“Estamos todos já cansados da luta”, afirma Chico Maranhão

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Chico Maranhão
Chico Maranhão - foto Vera Albuquerque

Em 2019, um encontro com Chico Maranhão no bar de refugiados palestinos Al Janiah, em São Paulo, resultou na entrevista a seguir, que por motivos alheios ficou inédita até este momento. A publicação de Lembranças Lenços Lances de Agora, de Celso Borges, dá oportunidade de reparar o ineditismo, já que Maranhão, então lançando o álbum duplo Contradições (2018), fala de muitos dos assuntos abordados no livro de Borges. De quebra, revela que conseguiu escrever uma resposta ao discurso do Caetano Veloso de 1968 somente em Contradições, 50 anos depois, na faixa de abertura denominada “Mandioca Pinga Sushi”. “Ficava machucado, entendia mal, mas não tinha a menor condição de chegar e responder numa entrevista, me expor”, afirma, referindo-se a Caetano, mas também a quaisquer outras críticas da época.

Violonista na montagem teatral do poema Morte e Vida Severina (1965), de João Cabral de Melo Neto, musicado por Chico Buarque, Maranhão convivia com o outro Chico na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, privava do convívio da família Buarque e vivia calado, introspectivo, um maranhense em águas desconhecidas. Voltou de São Paulo para o Maranhão em 1971 e seguiu fazendo algo que ainda hoje, mais de meio século depois, ele diz não saber se é ou não é música. Na revisão das décadas passadas, revela que nos festivais escondeu a raiz maranhense, porque o que era visto como “folclore” era rejeitado pelos modernizadores da canção. “E a coisa que eu menos queria na vida era ser um reacionário, um inocente útil. Eu detestava isso.”

Afirma, também, que deveria ter vencido o festival da Record em 1967, à frente dos até hoje controversos Edu Lobo e Chico Buarque, tradicionalistas, Gilberto Gil e Caetano, recém-tropicalistas. Diz que sua canção, o frevo “Gabriela”, escondia uma convocação do bumba meu boi maranhense e era portanto político. “Mas só eu sabia”, constata. “Eu vinha só pra te ver, Gabriela/ só pra te ver, Gabriela/ dançando meu frevo quente/ na roda que vai à frente/ chamando a toda gente/ o padre, o juiz, o incompetente/ os outros civis junto com o tenente/ o mal e o bem, qualquer um eu descrevo/ dançando o frevo contigo/ que eu vinha só pra te ver, Gabriela/ só pra te ver, Gabriela”, cantava, pelas gargantas do MPB 4. Querida do público, era ouvida por Maranhão nas madrugadas, nos bares paulistanos.

Por fim, Maranhão, que em agosto completa 80 anos (no mesmo ano que Caetano, Gil, Milton NascimentoPaulinho da Viola e outros), toca num tema-tabu para uma geração de jovens eternos: “A minha geração produziu muito, contribuiu muito, mas tudo isso tem que ser reciclado, revisto. Nós, os líderes dessa época, estamos com mais de 70 anos. Estamos todos já cansados da luta também, por que não?”.

Pedro Alexandre Sanches: Como tem evoluído a sua relação com o Maranhão ao longo da vida?

Chico Maranhão: Estou no palco e brinco de boi desde criança. São Luís é um núcleo cultural muito forte de folclore brasileiro, uma resistência muito grande. É um pouco diferente do folclore, lá no Maranhão é um foco de resistência muito grande para a gente. Fui criado nisso, porque a minha mãe, educadora de crianças, maranhense, entendeu de educar as crianças com o folclore, com a cultura popular do Maranhão, que ela sacava que era interessante e precisava passar para as crianças. E através disso ela formou cidadãos, que era o que ela queria. Tinha um jeito especial de tratar com a criança. Sou filho disso, desde os 4 anos de idade estou nessa brincadeira. Com 5 anos, subi no palco do Teatro Arthur Azevedo, o teatro mais importante da cidade, minha mãe fazia questão de fazer a festa dela lá. Subi e cantei a primeira música, “Chuá, Chuá”. Eu não sabia bem o que era isso, inclusive não gostava muito, mas tinha que me vestir de caipira do Maranhão, com a calça arregaçada e cantar. Foi um desastre. Eu quero dizer com isso que sou muito inseguro dessas histórias, mas a minha música não é. A minha música é forte, eu sei que ela é porque as pessoas gostam. Quando digo a minha música, isso abre um viés de raciocínio: não estou dizendo a verdade. Eu não faço música, faço canções. Com dona Camélia (Viveiros), minha mãe, aprendi a fazer canções. Ela não se interessava em que a criança fizesse uma grande performance, não cobrava isso de nós. Ela queria que nós despertássemos para aquilo, fôssemos cidadãos. Compreendeu essa cidadania, naquela época. Várias pessoas compreenderam isso e estão lá no Maranhão. Mas, como eu estava dizendo, faço canções, não faço música.

