Alaíde Costa, 88 anos: “A vida é complicada, mas eu canto”

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Alaíde Costa, 88 anos - foto Murilo Alvesso

Carioca radicada paulistana, a cantora Alaíde Costa completa 88 anos neste dia 8 de dezembro de 2023, gozando de autoridade e permanência que uma minoria de intérpretes femininas consegue alcançar na música popular brasileira. Na conversa a seguir, ela fala sobre as muitas dificuldades que sofreu por querer cantar de seu jeito, num momento em que a bossa nova estava nascendo, mas não tinha uma cara e uma forma definidas ainda. “As pessoas não acreditavam na bossa nova, era um deboche só”, afirma, contando que a gravadora RCA Victor não permitiu que João Gilberto tocasse violão em sua versão para “Lobo Bobo”, em 1959.

Alaíde relembra histórias que passam por Vicente Celestino, Dalva de Oliveira, Tom Jobim e outros. Na ponta oposta, participa da conversa o cantor recifense Ayrton Montarroyos, que, embora 60 anos mais jovem, é um admirador e um reverenciador da particularíssima escola Alaíde Costa de interpretação.

Ayrton Montarroyos: Você já foi interrogada na sua vida de todos os jeitos, já respondeu todas aquelas chatices: como começou a cantar, por quê, os problemas que enfrentou. Mas tem um negócio que eu, como cantor, queria saber. Quando eu te escutei pela primeira vez, identifiquei imediatamente que, como intérprete, você fez uma escola de canto particular sua. Você inventou um jeito de interpretar. A gente que é cantor canta de um jeito, de outro a gente não canta. A gente prefere um timbre da voz tal, a gente estende uma frase. Como é cantar para Alaíde Costa? Quando você canta, o que é que você pensa?

Alaíde Costa: Ah, cantar é como dizia Tom Jobim, cantar alegra o viver, quem canta refresca a alma, e eu canto para não morrer [os versos de Jobim na introdução de “O Tempo e o Vento (Passarim)” são “quem canta refresca a alma/ cantar adoça o sofrer/ quem canta zomba da morte/ cantar ajuda a viver/ quem canta seu mal espanta/ eu canto pra não morrer”]. Porque se eu não cantasse a minha vida seria bem complicada. Ela é complicada, mas eu canto.

AM: Você é uma cantora que nunca foi muito fã dos arroubos, uma cantora de samba-canção, de fossa, por exemplo. Como que você escolhe isso? De onde tirou essa região da voz que você usa?

AC: Comecei na época dessas grandes vozes.

AM: Você é fã da Dalva de Oliveira, né?

AC: Amo a Dalva de Oliveira. Fui crooner muito tempo no Dancing Avenida [no Rio de Janeiro], e ali eu tinha que cantar de tudo, aí cantava Dalva de Oliveira, Angela Maria e muita coisa. E era assim, você estava cantando samba-canção, já mudava para samba, para um tango, para um blues. Era uma coisa muito alucinante. Aquilo ali foi uma grande escola para mim. Porque falei assim: não é isso que eu quero para mim, eu quero o meu caminho. Todo mundo falava assim: “Ah, você canta bem, mas você não tem voz. Você canta triste, você tem que cantar uma coisinha mais alegre”. Toda vida eu ouvi isso, sabe?

AM: E, no entanto, você continuou cantando, porque achava bonito esse som.

AC: Eu achava que não tinha que ser aquilo que eu ouvia, que eu tinha que fazer diferente para, para ter uma chance de ser diferente. Demorou. Demorou muito. Agora, no finalzinho já da minha vida, 88 anos, é que as pessoas estão reconhecendo o meu trabalho. Estão descobrindo o meu canto, e fico feliz por isso, né?. Como diz João Bosco em uma canção dele que gravei [“Aos Meus Pés”, 2022], “o meu caminho eu mesma fiz”. Não foi ninguém que me apontou, eu me virei sozinha. Comi o pão todinho que o diabo amassou.

AM: Isso me toca muito, porque você abnegou tudo por uma causa, abriu mão. Não acho que você seja
uma cantora de voz pequena, nunca foi uma cantora com pouca voz. Nos vídeos e gravações a gente ouve você cantando em tons altíssimos, você tem uma extensão muito grande porque tem graves e
vai em notas agudas com muita facilidade. No entanto, você perseguiu uma estética de cantar, um jeito de fazer a música, de vestir a música, que você foi aprendendo no erro e no acerto da noite, fazendo. É muito bonito que você não tenha ouvido as coisas que as pessoas lhe falam. Quando eu estava no The Voice, diziam que eu não tinha voz, que minha voz era muito baixinha. Mas eu achava mais bonito
cantar com a minha voz. Não é que eu acho bonito só quem canta baixo. Eu achava minha voz mais bonita na região mais suave. Poxa, e se eu pegar um pouquinho do rouco? E se tiver uma respiração? E se eu atrasar algumas entradas?

