Hermeto Pascoal: “O baião nasceu misturado com feijão, arroz e farinha”

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Hermeto Pascoal - foto Instagram @hermetopascoal
Hermeto Pascoal - foto Instagram @hermetopascoal

Gênio da música instrumental brasileira e mundial, o multi-instrumentista alagoano Hermeto Pascoal permanece ativo e produtivo aos 86 anos. No dia 24 de setembro, foi a atração principal do Festival de Jazz de São Roque, no interior de São Paulo, e tem datas marcadas para outubro e novembro em novo tour pela Europa ainda em 2022, em palcos de Suíça, Suécia, Irlanda, Inglaterra, Espanha e Brasil (no festival Primavera Sound, em São Paulo, no dia 6 de novembro).

Hermeto também tem tido sua obra monumental revalorizada por reedições digitais e por documentos musicais históricos inéditos. Neste ano, lançou o álbum duplo Planetário da Gávea, que registra um show inédito de 1981, pelo selo inglês Far Out, que cinco anos atrás já havia tirado do ineditismo Viajando com o Som, resultado de uma sessão de estúdio de 1976. Também chegaram às plataformas digitais em 2022 os cinco discos antológicos lançados originalmente pelo selo Som da Gente, Hermeto Pascoal & Grupo (1982), Lagoa da Canoa Município de Arapiraca (1984), Brasil Universo (1986), Só Não Toca Quem Não Quer (1987) e Hermeto Solo (1988).

Em entrevista exclusiva ao lado de seu produtor, Flávio Scubi de Abreu, Hermeto fala não apenas sobre música, mas também sobre a faceta de artista visual, exibida nas capas de discos como Cérebro Magnético (1980), Mundo Verde Esperança (2003) e Hermeto Pascoal e Sua Visão Original do Forró (2018), este último seu mais recente trabalho original, e sobre sua relação com os lugares e cidades. Leia abaixo os melhores momentos da conversa.

Flávio Scubi de Abreu: A gente vê seus desenhos na capa de alguns discos, como surgiu essa história de desenhar e de ligar a capa com a música, os desenhos com a música

Hermeto Pascoal: Tudo é muito interessante. Sou um cara muito intuitivo, né? Então, eu faço o que tenho na ideia, me lembrando do meu tempo de criança, e sem pensar em negócio de idade, de nada. Tudo que faço já tem uma relação com a música, com pintura. As coisas que vêm na minha cabeça, eu faço da mesma maneira que escrevo a música no caderno. Posso escrever no chão, na praia; já escrevi na areia da praia… A gente olhou se tinha vento. Se você ama música, tudo o que faz é universal. A pessoa vive tentando ficar igual. A gente, naturalmente, é semelhante. Eu não sabia armar aquele negócio, fazer os traços. Tinha uma moça muito amiga das minhas filhas, que a gente chamava de Miúda. E a Miúda me ajudou, eu não queria, mas ela me convenceu, aí deixei fazer e fiz essa pintura. As pinturas que faço são como fazer as linhas da música, nos meus cadernos, a linha que eu faço treme igual. E eu deixo, que acho bonito. Imagino um tipo de montanha, de Pão de Açúcar, em outros traços me relembro da água, do chão. Poxa vida, a ideia das perguntas de vocês para mim é muito bacana, só que eu vou tomar cuidado para não falar demais.

FSA: E nessas suas expressões drásticas, seja para escrever música, fazer desenho ou as duas coisas juntas, a gente percebe que tem uma presença constante de um amigo, Ruy Pereira. Ele ajuda? Como é a participação do Ruy Pereira nessa parte gráfica?