PAS: Qual é a diferença?

CM: Não sei muito te explicar. Sei que o que faço é o meu corpo, como ela me ensinou, sobre um instrumento, que é um violão. Podia ser qualquer instrumento, cheguei a estudar piano. Mas não é em cima do piano, é em cima do violão. É a ação do meu corpo sobre meia dúzia de cordas. Isso é uma simbiose, uma interação. E eu canto. Digo que não faço música porque não sei música, não faço música, não sei se é música. Sei que são canções.

PAS: Quando você apareceu nos festivais, não parecia tão evidente a raiz maranhense.

CM: Não, não parecia, porque não se conheciam, como não se conhecem, dados fundamentais da cultura maranhense. Porque “Gabriela” é um arreuni, que é o boi. Existe um momento do boi que é o arreuni.

PAS: Então “Gabriela” é maranhense? Não é um frevo?

CM: É maranhense, sem dúvida. Ela é um frevo, eu te explico isso. O que quero dizer é que pouco interessa ela ser um frevo. Interessa que ela é uma canção, uma canção minha, um canto meu. E esse canto “Gabriela” é uma convocação. Eu, por exemplo, achei na época que eu devia ganhar o festival. Fui agraciado com o sexto lugar. Mas eu achava que devia ganhar. Eu sabia dos mistérios da “Gabriela”. Nós estávamos num período de ditadura, e ela é uma convocação. Na hora eles não perceberam isso. Na hora em que isso é uma convocação, é exatamente uma reação ao estado político que estávamos vivendo. Mas só eu sabia. E também não sabia falar, verbalizar isso, mas eu sabia. Sabia que estava fazendo uma ação, que uma das minhas canções tinha essa ação. Ela tinha duas coisas importantes nesse festival: é um arreuni e é eminentemente alegre, jovem. É o produto de uma criança, de um menino do Maranhão.

PAS: Aconteceu coisa demais naquele festival, Sérgio Ricardo quebrou o violão…

CM: Pois é. Eu fui participar do mais importante. As seis canções eram, pela ordem, Edu Lobo, Gilberto Gil, Chico Buarque, Caetano Veloso, Roberto Carlos e eu em sexto lugar. Isso, para mim, não tinha toda a importância que tem hoje. Eu jamais imaginei que estivesse participando de uma coisa tão importante. Eu estava fazendo minha canção como fazia em São Luís. Conheci uma moça chamada Gabriela, compus uma música e ela concorreu no festival. Pois bem. Essa questão entre a canção e a música, o que quero dizer é que eu mal tocava o violão. Mal toco. O que faço é uma expressão de comunicação. Não quero fazer demagogia, mas tinha muita dificuldade de expressão, hoje não mais, melhorei muito. Eu achava que conversava com meus amigos com música, eu não tinha outra expressão, nem arquitetura nem nada.

PAS: Isso era timidez?

CM: Talvez uma certa timidez misturada com um certo desconhecimento da vida, isso é importante. Eu conhecia pouco a vida. Minha experiência no Maranhão era muito de menino. Vim estudar em São Paulo, porque meu pai disse: “Ou vai ou racha, você vai ser alguma coisa”. Todos os filhos tinham que ser doutores. Naquele tempo era mais forte, hoje a juventude tem mais liberdade. Eu estava muito infeliz naquela época lá, em 1962. Era adolescente, muito infeliz, porque meu cabelo era feio, meu olho era feio, minha roupa era feia, tudo era feio. No dia que comprei um sapato mocassim bonitinho, meu pai me tirou o pelo, me gozou. Eu vivia reprimido. Apanhava muito, fazia bobagem, tomava surras. Eu agredia as pessoas na rua, a agressão era a maneira de eu me manter vivo. Eu não tinha consciência do que era a vida. Não sabia viver. Então era uma timidez mais por causa disso. Quando compreendi isso, e minha música sempre me ajudou muito, ela me construía e eu me sentia feliz e realizado cantando, comecei a ver que precisava trabalhar isso melhor. E isso me construía. A música me cria.

