O centenário de Paulo Freire

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Paulo Freire
Paulo Freire, então secretário municipal de Educação em São Paulo - Foto: Márcio Novaes/Acervo SME/ Memorial da Educação Municipal

Mais de 11 milhões de brasileiros não sabem ler e escrever. O tamanho da trágica desigualdade é ainda maior, segundo alguns recortes, para os acima de 60 anos, entre pretos e pardos, e na região Nordeste. Poderia ser bem diferente se o governo militar, em 1964, não tivesse engavetado o Plano Nacional de Alfabetização, inspirado no revolucionário método de Paulo Freire. Filósofo, escritor e educador, Freire ambicionava alfabetizar trabalhadores para que eles, munidos da palavra escrita, ganhassem um naco de cidadania. Mas um Brasil do atraso, novamente instaurado no poder, negou esse direito, como tantos outros.

O centenário de Paulo Freire, pernambucano nascido em 19 de setembro de 1921 e morto em 2 de maio de 1997, abrirá uma janela de eventos e lançamentos, a começar por uma Ocupação do Itaú Cultural. A célebre empreitada freiriana de ensinar a ler e escrever 300 moradores de Angicos (RN), em 1963, num prazo de 40 horas e com custo reduzido por aluno faz parte dessa exposição, que ocupará o segundo andar do instituto localizado na Avenida Paulista – no primeiro, prossegue a Ocupação Sueli Carneiro.

O advogado Marcos Guerra, coordenador dessa experiência no sertão nordestino, relembra, em vídeo, como foi a ideia de Paulo Freire para alfabetizar a partir de um conjunto mínimo de palavras, capazes de dar conta de todos os fonemas da língua portuguesa, e que tinham de fazer parte do cotidiano dos alunos. “Quando se trabalha sobre esses temas, a pessoa se reconhece”, afirma Guerra. Dito assim parece simples e óbvio, mas para dar certo Freire se empenhou pessoalmente em instruir monitores da Faculdade de Direito, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Em Angicos, ele e Guerra participavam de seminários diários antes e durante o curso pioneiro, que lotou, tamanho o interesse dos moradores. “Ao contrário da evasão escolar, tínhamos a invasão escolar. (…) Paulo Freire foi um exemplo, grande companheiro, grande professor, um homem humilde, que nos ensinou a ser melhores e, inclusive, o que é a atitude pedagógica efetiva”, diz o advogado.

A exposição do Itaú Cultural é dividida em quatro eixos, a Formação (1921 a 1963), Angicos (1960 a 1964), Exílio (1964 a 1980) e Retorno (1980 a 1997). Contará com documentos (vídeos, mapas interativos, livros, fotografias e manuscritos), mas se estenderá também para conteúdos multimidiáticos, como podcasts e audiodescrições. Encontros semanais dialogarão sobre o legado de Paulo Freire.

Paulo Freire revisita Angicos
Paulo Freire volta a Angicos, 30 anos depois. Foto: Eduardo Maia / Ana Maria Araújo Freire

Nascido no bairro de Casa Amarela em Recife, Freire se formou em Direito, mas desistiu de exercer a profissão. Seu destino era a educação. Mesmo exilado, por perseguição dos militares, o educador esteve empenhado em mudar a forma de ensinar. Uma de suas obras clássicas, Pedagogia do Oprimido, foi escrita no Chile. Uma animação traz as páginas manuscritas do livro, um dos três trabalhos acadêmicos mais citados mundialmente. Nos 170 metros quadrados da exposição, há 140 peças, 60 delas fotografias, e manuscritos originais de À sombra Desta Mangueira, Pedagogia da Esperança e Pedagogia da Autonomia. Ao retornar o Brasil, pós-ditadura, o educador deu aulas na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), na Universidade de Campinas (Unicamp) e palestrava em várias universidades, e São Paulo teve o privilégio de tê-lo como secretário municipal de Educação, na gestão da então petista Luiza Erundina.

Detentor de 41 títulos Honoris Causa, Paulo Freire é reverenciado por intelectuais de várias matizes e áreas de atuação. A pedagogia freiriana se expandiu para muito além da educação. À também educadora Ana Mae Barbosa, Freire aconselhou, ainda no então magistério: “Educação não era repressão, mas um processo de problematização, libertação e conscientização”. Na área da saúde, Freire é também uma referência: “A pandemia que estamos vivendo, com esse desafio do imponderável, está mostrando que muita coisa está sendo feita a partir dessa herança cultural freiriana que já está no serviço de saúde”, afirma Eymard Vasconcelos, coordenador do grupo de pesquisa Educação Popular em Saúde e a Rede de Educação Popular e Saúde. “A perspectiva freiriana se associa ao campo da música justamente nessa valorização da expressão genuína brasileira, da expressão popular dos músicos populares”, acrescenta Estêvão Couto Teixeira, autor da pesquisa Alfabetização musical – o legado de Paulo Freire e a aprendizagem da música.

Por ser quem foi, Paulo Freire incomodou a ditadura civil-militar e, por tabela, incomoda Jair Bolsonaro. Em 2019, o presidente vociferou: “Os caras estão há 30 anos [no Ministério da Educação], tem muito formado aqui em cima dessa filosofia do Paulo Freire da vida, esse energúmeno, ídolo da esquerda”. Visitar a Ocupação Paulo Freire é também um ato de protesto ao obscurantismo do passado e do presente.

Ocupação Paulo Freire. No Itaú Cultural. De 18 de setembro a 5 de dezembro, grátis.

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