"Pagã" fica em cartaz até 13 de agosto, na Pinacoteca Estação. Foto: divulgação

Artista plural, a paulista Regina Parra inaugurou no último sábado (1º. de abril) a exposição “Pagã”, mostra transdisciplinar que coloca artes cênicas, visuais e literatura em diálogo, transformando o segundo andar da Pinacoteca Estação (Largo General Osório, 66, São Paulo) em um espaço cênico.

“Pagã” tem curadoria de Ana Maria Maia e conta a história de uma mulher que renuncia a uma vida socialmente confortável e inicia um ritual de descoberta e transformação de si e de seu próprio corpo. A vernissage contou com performance da artista.

A jornada de “Pagã” é contada através de pinturas, esculturas, vídeos e neons, além da performance, cerzidas como uma peça teatral, dividida em nove cenas. O quadro que intitula a exposição sintetiza a transformação da mulher, com o início desse ritual de descoberta, marcado por rupturas.

A história de “Pagã” se cruza com a de uma jovem retratada em afrescos da Vila dos Mistérios, em Pompeia, Itália, no século 2 a.C. Na mostra de Regina Parra, a jovem se confunde também com a protagonista do romance “A Paixão Segundo G. H.” (1964), de Clarice Lispector (1920-1977).

“Pagã” fica em cartaz até 13 de agosto, de quarta a segunda, das 10h às 18h, com entrada franca. O catálogo da exposição está disponível nas lojas físicas e no site da Pinacoteca.

Por e-mail, Regina Parra conversou com exclusividade com FAROFAFÁ.

A artista Regina Parra em foto de Julia Thompson. Divulgação
A artista Regina Parra em foto de Julia Thompson. Divulgação

ZEMA RIBEIRO: O enredo de “Pagã” busca contar a história de uma mulher que abdica de uma vida socialmente confortável e inicia um ritual de descoberta e transformação de si e do seu corpo. Gostaria que você aprofundasse esse conceito.
REGINA PARRA: “Pagã” se constrói por meio de nove cenas que espacializam e desenham a saga dessa personagem ao longo do espaço expositivo. O projeto se configura como um ritual de celebração do corpo da mulher, de seu prazer, de sua liberdade e de sua insubordinação. A protagonista dessa saga é tanto personagem, como arquétipo, espelho. Tentamos desenhar sua jornada de maneira que permanecesse aberta e fragmentada, para que houvesse espaço para o público entrar e criar. O argumento remete ao culto greco-romano de iniciação que aparece nos afrescos da Vila dos Mistérios, edificada na cidade italiana de Pompeia no século 2 a.C. Os painéis contam a história de uma jovem que ultrapassa o portal dos sátiros e se oferece a Dionísio, deus do teatro, do vinho, da fertilidade e da natureza. O caminho dessa jovem envolve descer ao nível animal, literalmente cair ao chão e decidir ali permanecer, engatinhar, deseducando-se do repertório até então adquirido. Só depois disso ela estará apta a voltar à forma humana e renascer como bacante, uma sacerdotisa de Dionísio que alcança o que se considera divino por meio do próprio êxtase. Em “Pagã”, essa história é interpretada em nove cenas permeadas de outras sagas e outros tempos. Nesse fluxo de aproximações, a jovem de Pompeia se confunde com G. H., uma mulher que acessa um fluxo de consciência revelador de sua condição de gênero e classe social após se deparar com uma barata enquanto limpa seu apartamento no romance de Clarice Lispector. O catálogo da exposição foi criado para ser um libreto ou “programa” contando um pouco mais sobre cada cena e guiando o público ao longo dessa história.

ZR: Artes visuais, artes cênicas e literatura se entrecruzam em “Pagã”. O que é mais fácil e mais difícil em aglutinar linguagens tão distintas?
RP: Essas diferentes linguagens e áreas sempre estiveram juntas e interconectadas no meu processo de criação. A minha pintura nunca foi uma pintura “pura”, o processo sempre aconteceu dentro de um labirinto de referências vindas do teatro, da performance, da literatura, e do cinema. O que acontecia é que quando os trabalhos finais eram expostos, esse processo de criação e essa interconexão de linguagens, não apareciam ou apareciam de forma muito tímida. Há um tempo tenho tentado assumir a importância dessas outras linguagens no meu processo e trazer isso para a exposição por meio de uma dimensão mais instalativa mesmo, pensando em um ambiente total ao invés de “quadros nas paredes do cubo branco”. Acho que com “Pagã” é a primeira vez que chego mais perto disso. Talvez uma dificuldade seja a nossa tendência de categorizar áreas e estabelecer limites no momento de finalização ou exposição dos trabalhos. Os próprios espaços expositivos e as instituições, na maioria das vezes, tentam classificar e categorizar tudo, e parecem não saber abrigar uma obra que se apresenta um pouco mais ambígua.