PAS: E a arquitetura ficava onde?

CM: Costumo dizer que eu sempre fiz arquitetura. Eu fazia meus carrinhos, minhas casinhas. Sempre fiz arquitetura no sentido mais singelo da palavra. Para mim foi muito simples a arquitetura da FAU, os conceitos se ampliaram, tive colegas maravilhosos, cursos maravilhosos.

PAS: É verdade que você era da mesma turma do Chico Buarque?

CM: Não, ele era uma turma na frente. Mas acontece que nessa época se misturava tudo. Encontrei no grêmio da FAU um núcleo de amigos que se reuniam para tocar samba, era exatamente o que acontecia com dona Camélia lá no Maranhão: um grupo de crianças cantando e conhecendo um aspecto da nossa cultura.

PAS: Era samba?

CM: Era samba, era tudo. Cada um mostrava sua coisa, baião, tudo. Quem tocava tocava, quem cantava cantava.

PAS: Pergunto porque o samba é forte no Maranhão também, não?

CM: Sim, acho que qualquer coisa que esteja sendo feita no Maranhão, dada a sua pureza de cultura, é realmente forte. Esse dado é importante, porque é puro, no bom sentido. Com todas as influências, mas bom. Tive sorte, sou filho de uma terra muito rica, uma cultura muito forte. Quem faz essa cultura? Os negros, exatamente os descendentes dos escravos. É uma maneira de reagir. Pois bem, comecei a perceber que eu só poderia me desenvolver se eu trabalhasse essa música com cuidado e afinco e tentando conhecer as outras coisas. Então me dispus a isso. E continuo fazendo essa canção, e é evidente que aí você estudou um pouco mais, toca um pouco mais o violão, conhece mais dó, ré, mi, fá, sol, lá, si, dó, vai se desenvolvendo mais. Mas a música me cria, e o que interessa como artista aí é a impressão da minha personalidade. Não sei se minha música contribui socialmente, se pretendo impressionar esteticamente, não posso te afirmar. Sei que acontece algo misterioso.

PAS: Por que houve essa dupla militância sua, em arquitetura e música?

CM: Eu tive que entrar na arquitetura. Eu tinha saído de casa na época para fazer vestibular. E descobri São Paulo, que era o lugar mais distante e desconhecido do mundo. Por que arquitetura? Eu nem sabia o que era arquitetura, nem essa palavra. Minha mãe, dona Camélia, descobriu Brasília, era ligada. Brasília foi 1960, Oscar Niemeyer, e ela se fascinou e chamou um ferreiro para fazer o portão da minha casa que tivesse o símbolo de Brasília, aquele símbolo tradicional. Isso imediatamente, em 1961, nem havia Brasília, ainda estava nos candangos, no chão de areia. E ela mandou fazer, fez, eu estava lá, filho dela e soube que existia arquitetura. É isso que eu quero fazer. Mas por que isso? Porque eu queria fugir da infelicidade que vivia, queria sair daquele universo. Estava com o saco cheio de ter o cabelo feio. Tinha que fazer alguma coisa. E inventei: quero fazer arquitetura em São Paulo. Meu pai bateu palma, maravilha, minha mãe também, “está aqui o meu artista, vai ser arquiteto”. E aconteceu de eu chegar e meu pai me botar no (colégio) Anglo Latino. Ele sabia de algumas coisas, pagou o Anglo Latino. Eu estava feliz da vida achando que tinha conquistado minha independência.

PAS: Não tinha?

CM: Estava ótimo, jamais imaginei que ele estava pagando minha pensão, minha comida. Eu não pensava nisso. Estava livre, então estava felicíssimo. Isso me ajudou a estudar matemática, que era uma dificuldade. Eu estava livre, podia escolher as coisas. Mas dura pouco, né? Me apaixonei até aprender aquelas equações que eu detestava. Aprendi e passei no vestibular, matei um problema. Passei como dependente, fiquei esperando vaga, entrei na FAU. Um belo dia, descobri que meu pai recebia mensalmente um relatório do que acontecia comigo pelo cursinho Anglo Latino. Sabia onde eu estava andando, o que eu estava fazendo, estudando, em que eu ia bem ou não. Qeixeirauando eu soube disso foi uma decepção: caceta, eu não me libertei, continuei amarrado. O jeito era usar o violão. Toda noite o violão, fui cantando as minhas canções.

