Leonard Cohen, Tom Waits, Gil Scott-Heron, Lou Reed, Johnny Cash: algumas vozes, na música popular, soam diferentes de outras, como se não existissem para preencher um espaço na canção, mas para usar a canção como um espaço de sua autoridade, tornando-a um território sagrado. Não só pela guturalidade, pela aparição tonitruante, pelo grave cerimonial, mas pela própria presença física da voz.

Dessas, a voz de Leonard Cohen tinha um terceiro condimento: ela parecia compreender e imantar-se de toda a ternura do mundo, mesmo quando era cáustica e inquisidora. Isso o tornou o poeta dos poetas, um ídolo para intérpretes de todos os quadrantes: quase todo mundo de relevo o gravou, de Jeff Buckley a Nina Simone, de Johnny Cash a R.E.M., de Nick Cave a Pixies, de Win Butler a Beck. Jeff Buckley, inclusive, provou em praça pública a tese da ressurreição do artista ao gravar “Hallellujah” (1984), de Cohen, que o celebrizou precocemente como uma voz trágica de sua geração.

Leonard Cohen, a despeito de seus mais de  80 anos, seguia sustentando com grande leveza e presença de espírito o título de grande mestre da poesia cantada universal. Quase todo mundo relevante gravou alguma música sua ou sofreu sua influência. “Meu bom Deus, não. A escuridão repentinamente passou a ser ainda mais escura. Que homem belo, que alma linda”, disse Moby.

Canadian singer and poet Leonard Cohen i

Leonard Cohen foi alcoólatra e andou por diferentes drogas, com diversos resultados. Dedicou-se ao misticismo e a religiões díspares, com uma queda mais acentuada pelo zen-budismo. Nunca, em toda essa trajetória, alguém achará um Leonard Cohen de joelhos, na sarjeta. Parece que tinha um escudo defletor de misérias humanas. Lembrava-me um verso de Belchior: “Não quero contar vantagem, mas já passei fome com muita elegância”.

SongsOfLeonardCohen.jpegQuando lançou seu primeiro disco, Songs of Leonard Cohen, em 1967, aos 33 anos, o poeta canadense já tinha sido amigo de Jack Kerouac, vivido como um boêmio na ilha grega de Hydra, visitado Cuba durante a invasão da baía dos Porcos e publicado dois romances e quatro livros de poesia festejados pela crítica. Ele passou a fazer música como quem pega uma estrada nova desconhecida, mas estranhamente íntima.

Cohen publicaria poesia e prosa com o mesmo impacto com o qual fez música. Parecia que sempre tinha estado ali, mas iniciou já artista feito. Sua importância como literato era amplamente reconhecida, consagração que culminou com o prêmio Príncipe de Astúrias de Literatura na Espanha em 2011.

Um pouco seguidor da tradição iniciada lá no século 19 com Walt Whitman, Leonard Cohen roçava o céu da boca das profundezas com sua poesia e sua interpretação. Isso desafiava cantores e cantoras de todos os quadrantes a tentar alcançar o teto do seu abismo. Madeleine Peyroux fez bonito com uma interpretação magistral de “Dance Me to the End of Love” (1984). Aqui em São Paulo, Rodrigo Carneiro ainda vara as noites nos oferecendo uma das grandes traduções de Leonard Cohen que é possível tatear.  As novas gerações sempre souberam quem ele era. “Garotos, tirem um momento para ouvir ‘Going Home’, de Leonard Cohen, quando vocês puderem”, escreveu Benjamin Folds no dia da morte de Cohen.

Às vezes, sob um manto de folk music, ele revigora uma tradição centenária. “Acho que rebusco algo. Não gosto de chamar isso de ideias. Acho que ideias são aquilo que se quer difundir. Ideias tendem a ser o lado direito das coisas: ecologia, vegetarianismo ou antiguerra. Tudo isso são ideias maravilhosas, mas eu gosto de trabalhar em uma canção até que esses slogans, tão maravilhosos quanto as ideias que querem promover, se dissolvam nas convicções profundas do coração. Nunca pretendi escrever uma canção didática. É só minha experiência. Tudo que ponho na canção é minha própria experiência”, disse.

Todos os discos de Leonard Cohen estão pontuados por suas cicatrizes, que são muitas. Não havia a possibilidade de um disco ruim dele. Alguém disse que sua morte era “um anjo voltando para casa”. Não me ocorre definição mais precisa.

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