ZR: Como já dito, a Pagã protagonista de sua exposição multimídia, em certo ponto se confunde com uma personagem de Clarice Lispector. Que outras mulheres te inspiraram e podem ser encontradas entre as referências da mostra?
RP: Um dos desejos de Pagã é mesclar e confluir não só linguagens mas também tempos e realidades distintas, ficção e realidade. Então, quando pensamos nas mulheres que são referência para mostra, temos tanto mulheres de agora, de 2023, como figuras míticas, de tempos míticos ou personagens ficcionais do teatro. É quase como uma invocação de ancestrais, de imaginários, de histórias e de potências que trazem mais força para o que estamos traçando ali. Entre as muitas mulheres e muitas referências: Ariadne, Electra, Hécuba, Medeia, Antígona, G. H., Maria Padilha, Iansã, Salomé (14-62/74), Lilith, Joana D’Arc (1412-1431), Dandara (1654-1694), Nísia Floresta (1810-1885), Simone de Beauvoir (1908-1986), Audre Lorde (1934-1992), Angela Davis, Catherine Millet, Clarice Lispector, Hilda Hilst (1930-2004), Virginia Woolf (1882-1941), Cacilda Becker (1921-1969), Gal Costa (1945-2022), Maria Bethânia, Eliane Robert Morais, Anne Carson, Sonia Guajajara, Margareth Menezes, Erika Hilton e muitas, muitas outras. Somos muitas.

ZR: Você tem uma trajetória invejável em galerias internacionais. Há um sabor diferente entre expor lá fora e em casa?
RP: Eu sinto que aqui a conversa com o público, com os visitantes, me parece mais próxima. Compartilhamos a mesma cultura, as mesmas referências, então, sinto que a troca é mais quente, mais urgente, mais íntima mesmo. Fora do Brasil, eu sou e vou sempre ser “a artista brasileira” fazendo alguma coisa lá. Por mais sutil que isso seja, existe já uma pré-determinação ou pré-mediação no olhar de quem vê e experencia o trabalho. Por outro lado, a vantagem de expor lá fora é que às vezes nos sentimos mais livres. Se você está numa terra completamente nova, cercada por pessoas novas, a chance de você se sentir livre para se reinventar é maior. Então apesar de ter menos referências comuns, tem menos amarras também.

ZR: Gostaria de ouvir você sobre a relação com a curadora Ana Maria Maia e com a Pinacoteca, que abriga a mostra.
RP: A gente fica frisando como “Pagã” é um projeto colaborativo e a verdade é que essa colaboração começa nessa troca com a Ana Maria Maia. Eu conheço e sou amiga da Ana há muitos anos. Já fizemos outros projetos juntas e eu tenho profunda admiração pelo trabalho dela, pela escrita dela e pela maneira como ela conduz o processo curatorial. “Pagã” jamais existiria sem ela. Desde o início, desde nossa primeira conversa, quando tudo eram primeiras ideias e suposições, ela se lançou comigo com uma coragem e leveza que jamais tinha visto num processo de exposição. Eu olhava para ela nos momentos de dúvida e ela me dizia “sim”. Esse grande sim, essa abertura corajosa para o risco, e para a experimentação foram fundamentais para a construção de “Pagã”. O mesmo em relação à Pinacoteca. Na primeira conversa que tive com Jochen [Volz, diretor-geral da Pinacoteca], ouvi o mesmo “sim” entusiasmado. Mesmo diante de um projeto muito inicial. O Jochen, a Ana e toda equipe da Pinacoteca foram fundamentais para abrigar esse projeto e fazer as adaptações necessárias para acolher uma ideia que tenta o tempo todo escapar das categorias e normas do museu. Eu sempre tive um carinho especial pela Pinacoteca, e depois dessa experiência, esse carinho e admiração só cresceram. Todos no museu, desde a equipe dos bombeiros até a diretoria compartilham essa empolgação com a arte – que às vezes endurece e se perde nas grades instituições e processos mais burocráticos. Foi uma sorte contar com esse time durante o processo todo.

ZR: O teu trabalho é marcadamente político, no sentido de que aborda, em vários aspectos, o empoderamento feminino, em uma sociedade machista e misógina, com um número inaceitável de feminicídios. Superada a era “meninas vestem rosa, meninos vestem azul”, quais as suas expectativas em relação a avanços em relação à superação da violência de gênero?
RP: Eu acho que estamos saindo de um momento especialmente ruim e retrógrado, de extremo conservadorismo. Fico especialmente feliz e otimista quando vejo as transformações acontecendo nas gerações mais novas ou em conquistas incríveis da política mais recente. Por outro lado, tenho certeza de que nossa sociedade é extremamente machista e misógina. E ainda que alcancemos certas conquistas, existe uma violência velada e normalizada às mulheres que é especialmente difícil de combater. Eu acho que é uma luta constante e também um cuidado constante, no sentido de tentar educar e mostrar essas violências cada vez que elas vêm à tona. Infelizmente, acho que ainda estamos muito distantes de uma sociedade que sem titubear diga “sim”, que aceite, ou seja, que não tente calar, oprimir, ou apenas tolerar o fato de que a mulher é um ser erótico. O fato de que seu corpo é inteiramente livre e independente, não pertence ao Estado e não está à disposição de nenhum homem. Nós ainda não somos livres, mas já podemos sonhar e imaginar essa liberdade.

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