Se a Espanha legou ao mundo Picasso e Dalí; a França, Monet e Renoir; a Holanda, Van Gogh; a Itália, Leonardo da Vinci e Michelangelo; o Brasil não fica atrás com Portinari, o pintor brasileiro de maior reconhecimento internacional. Duas exposições, uma recém-aberta no Rio e outra em São Paulo, em suas últimas semanas de exibição, celebram a genialidade de um dos mais cobiçados artistas plásticos do País, cuja a quase maioria de sua obra pertence a colecionadores particulares.
“Portinari Raros”, em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), no Rio, e “Portinari Para Todos”, no MIS Experience, em São Paulo, são oportunidades únicas para mergulhar no peninsular acervo do pintor paulista. O que se verá nessas duas exposições é um conjunto de cerca de 200 obras, 50 na capital fluminense e o restante no espaço interativo de São Paulo. Mas elas representam só um fragmento de sua profícua produção, que foi devidamente catalogada e é composta de mais de 5.300 pinturas, desenhos e gravuras atribuídos ao pintor.
A exposição de Candido Portinari no Rio, que foi aberta em 29 de junho, revela obras pouco ou jamais vistas pelo público, o que pode gerar uma certa estranheza para os que já estão familiarizados com o traço do pintor paulista. Estamos mesmo diante de um Portinari ? Ou de que fase são os rascunhos, desenhos e óleos, que perpassam as nove salas do CCBB?
Com curadoria de Marcello Dantas, que também assina a exposição do MIS Experience, “Portinari Raros” é feliz ao abarcar as diferentes referências presentes na obras do pintor, das expressionistas aos cubistas, dos renascentistas aos surrealistas. A expografia no CCBB distingue oito temáticas que ajudam a compreender a trajetória de Portinari: “Paisagens”, “Desenhos”, “Infância”, “Carajá”, “Balé Iara”, “Gráfica”, “Fora de série” e “Flores”.
Descobre-se, por exemplo, que Portinari fez de seu ofício como ilustrador de cartazes políticos para a Legião Brasileira de Assistência, durante o período da Segunda Guerra Mundial, uma forma de resistência e protesto diante da ameaça do fascismo. Em “Gráfica”, vemos o desenho de uma suástica nazista sangrando por sobre o mapa do Brasil, numa clara alusão ao risco que os brasileiros corríamos (corremos?). “Minha arma é uma pintura”, escreveu certa vez Portinari.
Na sala “Balé Iara“, vê-se um Portinari figurinista e cenografista. Em 1941, a Original Ballet Russe excursionou pelas Américas, e na passagem pelo Brasil procurou inspirações modernistas de artistas para as apresentações. Coube ao poeta Guilherme de Almeida o argumento da montagem, a música ao maestro Francisco Mignone, e os cenários e figurinos, a Portinari. “Iara” é considerado o primeiro balé brasileiro a entrar no circuito internacional. A obra “Paisagem com Urubus” (1944) está presente nesta sala.
Nascido em Brodowski (SP), em 1903, Candido Portinari cresceu no cafezal onde seus pais, imigrantes italianos, trabalhavam. Foram eles que, apesar de pobres, perceberam o talento do garoto que começou a pintar aos 9 anos, e o enviaram ao Rio, sete anos depois, para estudar na Escola Nacional de Belas Artes. Aos 20 anos, já era reconhecido nacionalmente, mas não demoraria a alçar voos maiores. Em 1928, ganha uma viagem para Paris, onde vai viver por dois anos. Volta com um olhar renovado, e um interesse particular pelo Brasil profundo.
Em “Portinari Raros”, pode-se notar o abandono da tridimensionalidade de suas obras, como na sala “Flores”, em que o compromisso com a volumetria das imagens já não está tão presente. O pintor queria experimentar diferentes técnicas, algo que anteciparia um problema que enfrentou na vida real. Outros destaques da exposição do CCBB estão as pinturas em óleo sobre tela o painel em óleo sobre madeira “Flora e Fauna Brasileiras” (1934), “Jangada e Carcaça” (1940) e “Meninos com Balões” (1951).
De tanto pintar a óleo, acabou por receber a recomendação médica de fugir dessas pinturas. Era 1954, e a intoxicação por chumbo já tinha atingido níveis incontroláveis. Foi o que fez a se dedicar a murais e afrescos, uma característica quase identitária de sua obra. É dele a monumental obra, os painéis “Guerra” e “Paz”, encomendada pela ONU para a sua sede em Nova York – por ironia, em 1956, as autoridades norte-americanas impediram Portinari de visitar os Estados Unidos, por ser filiado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), chegando a se candidatar a deputado federal e a senador.
A exposição termina com o “Carrossel Raisonné”, que são os livros comentados e completos contendo as 5,4 mil obras do artista, que no CCBB são projetadas em um painel multimidiático e rendem cerca de 4 horas de duração.
Portinari é um dos artistas brasileiros de maior reconhecimento mundo afora, mas não tão valorizado quanto Tarsila do Amaral, por exemplo (o quadro “Caipirinha” foi arrematado em leilão, em 2020, por 57,5 milhões de reais). E é também um dos mais celebrados, graças ao trabalho de seu filho, João Candido Portinari, um renomado matemático que depois de cumprir sua própria carreira acadêmica decidiu mergulhar na preservação e divulgação, democrática, da obra do pai.
O catálogo “Raisonné” foi um dos frutos do Projeto Portinari, que durante 21 anos conseguiu mapear por onde andam as obras do pintor paulista. O acervo pictórico e documental está presente no site portinari.org.br. Se em “Portinari Raros” há uma exposição que privilegia a introspecção e a reflexão, sensitiva, a mostra no MIS Experience aposta no lado instamagrável da arte. No espaço na Água Branca, próximo à Marginal Tietê, estão sendo projetadas mais de 150 obras do artista.
A mostra em São Paulo é dividida em três áreas expositivas. A primeira delas apresenta sete instalações nas quais o público pode “interagir” com as obras, trazendo a trajetória de Portinari. Já o bloco do meio, a sala Portinari, a imersão é mais completa, com pinturas famosas sendo projetadas em tamanho monumental, cujas imagens já rodaram os algoritmos do Instagram diversas vezes (#PortinariParaTodos). O último eixo procura relacionar a importância do artista brasileiro para a arte nacional, suas relações com a alta intelectualidade de sua época, mas também o que marcou Portinari: a sua vinculação com a cultura e a história do Brasil.
O Projeto Portinari tem sido responsável pela realização de uma série de exposições ao longo dos anos, de “O Brasil de Portinari” (1997), passando por “Portinari, Pintor da Paz” (2003) e o “Projeto Guerra e Paz” (2010), até essas em cartaz em São Paulo e no Rio de Janeiro. Em 2023, o pintor paulista completaria 120 anos. Em fevereiro deste ano, completaram-se 60 anos de sua morte, no Rio.
Adorei o texto sobre Portinari.