Um brinde às canções de Belchior, 77

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Foto: Divulgação

Como Nossos Pais é a música de Belchior mais tocada em rádios, bares, TVs e smartphones de nosso Brasilzão há um bom tempo. Considerando-se que vai completar 50 anos no ano que vem, em 2024, é algo impressionante. Foi composta por volta de 1974 e apresentada a Elis Regina em São Paulo pelo compositor, que ela conheceu durante as sessões de gravação de um disco de Vinicius de Moraes. Elis a incluiu no show Falso Brilhante, de 1975 (além de Velha Roupa Colorida, também de Belchior). Esse cartão de apresentações de Elis foi suficiente para cacifar Belchior, que tinha fracassado em seu primeiro disco, um ano antes, e o levou a ser novamente paparicado pelas gravadoras, conseguindo um contrato e as condições adequadas para gravar seu clássico Alucinação, em 1976.

Como Nossos Pais é uma protest song atípica. Sua ideia básica é a abordagem de um sentimento de impotência que o artista sente ao diagnosticar que as novas gerações dificilmente aprendem com os erros das gerações anteriores e voltam a repeti-los. Belchior confessa se angustiar com isso, e a considera uma canção amarga. Mas, ao contrário dos cantores de protesto característicos de sua geração, o cearense esteve longe de ser messiânico e professoral (é uma especial alegria constatar que o artista faz o elogio da formação pela cultura, pela degustação artística, pelas “coisas que aprendi nos discos”). Ele apenas confessava sua frustração pessoal com esses recuos geracionais de um jeito terno, com cadência de advertência fraterna e admirável refinamento poético. A canção se opõe frontalmente ao domínio da caretice e da repressão política e comportamental, ao bradar: “Por isso, cuidado, meu bem: há perigo na esquina. Eles venceram, e o sinal está fechado para nós, que somos jovens”. O jovem militante que fazia manifestações de rua por mudanças, “cabelo ao vento, gente jovem reunida”, atropelado pela repressão política, virou um retrato doloroso na parede. Belchior também se insurge com doçura contra a imperiosidade da xenofobia (“Eu vou ficar nessa cidade, não vou voltar pro sertão”) . A composição contém ainda um elemento de revolta contra a ideia recorrente, e conservadora, de que não haja nada de novo nas expressões contemporâneas da música e da arte, algo que é sempre muito esgrimido contra as novidades por um pensamento conservador. “Mas é você que ama o passado e que não vê que o novo sempre vem”, ele diz.


É preciso lembrar que a interpretação de Elis Regina, bem diferente da do próprio Belchior, acentua uma dramaticidade na canção, faz com que ela passe a ter a leitura de um desabafo romântico, impõe ali o seu característico overacting. Belchior a trata como um cantochão híbrido, sob o lençol freático do órgão de José Roberto Bertrami, mago do Azymuth, e o pulso sísmico da bateria de Pedrinho Batera. Essa canção já foi cantada por criança em reality show de talentos infantis na TV, já foi analisada por professor de canto norte-americano, já foi interpretada e regravada por dezenas de artistas da música de quadrantes diversos. E as múltiplas compreensões e abordagens que uma obra de arte permite também são parte de sua grandeza. O problema é quando se vê uma incompreensão latente em torno das canções.


Acredito que o debate recente acerca da reapropriação da canção Como Nossos Pais em uma peça publicitária tenha a ver com um fenômeno curioso dos tempos atuais: a interpretação errônea e reiterada do significado das músicas. Recentemente, por causa das “polarizações” políticas, fãs foram colocados frente ao real significado de músicas que ouviram a vida toda sem saber realmente do que tratavam, e alguns grupos reagiram mal. Fomos “subitamente” apresentados a fãs reacionários de Raul Seixas, de Belchior, de Chico Buarque, de Alceu Valença, de Roger Waters (hoje mesmo vi o caso de um ouvinte do Pink Floyd que jura que sabe mais do que Roger Waters, o compositor, a respeito das intenções da canção Another Brick in the Wall). Roger Waters chegou a recomendar, em sua turnê atual pelo Brasil, que aqueles que não aprovem o fato que o artista britânico fale de política durante seus shows fiquem no bar bebendo. Os terraplanistas também ouvem música, isso é fato; o que é bizarro é o que resolvem filtrar dela. É claro que há diversos motivos para que as pessoas finjam que não sabem o significado daquilo que estão cantando. Pode ser conveniência. Pode ser perfídia. Ou simplesmente burrice.

O TEXTO ACIMA FOI REDIGIDO ORIGINALMENTE COMO RESPOSTA A PERGUNTAS DE UMA REPORTAGEM DO JORNAL 'ZERO HORA', DE PORTO ALEGRE, E LEVEMENTE AMPLIADO. APROVEITANDO O ANIVERSÁRIO DE NASCIMENTO DO ARTISTA, PUBLICO AQUI COM O INTUITO DE CELEBRAÇÃO, LEMBRANÇA E TAMBÉM DE AQUECER DEBATES E MANTER ACESA A CHAMA DESSA OBRA NA ORDEM DO DIA. 
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