"Cérebro Magnético" (1980), de Hermeto Pascoal

HP: Ruy Pereira foi um cara que me convenceu, porque ele é um baita tudo, é pintor, inteligente demais. É meu amigo, ia lá para casa, a gente jogava baralho. Comecei a desenhar mesmo para valer a partir de aquele disco Cérebro Magnético. Quando ele viu, ficou maluco, chamou de artes plásticas. Eu disse para ele: sabe o que vem agora? Não é o que eu vou dizer, agora é agora, mas depois é outra coisa. Não tem como achar a mesma coisa do Hermeto, porque quando pensa que é a mesma coisa já é outra. O público já está acostumado com isso. A música não é só as notas musicais e aquilo que a gente escreve no papel, não. Tenho respeito na música como tenho com Deus. A música para mim está em tudo que você imaginar. A música é como o vento, ela está em todos os lugares, onde você for no mundo, em qualquer lugar. Por isso que chama universal. Porque ela é agora. Quando vim para o Sul, as pessoas achavam que eu só tocava baião. Eu nasci no baião, sempre achei que é a música mais forte, que quase não é usada. Mas o que mais tem, mais do que qualquer estilo do mundo, é o baião. O baião nasceu mesmo misturado com feijão, arroz e farinha.

FSA: Você tem muita música com nome de lugar. Tem “Montreal”, “Viva São Paulo”, “Viva o Rio”, “Viva Búzios”. Como o lugar influencia tudo o que você põe para fora em músicas?

HP: Quando chego no lugar, tem alguma coisa diferente, porém semelhante. O que não é semelhante nem existe, nem vai existir. A coisa que existe já é semelhante. Antes de sair do Brasil, eu ainda não tinha essa experiência e quando fui tocar fui para a Alemanha, para a Espanha, fui chegando nos lugares. Alguma coisa que eu não gostava e que eu não gosto até hoje é a imitação, uma imitação da estrutura dos edifícios, dos prédios. O engenheiro vem para o Brasil fazer aqui o que ele faz igualzinho na terra dele. Aí me cansa, me cansa de eu andar pela estrada e ver a estrada igual, com tanta riqueza para você mudar as coisas, modéstia à parte, como eu faço com a música. Eu mudo com a música. Você escuta uma música minha e é boa, e você vai achar uma semelhança em todas que eu tocar. Sabe por quê? Teoricamente falando, a música só tem 12 notas, 12 tons. Quando descobri isso, a minha patroazinha estava na Terra ainda. Quando eu descobri, nossa senhora, fiquei bem abalado. Vou contar até morrer e não vou acreditar, como é que eu faço tanta coisa com 12 notas só? Aí eu falo em Deus.

Hermeto Pascoal
Música dedicada para a cidade italiana de Mantova, feita durante a turnê de 2019 – Foto Instagram @hermetopascoal

Fabio Maleronka: Deixa eu te perguntar sobre um lugar, a caverna do Petar. Fala um pouco sobre a experiência da caverna, que é também uma nave, né?

HP: Foi a filha de um governador (Franco Montoro) de São Paulo que teve essa ideia. Me convidaram para ir na caverna e ver tanta coisa como eu vi. Parece que eu tinha, naquela época, uma fama por causa da minha música, que tinha a ver com teatro. Eu não fico no palco, só, sempre faço coisas que eu mesmo me assusto, comigo e com o que eu faço. Quando eu comecei a entrar nas cavernas, eu nunca tinha ido em um lugar assim. Na minha terra até tem, mas eu era criança e meus pais não iam deixar. Olhei assim para o lado direito, estava um rio. Os peixes, a cor dos peixes, rapaz, coloridos, peixes coloridos, isso eu nunca vi. Aí me veio o pensamento de procurar um lugar na caverna para escrever um negócio lá. As pessoas que estavam comigo sabiam, eu tinha fama de louco. O cara teve medo que eu batesse nas pedrinhas, porque eu queria fazer som com os músicos que estavam lá, e a gente fazia. Eu ia dizendo o som para a turma tocar, entendeu? E eu tocava, às vezes eles escreviam. Nossa senhora, aquele eco da natureza que que sai, cada pancada você escutava uma coisa que era outra coisa. Eu não acredito que o céu seja tão bonito quanto uma caverna. Foi a ideia que Deus deu, como nós mantemos a comunicação na Terra espiritual, mais espiritual do que física. E a mesma coisa acontecia quando eu ia nos lugares.

