
Alguns poucos milhares de privilegiados puderam ver Lady Gaga, na sexta-feira, ensaiando 12 músicas. Sem máscaras, um figurino relativamente discreto e um sentimento genuíno de quem estava feliz por estar naquele palco, a cantora estava de volta ao Brasil, dez anos depois de seu último show. Mas era apenas um ensaio. O grande espetáculo cênico foi mesmo apresentado na noite de sábado (3) com toda sua magnitude para mais de 2 milhões de pessoas nas areias de Copacabana, e outras tantas pela transmissão na TV. Foi épico. Foi teatral.
A estrutura colossal da montagem nas areias de Copacabana já anunciava um evento que transcendia uma apresentação musical. E Lady Gaga, ao ocupar o palco num dia de céu aberto e clima ameno, confirmou a promessa de uma experiência teatral imersiva. Repetiu a complexidade visual já apresentada no seu show do deserto de Coachella, nos Estados Unidos, em abril – ela está em turnê de seu novo álbum, Mayhem. Mas a energia singular que pulsava no seu público da orla carioca fez da narrativa cênica proposta por Gaga um momento histórico em sua carreira.
Dividido em 4 atos e um epílogo, o show de Gaga em Copacabana começa no telão com a leitura de um manifesto. “Seu tom assombroso, sua fala inquieta, a música de sua boca, suas unhas arranhando e sua vida interior são como uma tempestade: são barulhentas”, diz ela. Serve para introduzir a era do álbum Mayhem e o conceito do espetáculo.
O ato de abertura, “De veludo e vício”, estabeleceu imediatamente um universo de opulência sombria. Em meio a figurinos de tons vermelho e ébano, Lady Gaga surge em Copacabana com um vestido em forma de cúpula que se abre revelando uma gaiola dourada com dançarinos dentro, reforçando temas de prisão e libertação. Ela vai contar a história de sua carreira, nada trivial, de altos e baixos.
Lady Gaga interpreta, no primeiro ato, faixas como Bloody Mary, Abracadabra e Judas. São acompanhadas por uma plateia que sabe de cor suas letras, se joga, chora e declara seu amor a quem a representa. Em Poker Face, uma encenação de um jogo de xadrez humano, com dançarinos (são mais de 20 em todo o show), revela uma disputa de poder e traição. O remix de Abracadabra, com uma batalha ballroom, elevou a energia da noite a uma catarse coletiva com o público.
A transição para o segundo ato, “E ela caiu em um sonho gótico”, invocou uma nova atmosfera. A iluminação azulada e os elementos cenográficos que remetiam a um imaginário sombrio trouxeram as performances de Perfect Celebrity, Disease (em que ela contracena, hamletianamente, com um esqueleto deitada no chão) e Paparazzi.
Em mais de uma oportunidade, Lady Gaga encerra uma canção e dramatiza para a câmera, permanecendo estática por alguns segundos. Ela, então, pede desculpas por não ter vindo antes, quando cancelou o show, dez anos atrás, e disse “I’m devastated”, um de tantos memes que circularam nas redes nos últimos tempos. A cantora sobe na janela do castelo no palco, com a bandeira do Brasil, e chama um fã para que ele leia em português uma carta de pedido de desculpas. E em seguida invoca Alejandro.
“O belo pesadelo que sabe o nome dela”, o terceiro ato, trouxe uma estética de cabaré, onde a intensidade sonora de Killah e Zombieboy encontrou eco em uma dança crua e expressiva. Os bailarinos vestem camisas da seleção brasileira, apropriando-se do símbolo-mor dos conservadores que tem hojeriza dela e do público nas areias de Copacabana. Já a urgência da melódica Die With a Smile, cantada pela metade nesse dueto original dela e de Bruno Mars, e a provocação de How bad do U want me foram potencializadas pelo cenário que parecia um teatro em ruínas prestes a desabar.

A calmaria relativa de “Acordá-la é perdê-la”, nome do quarto ato, ofereceu um contraste. Em um ambiente mais etéreo, canções-balada como Born This Way ressoaram com uma força de quem procurava e encontrou uma desejada renovação. Lady Gaga em Copacabana afirma que estava feliz por cantar a próxima música, porque há dez anos ela não a tinha ainda. Shallow, ao piano, criou um momento de conexão profunda com o público, enquanto Vanish into you adicionou uma camada de introspecção para esta nova fase da carreira da cantora. É nessa canção que Lady Gaga rende uma homenagem explícita ao público LGBTQIAP+.
O grand finale, “Ária eterna do coração monstro”, reservou para a icônica Bad Romance a função de clímax. Lady Gaga, em um figurino impactante, aparece no meio de uma cirurgia e renasce como um anjo. Utilizou a simbologia para representar tanto a prisão quanto a libertação. Ela conquistou poder no mundo das celebridades, disso não há dúvida, mas faz questão de frisar que foi ao custo de muito drama. E ela procura elevar a auto-estima dos brasileiros, afirmando que nós podemos nos orgulhar de quem nós somos.
A catarse de Bad Romance foi potencializada por uma iluminação que retornava a tons escuros, alternados a efeitos visuais mais luminares, deixando uma impressão hipnótica na beira-mar. Os fogos de artifício típicos de um réveillon, o elenco que se apresenta à plateia ao final e a protagonista que parece não querer deixar o palco indicam que o espetáculo havia chegado ao fim de forma apoteótica.
Assim como a crítica do Coachella elevou o espetáculo a uma ópera no deserto, a apresentação de Lady Gaga em Copacabana confirmou a artista que transcende os limites do pop tradicional. A integração entre a música e a cenografia não foi um simples acompanhamento para uma popstar, mas a razão de ser de uma narrativa performática complexa e envolvente com sua plateia. Cada ato, cada canção, era um fragmento de teatro em essência, concebido para impactar não apenas os ouvidos, mas também os olhos e a imaginação. Para os que acompanham sua trajetória, os “Little Monsters” e os que foram só pelo embalo, a ópera na praia foi uma prova da capacidade da artista novaiorquina em construir mundos por meio da arte. Uma noite memorável que ecoará na história dos grandes espetáculos da praia cartão-postal do Brasil.
Que legal pai! Texto bom d+