A voz invisível de Maricenne Costa

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Maricenne Costa canta no Festival da Excelsior de 1968 - foto reprodução do livro "A Cantora de Voz Colorida"

Entre as inúmeras personagens que estiveram sob holofotes musicais, mas não sustentaram uma carteirinha cativa do clube dos protagonistas da música brasileira, a paulista Maricenne Costa, hoje com 83 anos, pertence a um escaninho controverso, que se chamou ou se tentou chamar de bossa nova paulista e talvez nem tenha chegado a existir, se acreditarmos nos cânones difundidos pela bossa original, a carioca. A posição na contracorrente não ajudou a impulsionar Maricenne, mas ela tem sua história artística resgatada no livro A Cantora de Voz Colorida, escrito em tom menos historiográfico que afetivo por sua irmã mais nova, a psiquiatra Elisabeth Sene-Costa, e pela jornalista Laïs Vitale de Castro.

Alguns episódios mais ou menos pitorescos ajudam a identificar a artista em relação a portadores da carteirinha de protagonistas, como o gênio baiano da bossa carioca João Gilberto, que tentou um namorico com Maricenne e lhe cunhou a classificação de “voz colorida” recuperada no título do livro, e Chico Buarque, que estreou como compositor em disco pela voz da cantora. A canção de Chico se chamava “Marcha para um Dia de Sol” e constou de um compacto com “Mar, Amar” (dos bossanovistas Roberto Menescal Ronaldo Bôscoli), lançado pela Philips em 1965 (ou 1964, como afirma o livro).

“Marcha para um Dia de Sol” não sobreviveu ao tempo e não deixou vestígios sonoros, pelo menos não na internet ou nas plataformas digitais, mas a própria Maricenne recuperaria o mimo perdido em 2005, no CD Movimento Circular. “Criança brincando/ mulher a cantar/ eu quero ver um dia numa só canção/ o pobre e o rico andando mão e mão/ que nada falte, que nada sobre/ o pão do rico e o pão do pobre”, o iniciante Chico sonhava um sonho de juventude até hoje irrealizado.

Outro fator a colocar na contracorrente a cantora, compositora e atriz nascida em Cruzeiro, no Vale do Paraíba, foi sua índole de artista de transição, entre a canção antiga e o samba-canção, de um lado, e a bossa hipermodernizadora, do outro. Lutando na música desde 1952, Maricenne participou do célebre programa de calouros de Ary Barroso e gravou compactos com versões solenes e interpretações impostadas de sambas-canções de Jair Amorim e Dolores Duran. Foi contratada pela Rádio Tupi de São Paulo em 1958, nos últimos instantes antes da eclosão da bossa nova.

“João Gilberto foi para mim o grande e primeiro impacto musical que a cidade me trouxe, um choque de transparência musical, beleza harmônica e batida exemplar, diversa, aparentemente contraditória”, afirma a artista em A Cantora de Voz Colorida. De acordo com o livro, João quis conhecê-la quando ela cantava no Hotel Cambridge, em 1962. “Que mensagem linda tem a sua voz, quero conhecer você. JG”, dizia o bilhete que recebeu. “Meus amigos viviam me dizendo (e eu não percebia) que JG gostaria de ter comigo mais do que amizade. E eu não estava preparada para isso”, ela conta no livro. Quando foi se apresentar no Auditório Ibirapuera, em 2008, João convidou e providenciou convites, por meio de uma notícia de jornal, para amigos que perdera em São Paulo, entre eles Maricenne.

Com João, compartilhou também a parceria com o pianista Walter Wanderley, outro elo perdido entre o Brasil de antes e de depois da bossa nova. Em 1966, Maricenne excursionou com Walter Wanderley pelos Estados Unidos e perdeu a oportunidade de gravar um disco pelo mitológico selo Verve, segundo contou em entrevista de 1999: “Viajei para os Estados Unidos para me apresentar, e lá assinei um contrato com a Verve. Voltei ao Brasil para o Natal, e havia uma cláusula que não vi, de que a primeira sessão de gravação deveria se realizar ainda naquele ano. Aí cancelaram, eu pirei”.