FM: E o disco de forró?

"Hermeto Pascoal e Sua Visão Original do Forró" (2018), de Hermeto Pascoal

HP: Quando comecei a tocar para valer mesmo foi em Recife, na Rádio Jornal do Comércio. Lá foi que aprendi a tocar sanfona, eu tocava oito baixos. E o dono da rádio, doutor Francisco Pessoa de Queirós, me deu uma sanfona, e foi lá que começou tudo. Fui tocar, nada de escrever, não escrevia nada, nem queria saber de nada. Queria tocar. Com meus 7, 8 anos, já tocava no baile. Eu e meu irmão, a gente se revezava. Quando eu tocava oito baixos, ele tocava pandeiro, e vice-versa. Na minha hora do oito baixos, olha como eu sou, já era cansado com acorde, negócio feio. Eu achava feio, achava que podia melhorar. A gente não escutava rádio, nem nada, que não tinha luz na época. E foi legal porque eu desenvolvi muito mais aquilo que Deus me deu, a criatividade. Na minha hora, no forró, no oito baixos, eu tocava três, quatro músicas. Aí uns caras, daqueles bem rudes, iam para o meu pai e diziam: “Põe o outro para tocar agora, vai. Esse menino é muito doido. Ele está fazendo umas coisas que está atrapalhando até a gente para dançar”. Eu tinha meu jeito de tocar e meu irmão tinha o dele. Hoje, quando penso nessa época, é com uma coisa atualizada e não é de hoje, porque o ar que eu respiro, que todos nós respiramos, ele não vai embora. Você respira e ele sai fora e roda e volta para você viver novamente. É abandonado o bichinho, mas ninguém leva o dele, o meu ar, graças a Deus. É bonito, mesmo saindo.

FSA: O disco do forró veio depois, mas foi gravado em 1999, né? E você toca muito a
sanfona de oito baixos, mas toca também 120 baixos.

HP: Acho que eu toquei até sanfona. Como te falei, eu tenho um apreço muito grande por Recife, porque lá conheci Sivuca. Nós não tocamos muito tempo no mesmo lugar, porque Sivuca já veio embora para o Rio, e eu fiquei lá na Rádio Jornal do Comércio, sem tocar nada, comparando com ele. E aí falei: vou fazer um disco em Recife, dedicado, vou dedicar a Recife. Mas não é por isso que eu ia fazer um disco só de frevo. Em Recife, e em qualquer lugar do Norte, toca mais forró. Frevo se tocava também, mas eram só as orquestras. Sobre esse disco, sempre estou querendo homenagear aquilo que estou fazendo, e uma das coisas foi Recife. Eu botei alguma coisa homenageando, não?

FSA: Claro. O nome das músicas, por exemplo, uma delas se chama “Pernambuco Falando para o Mundo”. Tem uma música que é “Sivucando no Frevo” e uma com Alceu Valença, que é de lá também.

HP: Ele ficou surpreso quando eu convidei ele para cantar. Tinha até uma menina, a Marília Lopes, uma menina que se tornou cantora. Ela já era, eu convidei ela para participar do meu disco. Depois virou uma cantora mesmo, profissional. Quando eu vi, eu vi o que eu queria que ela cantasse, já vi no estilo, no jeito da voz dela, aquilo que eu achava que ia ficar bom. Campeão, e ficou bom. Ela estava começando ainda.

Renata Rocha: Hermeto, como foram o período do Stardust e os encontros nesse lugar, na praça Roosevelt, em São Paulo?