PAS: A música representava a liberdade?

CM: A liberdade. Ela me deixava feliz, era onde eu ficava só comigo mesmo, me interiorizava. E cantava isso e não sabia o que eu estava cantando. Fiz uma música chamada “Verdureiro” (gravada em 1967), que as pessoas gostavam muito, que era o verdureiro de São Paulo naquela carroça e o verdureiro do Maranhão, essa mistura de coisas. Eu cantava “Verdureiro” nessas reuniões nossas, tinha um colega que dizia: “A escarola, freguesa, a escarola!”. Ele imitava o ambulante verdureiro, isso é uma maravilha. Pena eu não ter condições de ter gravado isso. Eu não tinha condições de realizar esse disco se as pessoas não me ajudassem.

PAS: Mas você fez.

CM: Fiz. Cheguei a fazer, fiz pela Discos Marcus Pereira, foi uma luta, mas fiz.

PAS: Marcus Pereira foi um homem importante nesse contexto, não?

CM: Sim, Marcus me ajudou muito. Ele foi fazer meu disco (Lances de Agora, de 1978) no Maranhão, quando eu estava já estressadão. Esse processo foi penoso para mim, os festivais foram penosos. Vou abrir um parêntese aqui, houve uma questão no terceiro festival (3º Festival Internacional da Canção, da Globo), já tinha feito “Gabriela” e imediatamente teve outro festival. É onde aconteceu o discurso de Caetano, aquele famoso discurso do “É Proibido Proibir”. Aconteceu um negócio interessante, “Gabriela” tinha feito sucesso, eu ouvia de madrugada na avenida São João, nos bares. Eu estava impressionado com aquilo e não sabia administrar. Os meus amigos que fizeram o festival todos tinham muito mais estrutura do que eu. Todos eles, Gil, Caetano, Chico, Edu, Roberto. Mas a “Gabriela” se impôs, e imediatamente tinha outro festival.

PAS: Qual foi a música?

CM: Foi “Dança da Rosa”. Eu tinha várias músicas, já tinha “Cirano“, uma música interessante, que entusiasmou Marcus e ele resolveu gravar (em 1969, num disco dividido com Renato Teixeira). Mas eu queria fazer uma música nova, queria provar para mim que eu era capaz de criar uma música para o festival. Eu entrava nesses sonhos. Podia ter posto várias músicas, até “Verdureiro”, as portas já tinham se aberto para mim na música popular brasileira. Mas eu não tinha nenhuma noção de como competir. Não sabia o que era competir, essa palavra não existia na minha vida. Sentei e fiz “Dança da Rosa”. Eu andava muito só, solitário, não tinha um grupo em São Paulo. Pensava: Chico Buarque tem o grupo dele, MPB 4, olha que coisa, Caetano está com Gil, tem um empresário. Eu ouvia a música do Edu e identificava exatamente onde Edu tinha aquilo, que era no Recife, nas coisas populares do Recife, no maracatu. Aí fiz “Dança da Rosa”, estava desesperado porque estava só. Não queria fazer mais um maestro da minha música. Procurei um amigo, Luiz Horta, ele disse: “Tem um grupo que toca jazz, Traditional Jazz Band, e tem um cara que toca clarinete. Você não quer procurar esse cara? Ele é músico, pode te ajudar”. Quando ele falou clarinete, estourou a cabeça, é para mim o maior instrumento da música popular brasileira. Marquei com esse cara, cheguei lá e encontrei ele ensaiando a banda. E ele era uma pessoa impressionante, chama-se Tito Martino. Ele toca balançando o corpo todinho, toca com o corpo. Pensei: esse cara tem que fazer a minha música. Ele disse: “Só tem uma coisa, eu faço jazz e não abro”. Digo: fica calmo, faço frevo, também não abro. Então como é que faz? Juntamos as duas coisas. Eu jamais tinha pensado em conhecer a Traditional Jazz Band nem o dixieland. Tinha um cara que tinha uma tábua de lavar roupa, uma percussão, tem uns sinos, isso serve para a minha música. O outro tocava trombone, outro baixo acústico, juntamos e fui junto com Tito ajustando o frevo de “Dança da Rosa” com dixieland. Foi uma coisa híbrida. Eu estava pouco sabendo, queria ter esse grupo junto comigo, ensaiar com o cara na casa dele, ter domínio do negócio. E fizemos, fizemos o arranjo, inscrevi a música, a música foi aceita. Me recordo que comecei a acordar para as coisas, porque puseram minha música como a primeira do festival. Quando soube, tomei um susto. Já estava acordando para as coisas, pô, isso é sacanagem, vou ser queimado. Primeira música é se queimar, mas não tem nada, eu confio na minha música. Eu queria fazer cultura popular, São João, todo mundo cantando. Eu sabia que queria isso, e me virei. Já tinha feito “Gabriela” com o MPB 4, veio o Quarteto 004 do Rio de Janeiro e cantou junto comigo. Eu queria já tocar o violão, fazer a minha presença, já estava despertando. Posso arrasar a música, mas vou tocar, quero participar. Por falar em participar, você não imagina a dificuldade que eu tive em participar do movimento universitário de esquerda. Eu não sabia o que era isso, como me comportar, mas abri minha cabeça para fazer. Ia para passeata, não sabia o que era aquilo, mas lutava para crescer. Esse processo me desgastou muito, chegou um momento que não aguentei mais, pirei. Pirar é perder o senso de realidade, o estresse, tudo isso.