Hesitante entre estilos, a cantora, que então se assinava apenas Maricene, lançou um compacto com quatro músicas em 1964 com o trio samba-jazzístico de Cesar Camargo Mariano, um dos muitos paulistanos que permaneceram inadaptados na periferia da bossa nova. Duas das faixas eram o clássico “Garota de Ipanema” e “Bossa na Praia”,de Pery Ribeiro, outra voz periférica da bossa. Quase 50 anos depois, em 2009, Maricenne gravaria um inventário da marginália bossa-novista paulista em Bossa.SP, com canções de Paulinho NogueiraThéo de Barros, Vera BrasilWalter Santos Tereza SantosAdilson GodoyNelson AyresToquinho e Eduardo Gudin, entre outros. A bossa negra carioca, que migrara para São Paulo em busca de espaço, aparece representada em Bossa.SP por Johnny Alf, autor de “Ilusão à Toa“, e por Alaíde Costa, intérprete ao lado de Maricenne de “Tristeza de Amar“, de Geraldo Vandré Luiz Roberto. Outras integrantes do bloco paulista, igualmente alijadas dos primeiros escalões da bossa, eram as cantoras Claudette Soares Marisa Gata Mansa, ambas cariocas migrantes, e a paulista Maria Odette.

Em 1966, a artista errante procurou se integrar à incandescente era dos festivais, inscrevendo-se no 2º Festival Nacional de Música Popular Brasileira, da TV Excelsior, inicialmente não como intérprete, mas como compositora, ao lado de Vera Brasil, do samba candomblecista “Inaê”, defendido por Nilson e o conjunto Sambossa 5. Não era tempo propício para mulheres compositoras, mas a dupla levou a segunda colocação no festival, vencido pelo futuro gênio da percussão brasileira Airto Moreira e pela cantora Tuca, com “Porta-Estandarte”, de Geraldo Vandré e Fernando Lona.

Naquele princípio de estabelecimento da MPB de extração universitária e festivalesca, Maricenne e Vera saíram à frente de artistas que iriam pular à boca do palco logo a seguir, como Milton Nascimento, cantor da quarta colocada, “Cidade Vazia” (de Baden Powell Lula Freire), e Caetano Veloso, autor da quinta colocada, “Boa Palavra” (defendida por Maria Odette). Os modos musicais da bossa ainda prevaleciam no festival, mas não por muito tempo: Chico Buarque vinha preparando “A Banda” para o Festival da Record do mesmo 1966, que inauguraria um novo tempo musical brasileiro, na voz doce da à época ex-bossanovista Nara Leão.

Ainda na Excelsior, mais uma vez na contracorrente, Maricene participou do Festival Nacional da Excelsior de 1968, que foi disputado entre canções enviadas para representar Bahia, Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul, Guanabara, Rio de Janeiro e São Paulo. Maricenne arrebatou para São Paulo o título de melhor intérprete, com a singela “Até Mais Vê“, de Carlos Castilho Vitor Martins. A canção vencedora foi a saudosista “Modinha”, de Sérgio Bittencourt, interpretada pelo carioca (nascido uruguaio) Taiguara, representante da Guanabara. Nesse momento, a tropicália já voara com a MPB para outras e mais excitantes direções.

A carreira musical de Maricenne não deixou rastros nos anos 1970, quando ela se moveu para os palcos teatrais como atriz, inclusive no musical Morte e Vida Severina, inspirado em João Cabral de Melo Neto, a partir de 1972. Mesmo sem gravar, ela exercitou nos palcos a liberdade de repertório que seria chamada de ecletismo a partir de Marisa Monte Adriana Calcanhotto. Eclética quando essa característica não era comum, cantou sem hierarquias ou prioridades Noel RosaPixinguinhaLamartine BaboTom JobimMilton Nascimento, Paulinho da ViolaRita LeeEgberto GismontiLô Borges, Alceu ValençaRaul SeixasWalter Franco, João BoscoBelchior, Sueli CostaCazuza, Lulu SantosLaura Finocchiaro… Em 1971, no Teatro Ruth Escobar, aproveitou o cenário ainda não desmontado da histórica montagem de O Balcão, de Jean Genet, para estrear um show acompanhado pelo Som Imaginário, que vinha de trabalhos com Milton e Gal Costa. Em 1979, apresentou-se no teatro Lira Paulistana, que iria à posteridade como palco principal da chamada vanguarda paulista dos anos 1980.