HP: Eu já tocava em alguns lugares, fazia mais bares. Quando fui para São Paulo, já fui contratado para tocar em uma boate que era vizinha à Stardust, boate Chicote era o nome. Um contrabaixista me viu tocando, ficou sentado, e ele tocava na outra boate. Ele gostou demais de eu tocando piano. Daqui a pouco se apresentou, o nome dele era Alberto, era contrabaixista. Toquei muito com ele na época, ele era bom demais, já era um coroa. Quando cheguei, não sei que negócio burocrático lá, a boate fechou e eu fiquei sem emprego, eu estava com a minha esposa grávida do segundo filho. Quando eu fico, eu fico, mas quando eu vou, eu vou. Fui ver uma canja, o cara me convidou, eu estava sem emprego, e sempre tinha o cuidado de perguntar se não tinha ninguém que ia para lá, eu não quero tomar o lugar de ninguém. O cara: “Não, não, está livre”. Esse meu camarada Alberto me viu tocando e falou na outra boate [Sturdust], que era considerada a melhor boate de São Paulo na época. Quando estou dando canja lá, começou uma briga dentro da boate, que o cara não estava gostando da música que eu estava tocando, porque eu fico brincando. Aí deu uma porrada no piano, “vamos embora, não posso ficar aqui escutando essa música”. Quando ele deu um tapa no piano, já peguei o banco para me livrar se ele viesse para cima de mim. Mas não rolou nada, foi só uma discussão. Ele foi embora com raiva, xingando a música que eu estava tocando. Campeão, você não sabe da maior. A boate vizinha em que fiquei tocando era a Stardust. O dono da casa era baterista, chamado Hugo Landwer, mas quem me
chamou foi o outro dono da casa, chamado Alan Gordin. “Não deixa esse cara aqui, não, ele é louco, quase quebrou tudo lá”. Alberto, que era o contrabaixista, disse: “Eu me responsabilizo, pode deixar ele entrar”. Quando comecei a tocar, eu digo: agora vou tirar um sarro com ele. Quando ele olhar para mim, vou abaixar a cabeça e vou tocar. Aí fiquei tocando, e parecia que eu já tocava lá, de propósito, porque sabia o jeito deles. Aí Hugo ficou louco, porque ele fazia umas coisas na bateria, e eu respondia no piano, parecia que a gente já tinha tocado juntos. Ele olhava para mim, para dar a entender que estava arrependido, que tinha se enganado, e eu até tirei um sarro. Quando vi, ele estava apavorado mesmo em querer me elogiar. Ele chamou o outro baterista para entrar no lugar dele. Veio me cumprimentar e me abraçar e agradecer e pedir desculpa: “Não, eu sei, estava brincando com você também”. Aí pronto, né? Aí ficou todo mundo amigo. Você cria uma fama, eu tinha uma fama. Não é de louco. A minha música ninguém tinha visto tocar.

(Colaboraram Emiliano Castro, Maria Vitória Royer e Ruy Pereira)

Fabio Maleronka Ferron é professor de produção cultural contemporânea, programação e curadoria. Foi coordenador do Circuito Municipal de Cultura de São Paulo e curador da Virada Cultural em 2014 e 2015. Integrou o Conselho Gestor do Auditório Ibirapuera (2013-2016) e o Conselho de Administração da Spcine (2015-2017). É mestre em estudos culturais pela Universidade de São Paulo (USP) e organizador e co-autor do livro Depois da Última Sessão de Cinema: Spcine, Audiovisual e Democracia.

Renata Rocha é arquiteta urbanista graduada pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e mestre em administração pública e governo pela FGV-SP. Publicou diversos artigos, capítulos de livros, estudos e pesquisas acadêmicas. A partir do pensar sobre a cidade e as questões urbanas, vem se dedicando a estudos no campo do audiovisual e desde 2017 integra o Nupepa/ImaRgens – Núcleo de Produção e Pesquisa em Audiovisual, na USP, voltado para a formação e o desenvolvimento de projetos na área do audiovisual para as ciências sociais e humanas.

 

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