PAS: Em que momento?

CB: Em todo esse momento, essa carreira toda. Isso vem vindo. Mas deixa eu fechar a história da “Dança da Rosa”. Ensaiei com os meninos, vambora. E pedi para Martino: toca isso com alma, manda ver. Fomos para o primeiro grande ensaio, vamos lá. Estourou, senti isso no ensaio, muito bem, estamos na linha, a televisão se impressionou, lá vem esse cara de novo. Isso estou raciocinando hoje, essa consciência eu tenho hoje, mas eu sabia que estava mexendo na ferida de um problema da música popular brasileira. Sem saber que era música popular brasileira, mas sabia que aquela canção, com aqueles quatro meninos, era o que eu queria. Tinha força. E fomos para frente e no dia mandamos o pau e nos classificamos. Deixa eu te contar agora o que acontece. Caetano estava começando, ou já estava pensando na tropicália, na junção ou na abertura do horizonte da música popular brasileira. Ele e Gil queriam misturar tudo. Eles conversavam entre eles, é claro, e eu não conseguia conversar. O que me aconteceu foi essa música. E tem mais uma: “Dança da Rosa” não é outra coisa a não ser a mesma “Gabriela”. Sem eu saber, tinha o mesmo arreuni, a mesma alegria, muito parecida. Eu achava que era melhor eu me repetir do que copiar os outros. Então, como Caetano estava montando isso aí, no dia da “Dança da Rosa” não sei o que aconteceu com ele, mas, quando subiu no palco vestido de plástico e tomou aquela vaia, eu assisti. Eu estava conversando com Geraldo Vandré na subida da escada que vai para o mezanino, acertando que eu ia fazer o programa dele. A essa altura, a Record já tinha contratado Chico, Edu, Vandré com o grupo dele, os caras mais ligados a Nordeste. Eu ia entrar nessa, estava conversando com ele de fazer “Verdureiro” no programa dele. E Caetano: “Pá, pá, pá, quem fez as coisas fomos eu e o Gil, eu que abri esse negócio. Ano passado o Maranhão apresentou aquela música ‘Gabriela'”, não lembro os detalhes, “e vocês aceitaram. Acontece que hoje ele fez a mesma ‘Gabriela'”, Caetano é danado, “e vocês aceitam ele com arranjo americano”. Ele estava se referindo ao charleston, e eu não tinha nada que ver com isso. Eu não estava fazendo transformação nenhuma na música popular brasileira, não tinha essa intenção. Eu queria subsistir como tal, me criar, como falei. Nada de um valor estético, estética existe na minha obra. Nada de valor social, valor social existe na minha obra. Mas nada disso era o importante, o importante é que isso me forme, me crie, corrija as imperfeições que vêm do Maranhão, construa e reconstrua.

PAS: Que efeito teve sobre você o discurso?

