Ensinando meus filhos a jogar truco logo após o funeral do meu pai, após anos sem jogar truco, redescubro algumas coisas basilares sobre o jogo: é possível viver blefando nele, mas não convém se aferrar à mentira para triunfar. É aconselhável guardar algum fiapo de verdade para a última rodada, ou então aproveitar ao máximo as cartas de pouco valor. Não sei se meu pai guardava um zap no bolso da camisa (se tinha, levou consigo para o Paraíso), mas ele soube jogar a vida toda apenas com os dois de paus e o ás de copas que tinha no baralho. Uma verdadeira arte – que tento imitar sem a misericórdia do estilo que ele esbanjava.

Há homens que têm moral absolutamente racional, pensada, desenvolvida, e outros que a esculpem por instinto, em um jogo rápido e arriscado de escolhas e descartes. Meu pai, que morreu essa semana após 105 anos e 9 meses do nascimento, pertenceu grandiosamente a essa segunda categoria. Eu escrevi um livro que o tem como figura central, O Último Pau de Arara (Grafatório Edições, 2020, que possui ainda alguns poucos exemplares disponíveis da única edição), e no livro eu o comparo às vezes aos heróis de faroeste protagonizados por Clint Eastwood e pelos vilões encarnados por Lee Van Cleef (tinha uma parescência física com Cleef). Mas no final de semana, um dia antes da morte dele, eu revi na TV o original de Bravura Indômita (True Grit), de 1969, e agora eu já acho que ele esteve mais próximo do Rooster de John Wayne: postava-se do lado mais limpo com ferrenha convicção e era generoso por algum tipo de vocação inata, apesar de não precisar ser. Nunca o vi mentir, se acovardar, nunca o vi falsear a realidade, nunca o vi enganar. Ainda assim, viveu a vida toda de negociar e fazer escambo (especialmente de cavalos e cabras, território no qual foi PhD). Outra característica: ao contrário de Rooster, ele nunca bebeu nem fumou, nunca andou de gatinhas pela ravina, nunca teve a agilidade questionada, não achava divertido dormir em pulgueiros, gostava de calças e camisas bem-cortadas e botas engraxadas, de aboio e vaquejada. E, também como Rooster, dependeu fundamentalmente da “bravura indômita” da mulher (a chave do filme, não sei se vocês sabem, é essa: a verdadeira valentia é a da garota; no caso do pai, de doze garotas, para ser exato) para se projetar como uma lenda.

Já bastante fragilizado na etapa final da vida, com o tempo meu pai foi ficando menor e arredondado nas pontas, como todos ficaremos. Seu olhar era o único portal: quando se iluminava, era sinal de que estava compreendendo os chistes, as piadas e as brincadeiras que fazíamos, ou os jogos de sedução que as garotas faziam para divertir-se com seu interesse renovado. Da última vez que o vi, o olhar estava mais turvo, tinha crescido uma fina película cinza por sobre os olhos azulados que estava avançando prestes a tornar-se hegemônica. Morreu na última segunda-feira, 8, como um passarinho: o coração simplesmente desligou, ele se foi. No meio do velório, tive a ideia de arrumar uma charrete e uns cavalos para acompanhar o cortejo até o cemitério com os moleques empoleirados. Saí com Laura pela cidade, procurando, mas os cavalos e as charretes desapareceram com ele.

Em circunstâncias como essas, muitas pessoas nos confortam com um abraço e uma frase: “Fique bem, ele foi descansar agora”. É bonito e correto, mas não acho que se aplique com precisão a meu pai. Acredito que ele nunca teve essa ambição de descansar, de abandonar as “agruras” da vida somente por causa da estafa do corpo que o sustentava. Tinha outros planos, habituara-se a comer agruras da vida com farinha de mandioca. Viveu quase 106 anos justamente porque ignorou a imperiosidade do tempo. Jogou truco com o tempo munido apenas de seus dois de paus e os ases de copas, e ganhou. True grit.

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