“Explico: ou você gosta deles logo de cara ou detesta; além disso, os dois jazzmen pouco se preocupam com o fato de a plateia gostar ou não da música que executam. (…) Hermeto Pascoal também está nessa. É por isso que recomendo seu espetáculo, mas advirto: quem for preconceituoso, quem não tiver o espírito aberto para coisas novas, quem esperar um show de digestão fácil, passe a distância. (…) O anticharme de Hermeto é o mesmo de Thelonious (Monk, 1917-1982) e Miles Davis (1926-1991)”.
A sentença é do jornalista Carlos Leonam (1939-2024), ali pelos anos 1970, depois de ter assistido a uma apresentação de Hermeto Pascoal, que completa 88 anos no próximo sábado, 22 de junho, e está registrada em sua biografia, Quebra Tudo! A Arte Livre de Hermeto Pascoal (Kuarup, 2023), em que o autor Vitor Nuzzi – que, na data, será entrevistado por este resenhista no Balaio Cultural, às 14h, na Rádio Timbira FM (95,5) – resgata as impressões do recém-falecido homem de imprensa, comparando o gênio brasileiro aos americanos, após tê-los também assistido em sua terra natal.
Recordo o trecho após ouvir e tocar, no Timbira Cult de ontem (19), por ocasião do aniversário de 80 anos de Chico Buarque, as releituras de Arnaldo Antunes para dois clássicos do compositor: “Construção” e “Cotidiano”, disponibilizadas nas plataformas digitais como single duplo – com a aparente contradição que a expressão enseja –, sob o título Chico x2. Na primeira metade do programa de Gisa Franco (que estou apresentando durante suas férias), entrevistei o cantor e compositor Nosly, maranhense atualmente radicado em Olinda/PE, e na segunda prestei as merecidas homenagens a Chico Buarque, além de lançar “Pela Janela” (Sérgio Cassiano), música nova do Mestre Ambrósio – ainda esperando que algum produtor local traga o grupo à ilha nesta turnê comemorativa com que já passaram duas vezes por Teresina/PI, para ficar num único exemplo próximo.
Volto a Arnaldo Antunes (e Chico Buarque), afinal de contas o objeto deste texto é seu lançamento: ouvir suas versões desconstruídas e nada rotineiras para “Construção” e “Cotidiano” me levou instantaneamente a lembrar de suas releituras para alguns clássicos da música popular brasileira, o que ele tem feito sistematicamente ao longo de sua discografia solo.
Releitura é modo de dizer: Arnaldo Antunes literalmente vira do avesso obras-primas como “Lugar Comum” (de João Donato e Gilberto Gil – em Ninguém, de 1995), “Judiaria” (de Lupicínio Rodrigues – no mesmo álbum), “Juízo Final” (de Nelson Cavaquinho e Élcio Soares – em O Silêncio, de 1996), “Exagerado” (de Ezequiel Neves, Cazuza e Leoni – em Paradeiro, de 2001), “A Razão Dá-se A Quem Tem” (de Noel Rosa, Ismael Silva e Francisco Alves – em Saiba, de 2004), “Acabou Chorare” (de Luiz Galvão e Moraes Moreira – em Qualquer, de 2006), “Americana” (de Frank Carlos – em Ao Vivo Lá Em Casa, de 2010) e “Como 2 e 2” (de Caetano Veloso – em Lágrimas no Mar, de 2021, com o pianista Vitor Araújo).
Um rock vira uma bossa, um samba vira um rock. Tudo foge ao convencional, passa longe do óbvio. Isto é, ou você ama ou você odeia – jogo no primeiro time. E não é diferente com “Construção” e “Cotidiano”, lançadas como forma de homenagear Chico por seus 80 anos – que tive a alegria de tocar no Timbira Cult de ontem, no bloco dedicado ao compositor.
“Cotidiano” havia sido registrada em 1999, quando Arnaldo Antunes participou do Songbook de Chico Buarque, a convite do produtor Almir Chediak (1950-2003), seu idealizador – o lançamento não deixa de ser também uma homenagem ao produtor, empresário, violonista, compositor, editor, professor, escritor e pesquisador, que completaria 74 anos nesta sexta-feira (21).
Já a reconstrução de “Construção” permaneceu inédita, mas foi feita em 2010, para o episódio “Ela Faz Cinema”, da microssérie Amor em 4 Atos, da Rede Globo, dirigida por Tadeu Jungle – que os mais atenciosos lembrarão ser parceiro de Arnaldo Antunes em “Poder” (faixa de O Silêncio), tendo dirigido o videoclipe da música, que, na tela da MTV, muito alegrou os dias deste jornalista enquanto adolescente.
No par de faixas, Arnaldo Antunes está acompanhado de velhos conhecidos. Em “Construção” por Curumin (bateria), Betão Aguiar (baixo), Edgard Scandurra (guitarra), Chico Salem (guitarra) e Marcelo Jeneci (sintetizadores Juno, Wurlitzer e Caribbean); “Cotidiano” tem Scandurra (violão e guitarra), Paulo Tatit (violão e baixo), Guilherme Kastrup (percussão) e Zaba Moreau (teclado).
Espero que Chico Buarque tenha gostado do presente. Para amar ou odiar as releituras de Arnaldo Antunes é preciso ouvi-las.
Ouça Chico x2:
Leia mais sobre os 80 anos de Chico Buarque aqui.