O crítico pernambucano Mario Pedrosa, morto em 1981

Nascido em um engenho em Pernambuco em 1900, o intelectual Mario Pedrosa empreendeu até seu desaparecimento físico, em 1981, uma vigorosa jornada em prol do estabelecimento, desenvolvimento e refinamento de uma crítica cultural brasileira. Mais do que pioneirismo, no entanto, sua experiência fixou um cânone, um parâmetro de atitudes e posturas éticas face à criação artística (e sua importância social e política) que segue sendo inspirador, uma espécie de baliza inabalável.

Para se compreender essa imensa influência e a persistência do pensamento de Mario Pedrosa, um dos mais citados intelectuais brasileiros em todo o mundo, o Itaú Cultural abre hoje, quarta-feira, às 20 horas, em sua sede na Avenida Paulista (pela primeira vez, no segundo andar, num espaço mais generoso), a Ocupação Mario Pedrosa, exposição multimídia dedicada à trajetória do crítico – a 60ª exposição da série Ocupações. A mostra reúne cerca de 300 peças, entre documentos, fotografias, cartas originais trocadas com personalidades das artes – como Ferreira Gullar, Hélio Oiticica, Picasso, Miró, Alexander Calder e Lygia Clark –, livros, vídeos, obras de arte de artistas com os quais trocou impressões e conselhos, como Alberto da Veiga Guignard, e depoimentos de pesquisadores, além de diversos outros recursos.

Embora seja uma exposição que aborde a trajetória de um intelectual, a mostra é dinâmica e envolvente. Sua configuração cênica reproduz uma obra de Hélio Oiticica instalada nos jardins do Instituto Inhotim, em Minas Gerais. A linha biográfica que reconstitui a trajetória de Pedrosa está distribuída em um painel de quatro metros de extensão, e cuja pesquisa é do neto do crítico, Quito Pedrosa. Esse levantamento começou por ocasião do lançamento do volume Mario Pedrosa: Primary Documents, uma publicação do Museum of Modern Arte (MoMA) de Nova York, em 2015, editado naquela instituição norte-americana por Glória Ferreira e Paulo Herkenhoff.

A curadoria da Ocupação Mario Pedrosa é do jornalista e escritor Marcos Augusto Gonçalves e dos núcleos de Artes Visuais e Acervos e de Enciclopédia e Memória do Itaú Cultural, com consultoria de Quito Pedrosa. Na noite de abertura, nesta mesma quarta-feira, haverá o lançamento do volume Obra Crítica, Vol. 1 – Das tendências sociais da arte à natureza afetiva da forma (1927 a 1951), da Companhia das Letras, organizado por Quito Pedrosa. É uma visita que pode ser ampliada logo no andar de baixo da exposição de Mario Pedrosa, no mesmo Itaú Cultural, onde ainda está em exibição a mostra Ensaios para o Museu das Origens, que materializa no mundo da prática as ideias que Pedrosa disseminou sobre acervos e museus.

Mario Pedrosa bateu-se, ao longo de sua vida, pela consolidação de um cenário artístico brasileiro autônomo e livre, tendo para isso se envolvido na criação e fortalecimento de instituições culturais (como o MAM e a Bienal de São Paulo) e ampliado sua atuação política. Socialista de convicções trotskistas (foi um dos fundadores da Quarta Internacional), Pedrosa se formou aos 26 anos pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco. De família tradicional, católica e conservadora, estudou na Suíça até os 18 anos. Filiou-se ainda muito jovem ao Partido Comunista Brasileiro, sendo enviado nos anos 1920 para Moscou. Mas, ao adoecer durante a viagem, acabou fixando-se em Berlim, Alemanha, onde frequentou cursos de filosofia e sociologia em uma universidade. Após uma viagem a Paris, travou contato com o grupo surrealista liderado por André Breton.

De volta ao Brasil, em 1929, lança o jornal A Luta de Classe e passa a militar mais ostensivamente em organizações revolucionárias. Pfreso pelo governo de Getúlio Vargas, é exilado pela primeira vez – a série de exílios, cujo último e mais longo termina em 1978, se intensifica durante o governo militar e o leva a viver na Alemanha, Chile, Estados Unidos, França e Peru. Sua antevisão das questões políticas do País o levaram a escrever a Carta aberta a um líder operário, endereçada a um então jovem sindicalista chamado Luiz Inácio Lula da Silva, texto publicado no jornal Folha de S.Paulo. Em 10 de fevereiro de 1980, no Colégio Sion, em São Paulo, um ano antes de sua morte, Pedrosa foi ovacionado durante o evento que coletou assinaturas para a fundação do Partido dos Trabalhadores. Pedrosa saudava a chegada de um novo partido que nascia não da articulação das elites, da intelectualidade, mas da junção entre a base operária e a intelectualidade.