CM: Ele disse: “Vocês aceitaram Maranhão agora com uma música charleston, por que não querem me aceitar?”. Eu ouvi isso, Vandré disse: “Ele falou de você”. Eu era igual a ele, nós estávamos no mesmo nível. Gostei disso, ele se referiu ao amigo, ao companheiro de luta. Gostei, Caetano falou em mim, porra, isso é muito bom. Ele era meu colega, não era o Caetano que é hoje, era também um menino lutando para se afirmar. Quer dizer, existia uma paridade, uma igualdade aí. Tenho certeza disso. O que eu não tinha certeza, não sabia, era que eles já estavam competindo. Já estavam trabalhando para se impor no mercado. Eu estava lá ligando para mercado? Quando ele falou o discurso dele, corri lá atrás para falar com ele, para dar uma força, vi que Gil chegou a entrar no palco. Mas não consegui passar pela multidão, e também tinha dúvida: o que vou fazer lá? Pensei: só tenho uma coisa a fazer, vou responder com uma música. Fiquei com isso na cabeça. Uma semana depois, o diretor da Philips, André Midani, fez um compacto com o discurso do Caetano. E cortou a parte que ele fala do Maranhão. Lançou. Quando vi que não tinha meu nome, disse: porra. Acordei. O negócio está sério. Me tiraram. O grupo baiano está certo, está jogando pesado. Criou-se aquela polêmica maluca, inclusive com Chico no meio, e eu era do grupo do Chico, por causa da FAU. Comecei a tomar as porradas que eu não tinha nada a ver. Chico tem a vida dele. Nós somos amigos? Somos. Sou amigo dele, da família dele, fui, somos. Frequentei muito a casa dele, mas ele cuidou com a vida dele e eu com a minha. Ele ouvia as minhas canções, teve oportunidade de falar alguma coisa sobre uma canção minha, “o que você quis dizer com ‘vai vender o seu samba’?”. Ele viu isso na música “Cabocla” (1969), a música fala isso, “bota a gravata no pescoço e vai trabalhar”. Eu também não respondi nada. O processo em mim é meio lento, a velocidade é lenta. A velocidade do Maranhão em mim é uma velocidade um pouco diferente. Então eu não respondia certas coisas, aquilo ficava, eu ia responder um tempo depois. Acabava respondendo, mas um tempo depois, havia um processo de maturação, de ter que pensar direito o que esse cara quer dizer. Mas isso jovialmente falando. Não vou dizer que amadoristicamente, porque não é, mas jovialmente. Então ficou pesado, porra, me cortaram. Comecei a fazer uma análise de toda a situação, aí fui vendo o quadro. Isso não é de um dia para o outro. É claro que quando Caetano fez o discurso foi penoso para ele também, ele também saiu de lá arrasado. Depois ele disse que não saiu, mas tudo bem, depois é depois. Aí, cacete, fui pensar o seguinte: eu atrapalhei a vida do Caetano.

PAS: Você se sentiu culpado?

CM: Eu não fiz nada. Comecei a compreender que o que aconteceu foi que ele, penso eu, deve ter temido a “Dança da Rosa”. Tanto é que depois ele falou para os amiguinhos: “‘Dança da Rosa’ é ‘Gabriela’ de suspensório“. Eu soube disso. Ficava machucado, entendia mal, não tinha a menor condição de chegar e responder numa entrevista, me expor. Não havia essa condição. Isso veio a acontecer agora, depois de quase 50 anos. E aí vou responder esse rapaz com música, que era a minha saída. Me senti ferido quando ele cortou meu nome, me senti machucado, e entendi um pouco mais.

PAS: Qual música você fez?

CM: Eu não conseguia fazer a música. Não consegui fazer. A música durou 50 anos para eu fazer, chama-se “Mandioca Pinga Sushi”, está no disco Contradições (2018). O disco Contradições está falando exatamente disso, dessa contradição toda. É minha obra de dez anos para cá. Em “Mandioca Pinga Sushi” eu digo que Caetano falou bobagem. Fiz várias músicas nesse caminho que eu não gostava. Eu não dizia. Às vezes ficava agressiva, ou boba, até que “Mandioca Pinga Sushi” bateu, essa música vale. O disco é todo contraditório, e curiosamente lanço no dia 1 de dezembro de 2018, um mês depois o Brasil põe no governo um cara que é uma puta contradição. Que é isso, Chico Maranhão, o que você está fazendo? Olha onde você está caminhando com essa sua canção. Nós estamos numa contradição absurda.

PAS: Qual foi o desfecho da “Dança da Rosa” naquele festival?

