A maratona teatral se justifica. São seis horas divididas em dois espetáculos distintos que ocorrem simultaneamente, com parte do mesmo elenco e sob um único palco. E, de quebra, ainda presenciar uma singela homenagem a um dos grandes nomes do teatro brasileiro, o ator Sérgio Mamberti, falecido em setembro de 2021.
Quem tornou possível a realização desse projeto foi a arquiteta Lina Bo Bardi, que criou o especialíssimo teatro do Sesc Pompeia, que permite abrigar duas plateias distintas com um palco no centro delas. De um lado, o público pode ver As Três Irmãs, de Tchecov. Do outro, a peça é “A Semente da Romã”, do dramaturgo Luís Alberto de Abreu. O primeiro é a encenação clássica de um espetáculo teatral, enquanto no segundo se presencia os bastidores da montagem, “nas coxias”. Um jogo de cortinas separa as duas encenações, sendo que numa delas os espectadores acompanham as falas por fones de ouvido.
As duas peças não estão diretamente relacionadas, o que permite assistir a apenas uma delas sem prejuízo de compreensão. Só é possível assistir as duas apresentações em dois dias diferentes. Cada peça tem duração de três horas, com um intervalo de 10 minutos. Mas se diretamente não se relacionam, as montagens se unem de forma indireta por questões mais filosóficas antecipadas pelo clássico russo de 1900 e que continuam válidas no Brasil do século 21.
Se em As Três Irmãs, Tchecov refletia sobre a utopia da felicidade, em A Semente da Romã as indagações de seis atores coadjuvantes giram em torno de qual é o papel do teatro na realização dos sonhos individuais e coletivos. Na primeira, as irmãs Irina (Lucia Bronstein), Masha (Miriam Rinaldi) e Olga (Ondina Clais) vivem a imaginar o dia em que voltarão a Moscou, o lugar da infância delas e onde idealizam que esteja a felicidade. Enquanto isso não ocorre, elas transitam de estados de pura excitação para os da mais profunda letargia e tristeza. As Três Irmãs se passa no interior da Rússia, início do século 20, em um vilarejo provinciano e sem muitas pretensões.
Com tradução inédita a partir do original feita pelos diretores das duas peças, Marina Nogaeva Tenório e Ruy Cortez, a obra-prima do escritor russo aparece incidentalmente na do dramaturgo brasileiro, em pequenos diálogos que ajudam a desnudar como uma peça teatral pode acontecer. No palco que simula o camarim onde cabem aos atores coadjuvantes esperarem as suas deixas, outros assuntos vêm à tona. Desde problemas familiares, financeiros, amores não-correspondidos e a dúvida sobre continuar ou não a fazer teatro surgem no que seria o último dia do espetáculo.
Em A Semente da Romã, os veteranos atores Walderez de Barros (que interpreta Ariela) e Antonio Petrin (Raul) relembram como chegaram onde chegaram e aconselham os mais novos, com questionadores diálogos sobre a evolução do próprio teatro. Com pequenas pontas em As Três Irmãs, os dois acabam tendo mais espaço para protagonizarem o texto e se revelarem ao público, como grandes atores que são, nessa montagem, contracenando com Ondina Clais (Katia), João Vasconcellos (Díon), Maria Manoella (Tânia) e Eduardo Estrela (Augusto).
As duas peças, a cargo da Companhia da Memória, sofreram uma perda irreparável. A previsão inicial é que ela estrearia em abril de 2020, mas a pandemia do coronavírus adiou o projeto. Quem participou desde o início dele foi Sérgio Mamberti, que interpretaria o personagem Guilherme em A Semente da Romã e Ferapont, em As Três Irmãs. Antonio Petrin o substituiu no texto russo clássico, mas na peça brasileira criou-se um novo personagem e uma nova situação. O elenco, nos bastidores, também vive o luto pela perda recente do personagem Guilherme. É nessa hora que a linguagem e a metalinguagem do teatro se confundem, prestando belas homenagens com imagens gravadas de Mamberti.