Para enxergar e destacar a singularidade de artistas que estavam à frente do seu tempo, como Oiticica e Lygia Clark, era preciso que Mario Pedrosa tivesse desenvolvido um tipo de visão que não contemplasse somente o foco da militância marxista ou a práxis das esquerdas de seu tempo. “Ele é um cidadão do mundo, um intelectual cosmopolita. Essa experiência de cidadão do mundo é fundamental para compreender a perspectiva crítica dele. Ele não caiu nas armadilhas da cultura de esquerda, no realismo socialista. Tinha uma visão muito sofisticada da autonomia da arte. Para o Mario Pedrosa, a arte é parte da necessidade vital, humana, e isso se dá desde as sociedades mais antigas, mais tribais, da caverna ao MoMA. Ele vê a arte como uma necessidade humana”, afirmou Marcos Augusto Gonçalves, curador da exposição.

Segundo o curador, a chave para a compreensão de Pedrosa está em que ele enxergou a arte como um impulso essencial, uma necessidade vital de todas as sociedades humanas. “Em contraste com (certas unanimidades de sua época), ele percebeu os limites da vanguarda, a atuação do mercado, dando mais ênfase ao que chamava de ‘arte virgem’, algo que estivesse ali intocado pelos processos da sociedade capitalista, como a arte dos povos originários e a arte africana. A abrangência do pensamento crítico de Pedrosa se expressa de diversas maneiras, acentua a curadoria, e uma delas se revela, por exemplo, na paixão e engajamento que dedicou ao trabalho cinético do norte-americano (Alexander) Calder, “pelo encantamento quase infantil daqueles móbiles do Calder, nos quais ele enxergou uma crítica ao industrialismo”, assinala Gonçalves.

Nos ensaios que produziu, Pedrosa libertou-se dos princípios etnocêntricos que norteavam a crítica de arte do seu tempo e projetou-se para uma visão essencialmente humanista, de abrangência fundamental. Isso se mostra, por exemplo, em texto no qual analisou a obra de Paul Gauguin: “(…) essa aproximação não é só técnica, mas sobretudo de ordem espiritual, sendo ele (Gauguin) talvez o primeiro grande europeu para quem a arte dos povos exóticos, primários não é mera curiosidade, mas tão criadora quanto a dele, regida por uma necessidade plástica e espiritual tão autêntica e alta quanto a ocidental. Aliás, diga-se logo, de passagem que Gauguin revela nessa atitude uma das características mais profundas e permanentes de sua e, nesse sentido, igualmente de nossa época: o contato espiritual direto pela primeira vez na história humana de todas as culturas, passadas e presentes, pré-históricas ou contemporâneas, no tempo e no espaço. As consequências dessa interpenetração de culturas, ainda não acabaram de revelar-se em todo o seu desenvolvimento. Não se pode, entretanto, compreender a arte moderna sem o fato bem presente no espírito.”

É interessante notar que Mario Pedrosa desenvolveu seu pensamento, testou sua força e o fez basilar atuando basicamente como jornalista, primeiramente no Correio da Manhã e depois no antigo Jornal do Brasil (os contratos de trabalho com essas empresas estão expostos na mostra). “Ele nunca foi um acadêmico. O trabalho crítico do Pedrosa não se desenvolve a partir de uma plataforma acadêmica, mas no território da imprensa. Não é um crítico de raízes acadêmicas”, diz o curador.

Segundo o ensaísta Mario Doctors, Pedrosa “produziu um pensamento em aberto, colocou-se no lugar da hiância – isto é, entre o intervalo do que não existia ainda e o que estava prestes a existir –, sempre atento à realidade, sem nunca deixar de levá-la em consideração; a radicalidade do real foi seu leme”. Prossegue o texto de Doctors: “Hoje, somos surpreendidos pelo que percebeu, indicou e deixou em aberto, para que fosse preenchido pelo acontecimento. O desafio está em como manter a mesma lucidez de análise, a maneira atenta, generosa e sem concessões ou preconceitos de ver a arte e a vida. O desafio está em como manter a radicalidade do real”.

Ocupação Mario Pedrosa. Itaú Cultural (Avenida Paulista, 149). Terça a sábado, das 11h às 20h; domingo e feriados, das 11h às 19h.  
fone: 11 21681777 [email protected]
O crítico Mário Pedrosa em foto de 1975 durante exposição de Frans Krajcberg no Centro Nacional de Arte Contemporânea, em Paris
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