CM: Sim, a música foi até mais para frente, mas no finalmente não conseguiu sucesso. Não deu para acontecer. Ela aconteceu nesse período, de um mês talvez, e acabou. Hoje resgato os pedaços dela, tem toda uma reflexão que eu não tinha na época e passei a ter. Fecha esse parênteses. Esse caminho é estressante, duro. Chegou um momento que pirou, perdeu a realidade, já tinha feito muito da minha pobre cabeça. Resolvi voltar para o Maranhão. Não voltar, resolvi caminhar para frente. E, já que eu tinha o Maranhão, que é uma terra muito boa, vou caminhar para frente em São Luís. Fui morar lá de novo e tocar a música para frente. Assim fiz, e o que aconteceu? Eu estava muito desestruturado, minha personalidade estava muito desestruturada. Fui para a minha raiz, para o tambor de crioula, para o boi. Montei um grupo de tambor de crioula, toquei tambor de crioula, paguei promessa, passei a viver outro momento da música, outra consciência. Li muito, estudei muito, fortaleci muito, saí da dificuldade, reconstruí a personalidade e toquei a música para frente.

PAS: Hoje você mora onde?

CM: Hoje moro aqui em São Paulo, na Parada Inglesa. Cheguei com esse disco e decidi voltar a morar em São Paulo. É minha terra, eu gosto de São Paulo. Comprei uma casinha singela, como eu queria, e moro com minha mulher lá. Passei quase 50 anos no Maranhão.

PAS: Vandré não poderia ter sido o seu grupo?

CM: Não, poderia, só que Vandré estava muito mais acima. Vandré tinha uma posição mais estabilizada, já vinha trabalhando com a música fazia muito tempo, já tinha um programa, já era contratado pela televisão. Eu não conseguia isso porque não estava ligado. Fui, me fortaleci, aprendi muitas coisas da cultura maranhense novamente e levantei. Cheguei a fazer o disco O Brejeiro (1988), com o ensino de dona Camélia, onde brinquei o boi. Produzi um disco do Boi da Liberdade (1988), um boi de zabumba que eu conhecia muito pouco, de um líder muito importante, Mestre Leonardo. Me entrosei com o grupo dele, brinquei o boi dele etc. Me reconstruí. É sempre o processo da música me reconstruindo. A arquitetura ficou um pouco num segundo plano. Faço as minhas casas eu mesmo, meto a mão na massa, não há problema. Mas, voltando à questão da músicas, sou muito corpo, o meu corpo vai sobre um instrumento e se impõe. Às vezes o instrumento ganha, às vezes o corpo ganha. É uma simbiose. Não posso dizer a você que isso é música. É uma expressão e uma comunicação minha? É. É forte. Gosto? Sei que gosto. Mas eu passo ao largo, me construo com isso. O fato de o maestro escrever um arranjo belíssimo como Gaya fez para “Gabriela” não tem muita importância. Não tem muita importância se estou cantando boi ou uma trupiada, um aboio. Não tem importância. Para mim não tem esse valor. É samba? Não tem esse peso. Sei que “Filho d’uma Égua” é mais limitado ainda. “Roubar samba”, isso é muito mais importante do que se é samba ou não é samba. Samba para mim é um negócio que é depois. São os músicos que tocam. Sei que a minha música tem informações que são cópias do meu ser, e às vezes é difícil para o músico captar. Quando eu estava muito novo, na época dos festivais, tive a oportunidade de fazer um programa e o rapaz que ia tocar, que não vou dizer o nome, ouviu e disse: “Isso não é música, não vou tocar esse negócio”. Ficou por isso mesmo. Porque era um samba, você sabe que é um samba, mas só que a pulsação desse samba é o boi. Isso dificulta o entendimento.

PAS: Não é conhecido por todo mundo no Brasil.