AC: Ainda tem isso. Tem que cantar no ritmo. Eu sofri muito com isso também.

AM: Diziam que você não tinha tempo porque não entendiam sua divisão?

AC: Diziam também isso. Tom Jobim não era nada disso. Eu era criança, tinha uns 16 ou 18 anos, Vicente Celestino que falou para mim: “Vocês que estão metidos nessa coisa de bossa nova cantam tudo errado”.

AM: Olha que coisa. Realmente a divisão acabou depois do João Gilberto, ficou classificada como uma coisa particular, né? As entradas na cabeça dos acordes não têm que ser assim sempre, né?

AC: Eu procuro sempre analisar muito o que o letrista está querendo passar para as pessoas. Cantar por cantar não dá. Tem que analisar o que ele quer.

AM: Em cada letra você vai precisar ter um tipo de interpretação, de roupagem, claro que não sendo outra cantora, porque você continua sendo Alaíde Costa. Você acha que cada letra tem um jeito de cantar específico, uma divisão?

AC: É por aí. É muito difícil passar para você essa minha coisa, porque também não tenho muito conhecimento da minha arte. Não tenho. As pessoas que falam dela, mas procuro fazer o melhor possível. Por exemplo, “ah, não pode mais meu coração”, você não pode falar “ah, não pode mais meu coração” como se não tivesse dizendo nada, né? Tem gente que faz de um jeito que muda o sentido.

AM: Você é uma possuída pelo dom, mas possui esse dom também de volta. Você pode não ter
consciência, mas tem controle sobre ele, é impressionante. Sua gravação de “Retrato em Branco e Preto”, para mim, é um dos melhores entendimentos daquela letra, daquela canção. 

AC: Eu também acho. E tive ali também uma grande ajuda do meu amigo Oscar Castro Neves, né? A tonalidade para mim era complicada, aí falei: não, vamos mudar tudo.Não sei como Tom Jobim recebeu, mas fiz bem diferenciado de tudo que vinha acontecendo na época.

O histórico disco com Oscar Castro Neves, de 1973

AM: Fala um pouco da tua relação com João Gilberto? Confirma se é verdade que você levou ele no estúdio para tocar e não usaram o violão dele?

AC: Juro por Deus. Verdade. Bem no comecinho, as pessoas não acreditavam na bossa nova, era um deboche só. O deboche era tão grande que eu pegava trem e ônibus da minha casa para ir para a Rádio Nacional naquela época, depois andava um pedação a pé e via nas lojas “panela bossa nova”, “blusa bossa nova”, “sapato bossa nova”. Isso era deboche. O pessoal da RCA também não acreditava na bossa nova nem no João Gilberto. Foi incrível eu ter conseguido levar João lá, que ele era muito arredio. Mas, foi lá comigo, dez horas da manhã, tirar o João Gilberto…

AM: Para gravar violão no seu disco.

AC: “Não, nós temos o violonista da nossa orquestra.” Era aliás um ótimo, belíssimo violonista, mas que não sabia fazer aquilo. Então você ouve meu “Lobo Bobo”, é uma rumba. Não é uma bossa nova. Ele nem gravou, não deixaram, “nós temos o violonista contratado, não fica bem”, aquelas histórias. Tudo que fiz na RCA de bossa nova é rumba, não bossa nova.

AM: Pois é, você é essa artista que “contemporanizou” o seu tempo, entendeu uma parada realmente muito difícil e começou a criar a partir dela. Você fez um negócio totalmente diferente que ninguém nunca fez, não conheço nenhuma cantora que se pareça com É como Ademilde Fonseca, aquela cantora de uma escola própria, que não tem seguidores. Porque é dificílimo, ser Alaíde Costa não é fácil, não. Cantar desse jeito. Quando abre a boca para cantar “Parabéns para você”, penso: não é possível que ela sacou coisas assim que eu jamais pensaria nessa música. É uma aula.

AC: Obrigada.

Fabio Maleronka: João te via como?

AM: Uma das cantoras que ele mais gostava. Pode falar sem modéstia.

