Em "Nosso Sonho", Lucas Penteado é Claudinho e Juan Paiva interpreta Buchecha - foto: Angelica Goudinho/divulgação

A história de Claudinho & Buchecha vira cinema, 30 anos após a formação da dupla de funkeiros nascidos no município de São Gonçalo, na região metropolitana do Rio de Janeiro, e consolidados como linha de frente do funk carioca no mainstream, sobretudo pelas baladas românticas, ingênuas e pagodeadas que ficaram conhecidas pela alcunha de funk melody. Nosso Sonho – A História de Claudinho & Buchecha, de Eduardo Albergaria, tem como trunfo mais contundente a sensibilidade dos atores que interpretam Buchecha (Juan Paiva) e Claudinho (Lucas Penteado, egresso de passagem turbulenta pelo Big Brother Brasil em 2021).

Paiva e Penteado em “Nosso Sonho” – foto: Angelica Goudinho/divulgação

A atuação luminosa dos dois atores se apoia, evidentemente, no caráter fabuloso da história de superação dos garotos negros e pobres a partir do morro do Salgueiro (na Tijuca carioca), exaltado no primeiro sucesso da dupla, “Rap do Salgueiro” (1995), quando os funks ainda se autodenominavam raps e não falavam prioritariamente de amor e romance. Ao citar localidades marginalizadas do Rio em série e em tom celebratório, o “Rap do Salgueiro” ajudou a fixar para a geração 1990 um tipo de música pop fincada na raiz, na auto-estima e no orgulho de ser carioca periférico e, em última instância, brasileiro. É o que Chico Science & Nação Zumbi faziam mais ou menos ao mesmo tempo em Pernambuco, de modo mais crítico, ou o que os Racionais MC’s faziam em São Paulo, em termos sombrios, violentos e realistas.

A fábula de Nosso Sonho (título também de um dos primeiros funks melodiosos da dupla, de 1996) é contada sempre a partir da ótica de Buchecha, o sobrevivente da dupla, encerrada em 2002 no acidente automobilístico que matou Claudinho aos 26 anos, na Rodovia Presidente Dutra, na volta de um show em Lorena, no interior paulista.

Trata-se da escolha mais questionável do filme. Enquanto o personagem Buchecha é elaborado em minúcias, com densidade psicológica (tendo o conflito com o pai alcoólatra como eixo condutor), Claudinho é tratado como coadjuvante apenas esboçado, sem história familiar pregressa, dilemas ou conflitos psicológicos e sempre resumido a um “anjo da guarda” com um sorriso gigante no rosto. Embora a figura de Claudinho seja homenageada e tratada com simpatia e ternura, a discrepância torna o filme uma cinebiografia mais de Buchecha que da dupla responsável por hinos do funk melody como “Conquista” (1996), “Quero Te Encontrar” (1997), “Só Love” (1998) e “Coisa de Cinema” (1999).

Quanto à dupla propriamente dita, o filme desperdiça a chance de aproveitar com mais ênfase os achados de imagem e som inventados por Claudinho & Buchecha, como o “sabe, tchururu” de “Conquista”, os estalos de língua em “Quero Te Encontrar”, a marca registrada “oh, yes” em diversos funks e o gestual expressivo e original que impactava as apresentações ao vivo.

Os passos coreografadas e o gestual tiveram participação decisiva na identidade da dupla – foto Instagram @buchecha

Omitindo as histórias e os conflitos de Claudinho, o filme trilha a interpretação mística de sua morte, como se fosse predestinada, inclusive pelo detalhe no último sucesso da dupla, lançado poucos meses antes do acidente. Na versão dramatizada, Buchecha resiste e não quer cantar os versos “amor sem beijinho/ Buchecha sem Claudinho/ sou eu assim sem você”, de “Fico Assim sem Você“, funk melody assinado por Buchecha, Abdullah Cacá Moraes. Diante da hesitação do parceiro, Claudinho apenas sorri, diz que a música é boa e convence o parceiro a gravar a música. Supostas atitudes premonitórias do funkeiro reforçam a leitura sobrenatural da produção sobre sua morte.

No todo, Nosso Sonho tem em mãos uma bonita história sobre ascensão negra no Brasil do final do século passado, e não desperdiça a oportunidade. Nos funks, Claudinho & Buchecha expressaram pouco a consciência racial que hoje é elemento constitutivo da sociedade brasileira. A própria existência da dupla, no entanto, significou essa busca, em termos de som, imagem e alegria, enquanto os Racionais usavam texto cáustico e caudaloso para fazê-lo. Juntas, apesar de separadas, a atitude carioca e a paulista se complementaram num tempo de racismo sem freios nem contrapesos.

O Claudinho da vida real veste a camisa dos Racionais MC’s – foto: Instagram @buchecha

Se Nosso Sonho servir para algo a mais que entretenimento, seria interessante conhecer as reações das camadas mais brancas e mais elitizadas da sociedade à volta aos funks cândidos e prosaicos de Claudinho & Buchecha. Rejeitados à época, podem ser ouvidos com simpatia 30 anos depois, pelos mesmos setores que hoje encaram com desconfiança e/ou desprezo trappers, brega-funkeiros, tecnobregas e divas pop de periferia, entre (muitos) outros claudinhos & buchechas.

PUBLICIDADE

1 COMENTÁRIO

  1. Excelente texto,como sempre – Sim,o artista tinha pressentimento de que seu fim estava próximo,nosso inconsciente (essência espiritual) sabe muito mais do que sonha nossa vã psicanálise… Pobre Freud… Dez a zero para Allan Kardec.

DEIXE UMA REPOSTA

Por favor, deixe seu comentário
Por favor, entre seu nome