CM: O boi hoje é aceito, isso é um trabalho longo. Uma das canções que fiz, Tião Carvalho, lá do Morro do Querosene, que faz o boi, canta. As pessoas já sabem, bem ou mal, não está tão difícil. Depois dessa música “Dança da Rosa”, comecei a construir uma música chamada “Descampado Verde”. Foi a primeira vez na minha canção, conscientemente, que me voltei a São Luís. Porque a imagem do descampado verde era um campo, esqueci agora o nome, um grande alagado, que a estrada de ferro São Luís-Teresina percorre, e que eu garoto ia junto com meu pai numa fazendola que ele tinha longe, no interior do Maranhão. Essa imagem bateu na minha cabeça, e comecei a fazer “Descampado Verde” (a música concorreu no festival da Record de 1968). E ao pulsar desse violão me surgiu o boi. Aí deu um curto-circuito na minha cabeça. Por quê? Porque eu não podia fazer o boi, porque o boi era folclore, e o folclore era atraso aqui no contexto. Nego levantava bandeira de que folclore é atraso, é reação. E a coisa que eu menos queria na vida era ser um reacionário, um inocente útil. Eu detestava isso, que eu conseguia intuir o que era. E agora? Está lá o “Descampado Verde” e eu não posso fazer, não sou reacionário. Lutei, inverti e usei o baião. Fugi do boi. Ficou só a imagem, o campo, a pedra do poço, pedras de cantaria onde fui criado, a imagem das primeiras meninas com quem comecei a fazer sexo. Mas sem o boi. Escondi o boi. Fiz o baião, e a música foi, MPB 4 gravou, fez um arranjo bacana, a música classificou-se, depois também não foi mais para frente. Fiquei com esse problema na cabeça. Fui para o Maranhão, toquei o boi, estudei, estudei, procurei entender as coisas, o país, o Brasil. E hoje acordo e digo: pô, eu vou fazer uma gravação do “Descampado Verde” com o boi. Porque a pulsação está lá. E estou fazendo, e vou fazer (ele regravaria a canção em 2021, no disco Exceção).

PAS: Você aprendeu que o boi não é reacionário?

CM: Aprendi. A reação, o folclore do Maranhão jamais foi reação. Ao contrário. Era resistência. Eu fui viver isso lá e vi Mestre Leonardo dando porrada nos carros que passavam atrapalhando o tambor de crioula. Os caras ficavam com medo e iam embora.

PAS: Você tem sido resistência esse tempo todo?

CM: Não sei, penso que sim.

PAS: Hoje em dia tem que resistir ao Bolsonaro…

CM: Não sei como é que é isso. Ainda não vi o resultado. Hoje consigo dizer: calma, vamos ver o que é isso. Não vou jogar fora uma construção que tive de esquerda, de socialismo, por causa desses maus entendimentos. O Brasil cresceu, vai se desenvolver, apesar dessas pessoas. Sei que está uma fase difícil. No momento sinto que não há como fechar o pensamento, estigmatizar essa problemática, ser esquerda ou direita. O país está em desenvolvimento. Não há como parar o processo para dizer que é isso ou é aquilo. O que está acontecendo no Maranhão com Flávio Dino pode dar frutos importantes para a região, sem dúvida. Mas eu não quero arriscar nada agora. É muito cedo. Tem todo o outro país, não é só o Maranhão. E as dificuldades são muito grandes, essa corrupção toda. Tudo isso está em processo muito forte, que é o processo de desenvolvimento do país. A música brasileira está dentro desse contexto, está passando por essa dificuldade. Está se reestruturando. A minha geração produziu muito, contribuiu muito, mas tudo isso tem que ser reciclado, revisto. Nós, os líderes dessa época, estamos com mais de 70 anos. Estamos todos já cansados da luta também, por que não? Quem tem mais vigor toca para frente, quem tem menos está tendo dificuldades. Mas todos nós continuamos trabalhando, produzindo. E o país é isso.

PAS: Você produziu um disco duplo…

CM: Eu produzi. Gil lançou um disco dizendo “ok, ok, ok, ok”. Aquele rapaz mineiro também fez um disco, João Bosco. Ainda não tive tempo de ouvir, estou muito ocupado. O que está acontecendo com a China, o Japão… São povos que disseminaram a sua raça pelo mundo. Tenho um amigo brasileiro casado com uma japonesa, os filhos são híbridos. Quando encontro essas pessoas olho o Japão passando por mim, seus genes, sua cultura, seus traços, seus olhos, seu cabelo, misturado com o outro. É o que eu canto no boi, “o índio enxerga o negro, o negro enxerga o branco, o branco enxerga o índio, o índio enxerga o negro, o negro enxerga o branco”. Esse é o boi de uma maneira reduzida, porque também não é só isso, nós temos influência árabe, indiana. Está cedo para se dizer alguma coisa sobre o país. Não está cedo nada, o que tem que se dizer para o país é que ele está em amplo desenvolvimento. E que nós vamos continuar nos desenvolvendo. O que é ruim vai dançar. Vai dançar. Vai ficar na sombra.

PAS: Tomara que não demore…

CM: Também essa pressa é perigosa. Deixa acontecer.

 

 

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