele visita diversos ritmos a cada canção, em levada de liberdade delineada já desde a primeira faixa, “MP3”: “Sou eu mesmo, um homem plural/ eu sou rua, eu sou mundo, eu sou universal, you know/ bem-vindos à fusão do instinto vital da cultura africana, da música negra/ e à sofisticação eletrônica da tecnologia branca”.

Utilizando-se com precisão de instrumentos musicais tradicionais (algo que o rap não faz com frequência), Rael se apoia em refrões fortes, em modo maior. Isso não quer dizer, de modo algum, que dispense a temática cortante do hip-hop. Ora se entrega, feito pioneiro, ao reggae-rap de trabalho batizado explicitamente “Trabalhador”: “Trabalha, trabalha, trabalha, nego/ (…) você, trabalhador, que despertou, foi trabalhar, trabalhar, trabalhar, trabalhar, trabalhar/ sem tempo para o amor, só pra trabalhar, trabalhar, trabalhar”.

Ora critica o alcoolismo, na crônica cotidiana de “Mania de Beber”: “Arruma sempre um jeito pra tomar uma/ mas a maneira de parar cê nunca arruma, não/ diz que um dia se apruma, mas se junta com turma e se tiver um do bom ele fuma/ se ele não bebesse e nem endoidasse e nada acontecesse diante da face/ ficar de parasita na vila, ele pira, conspira, delira e vira/ mania de beber”. Reprimendas à parte, Rael humaniza a figura do protagonista na segunda parte: “Apesar de ser louco e ganhando tão pouco ele tem uma vida normal/ uma mina que é massa, que é raça, que abraça, mas, meu irmão, na moral/ vocês têm mania de ter um filho por ano, e eu tô pra ver/ mais um tá chegando e vejo você se descabelando só pra manter/ mania de beber”.

Ora investe, por fim, na veia sociopolítica própria do hip-hop, como no delicioso reggae-rap “Eles Não Tão Nem Aí”: “Vamo se unir, vamo juntar, senão eles vão dominar/ eles não tão nem aí/ eles não te dão valor/ eles querem destruir a magia dessa cor”.

Imersos marginalmente no caldo de cultura global do “não somos racistas”, os rappers trilham caminhos próprios, individuais, mas o último verso de Rael da Rima é definitivo e unificador: cada um a seu modo, esses artistas estão cada dia mais empenhados em preservar as origens africanas – negras – da imensa maioria da população brasileira. O “não há lugar melhor no mundo que o nosso lugar” de Projota diz respeito ao Brasil, mas atravessa o Oceano Atlântico e vira, também, uma declaração de amor à aparentemente distante “mama África” de que falava o paraibano Chico César, onde a maioria absoluta dos brasileiros jamais pisamos.

 

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