Marília Aguiar não é escritora nem biógrafa, mas escreveu um dos livros mais deliciosos lançados ano passado: “Caí na estrada com os Novos Baianos” (Agir, 2020, 239 p.), em que narra histórias de seus 10 anos de convívio com o grupo então integrado por seu então companheiro, Paulinho Boca de Cantor.
Do encontro inusitado em uma boate aos três filhos que tiveram juntos, Marília mergulha na memória e abre um baú de guardados que revela, num grau de intimidade que nunca soa vulgar, além de letras inéditas, que acabaram ficando de fora dos discos dos Novos Baianos, a aventura que foi ter trocado uma vida confortável por uma experiência hippie, em que nenhum dia é igual ao outro, e é preciso ser original para garantir a feira do dia, incluindo os baseados. Tudo isso entre cabeludos em meio a uma ditadura militar.
A barra era pesada, alguns integrantes do grupo chegaram a ser presos algumas vezes, pelos mais variados motivos, mas os dias eram felizes, entre o aluguel de casas sem fiador, viagens só de ida sem saber como voltariam, a escassez de contratos para shows numa época em que os Novos Baianos ainda não eram o fenômeno que se tornariam, com o clássico absoluto “Acabou chorare” (1972), frequentando desde sempre listas de melhores discos de todos os tempos, entre a crítica especializada e a audiência geral.
Fartamente ilustrado por fotografias da época, muitas delas de seu acervo pessoal, “Caí na estrada com os Novos Baianos” revela o cotidiano maluco de um bando alucinado (literalmente) por música e futebol; não à toa, o nome do time formado pelos músicos virou título de disco, “Novos Baianos Futebol Clube” (1974).
A vida em comunidade, em apartamentos sempre apertados para tanta gente (grupo, namoradas, visitas e agregados) ou no Cantinho do Vovô, sítio que foi pouso duradouro e fundamental para a consolidação da sonoridade dos Novos Baianos, além das frequentes visitas de João Gilberto: nada escapa à privilegiada memória e fluida prosa de Marília Aguiar, cuja perspectiva feminina da narrativa aponta contradições, como o machismo e a homofobia então reinantes, mesmo entre artistas tidos como a vanguarda de sua geração.
“Caí na estrada com os Novos Baianos” se junta à farta bibliografia sobre o mítico grupo, cujas histórias, de tão fantásticas, às vezes parecem pura ficção (o contrário também faz sentido: ficções sobre os Novos Baianos muitas vezes nos levam a crer que aquilo realmente aconteceu).
A paulistana Marília Aguiar dissipa a fumaça que costuma enevoar as lembranças do período, fazendo um relato humano, e acima de tudo feminino, do que significava ser uma nova baiana, mesmo não estando em cima do palco.