Apenas em 1980 Maricenne Costa chegaria a lançar seu álbum de estreia, Maricene Costa, num pique desenraizado que remetia a samba-canção, bossa nova e MPB, sem se acomodar com justeza a nenhum desses estilos, e interpretando compositores underground como Frederyko (ex-guitarrista do Som Imaginário), o sul-matogrossense Celito Espíndola e, na frente de batalha feminina, Irene PortelaKlébi NoriPriscila Ermel e… Maricenne Costa.

Começou a gestar uma saída do casulo em 1987, quando a banda punk paulista Inocentes adicionou sua voz à faixa-título do LP Adeus Carne, uma mistura de grunhidos punk e canto bossa nova, samba de terreiro e punk rock. A experiência desaguou no álbum Correntes Alternadas (1992), em que Maricenne abraçou plenamente a cultura dita underground, sob co-produção do paranaense Paulo Barnabé, fundador da Patife Band. A associação punk com os Inocentes prosseguiu na releitura de “Garotos do Subúrbio” (1989), de Clemente, e Maricenne investigou a vanguarda em composições de Edvaldo Santana Ademir Assunção (“Muito Prazer”), Moleque de Rua (“Dor de Dente“) e, numa rara parceria, Tom Zé Ritchie (“Wild Life”, cujos trechos em português em 1998 se tornariam “Juventude Javali”, na voz de Tom Zé). “Wild Life” fazia citação literal à melodia do clássico underground “Walk on the Wild Side” (1972), de Lou Reed. A salada estilística de Correntes Alternadas abrigou, ainda, o choro ancestral de Zequinha de Abreu (“Eterno Enlevo”, de 1926), jazz e Francisco Alves (“Céu Cor de Rosa”, versão de 1943 para o standard “Indian Summer”, de 1939), os patrimônios paulistanos Paulinho Nogueira e Paulo Vanzolini (em “Valsa das Três da Manhã”) e uma regravação da antiga “Bossa na Praia” (1964).

A vocação para o novo voltou a se manifestar no CD de 2005, Movimento Circular, com canções de Fernanda PortoMoisés Santana Beatriz Azevedo misturadas a outras de Johnny Alf, Gilberto GilJorge Ben JorFrancis HimeWaly Salomão Rosa Passos, além do antenado “Samba da Periferia”, de Elzo Augusto, fornecedor de sambas paulistas para Germano Mathias Demônios da Garoa. “Sou samba do reduto de Itaquera, Brasilândia, Sapopemba e Cachoeirinha/ sou fruto da cabeça da galera/ burilado e batucado na garrafa de caninha/ e também na latinha”, canta Maricenne, em dueto com Germano Mathias.

Num momento de radicalidade em sentido oposto ao da adesão ao punk, o CD Como Tem Passado!! (1999) contou com a curadoria de outra figura contracorrente, o crítico musical e historiador José Ramos Tinhorão, sob o conceito de resgatar do esquecimento marcos inaugurais em lundu, tango brasileiro, modinha, cançoneta, marcha, maxixe, samba, samba-canção, embolada, marchinha carnavalesca e toada. O disco começa com uma releitura da primeira música gravada no Brasil, o lundu “Isto É Bom”, de Xisto Bahia, registrado por Bahiano em 1902, e segue por Chiquinha Gonzaga (“O Forrobodó”), os irmãos literatos maranhenses Aluísio Azevedo Artur de Azevedo (As “Laranjas da Sabina”), Donga (“Pelo Telefone”) e Angelino de Oliveira (“Tristezas do Jeca”).

Esse álbum remontava a outro trabalho com Tinhorão, na seleção de repertório para o show Mulher Vai Cavar a Nota, iniciado em 1981, todo direcionado a canções brasileiras que visitaram o tema emancipação feminina e acompanhado por Izaías e Seus Chorões (Izaías está presente também em Como Tem Passado!!). O Brasil que repelia esse temática em 1981 é o Brasil que repele essa temática em 2022, e é bem nesse espaço que Maricenne Costa sempre habitou. Como tantas, sua invisibilidade grita.

"Maricenne Costa: A cantora de voz colorida" (2022), de Elisabeth Sene-Costa e Laïs Vitale de Castro

Maricenne Costa: A cantora de voz colorida. De Elisabeth Sene-Costa e Laïs Vitale de Caastro. Álbum de Família, 260 pág., R$ 60 (edição colorida) e R$ 40 (preto e branco). O livro pode ser adquirido pelo e-mail elisabethsene@terra.com.br.

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