AC: Eu estava gravando o meu segundo 78 Rotações na Odeon, e ele estava no estúdio. Eu não conhecia nada, nem vi João Gilberto. Aí ele falou para Aloysio de Oliveira: “Aloysio, essa moça tem um jeito de cantar tão diferente que tem tudo a ver com a música que tem uns meninos…”, a bossa nova nem nome tinha, “…uns meninos fazendo uma música diferente, quando tiver uma reunião vou pedir para você ligar para ela”. E assim aconteceu, passado algum tempo Aloysio me ligou e lá fui eu. Morava na Água Santa, longe para caramba para chegar. Era muito complicado para chegar lá na primeira reunião que fui, na casa do pianista Bené Nunes. Cheguei e perguntei: o João Gilberto está aí? Aí vi que um olhou para o outro, aquela risadinha.. Porque ele era o rei do cano, não ia. Nossa, demorou muito para eu conhecer João Gilberto. Ele não foi nesse dia, não foi em outro, não foi em outro, não foi em outro. Acho que um ano e pouco depois eu vim conhecer João Gilberto.

AM: E ele se apaixonou por você, pela sua música?

AC: Não, ele se apaixonou lá no estúdio, e foi aí que houve o convite para ele fazer comigo a gravação do Lobo Bobo.

Renata Rocha: Como foi sua mudança para São Paulo? Como a cidade te acolheu?

AC: A minha amiga Claudette Soares veio para São Paulo e dizia assim: “Lalá, vem para cá, porque aqui a gente vai ter mais oportunidades. Aí no Rio é muita competição”.

AM: Porque era uma coisa mais carioca, né?

AC: É, e aí a gente veio. Ela veio antes, eu acabei vindo, e daí vários músicos e cantores. Paulinho Nogueira já começou no movimento, e a gente fazia reuniões, aquelas coisas de bossa nova. Essa bossa nova aqui em São Paulo ficou famosa mesmo a partir de O Fino da Bossa. Não O Fino da Bossa da TV Record, mas o do Teatro Paramount. Foi ali que a coisa começou mesmo.

AM: Até deslanchar vocês se apresentavam onde?

AC: Cantamos no Teatro Oficina, em muitas boates.

AM: João Sebastião Bar?

AC: Antes do João. Teve Baiuca, Clarity. O dono do João Sebastião Bar era muito fã da Claudette e criou esse bar para a estrela ser Claudette. Ela cantava sentadinha em cima do piano, Pedrinho Mattar acompanhava. Ali já era diferente, a bossa nova já estava encaminhada. Foi uma época muito bonita, muita gente passou por esse João Sebastião Bar.

AM: Foi lá que você conheceu Chico Buarque?

AC: Não, conheci Chico na casa dele. Na casa dele, não. Eu ia na casa dele com Vinicius de Moraes e Baden Powell, oorque o pai do Chico era muito amigo do Vinícius. Cada vez que a gente vinha do Rio, ia parar lá na casa do Chico, no Pacaembu. Mas Chico não aparecia, porque era menor. Naquela época tinha essas coisas, é menor, não vai.

AM: Você sabia que ele era músico?

AC: Não, nada, até que um dia ele, que estudava no Colégio Santa Cruz, organizou um show do grêmio estudantil e eu vim, com Baden, Vinicius e Ana Lúcia, cantora daqui, minha grande amiga também, grande cantora. Fizemos esse show, nessa época ele tinha uns 14 anos. De repente resolveram fazer um show no Rio de Janeiro, éramos eu, Baden, Oscar Castro Neves com um quinteto de cordas e Dulce Nunes. Uns dias antes eu estava ensaiando para esse show e Chico apareceu lá na porta, porque menor não entrava, e falou assim: “Eu trouxe aqui uma música que eu acho que você poderia cantar”. Falei assim: Chico, vou tentar, porque o show já está para estrear. Mas aí ouvi, gostei e gravei na minha memória a música. Aprendi e falei para Oscar: tem um menino aí que trouxe essa música e eu quero cantar. E nós ensaiamos. A produção não queria, não. Não, eu vou cantar. Mas Chico nem assistiu porque era menor. Sabe qual era a música? “Sonho de um Carnaval”. Foi o maior sucesso no Festival de Samba, como se chamava.

AM: Que maravilha, gente.

AC: Contei um pouco da história que não era para contar [risos], mas, contei. E eu fico feliz de te ver caminhando aí, numa boa. Tomara que você tenha muita sorte, muita sorte mesmo.

AM: Eu já tenho, estou aqui do seu lado. Te amo, te amo muito.

Alaíde Costa encontra Ayrton Montarroyos – foto Renata Rocha
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