O Encontro Nacional de Gestores da Cultura, realizado nos dias 14 e 15 de agosto em Vitória, no Espírito Santo, foi marcado por algumas ideias-força que apareceram de modo recorrente na tentativa de mirar o futuro da cultura brasileira após mais um ciclo de desmonte. Em seu discurso de abertura, a ministra Margareth Menezes celebrou a refundação do Ministério da Cultura (MinC) e insistiu no mantra de democratização e enfrentamento de desigualdades que percorre os governos federais petistas desde 2003: “É a dimensão estruturante da cultura contribuindo para as pautas centrais que precisam avançar no Brasil. Parte desses avanços é a superação de um histórico perverso de desigualdade que persiste há tantos séculos. Os investimentos da cultura não podem ser correntes de perpetuação dessas desigualdades”.

Referindo-se, entre outros, à implantação próxima das leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc (leia no link abaixo), a ministra prometeu a iminência de um novo ciclo virtuoso para a cultura nacional: “Vamos iniciar o maior investimento da história das políticas culturais no programa Cultura Viva, indo ao Brasil de quem faz a cultura com a cara do seu território em conexão com sua gente. A participação da cultura no PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) também será uma das formas de reequilibrar os investimentos da cultura. Vamos construir novos CEUs (Centros Educacionais Unificados) mais modernos, adaptados às realidades ambientais e sustentáveis e vamos chegar às comunidades que atualmente não possuem equipamento de cultura robusto para dar vazão a toda sua criatividade e exercitar seus direitos culturais”.

Após ressaltar a resistência da cultura brasileira, expressa na sobrevivência do Ministério da Cultura mesmo após três processos de desmonte, Margareth arrematou sua fala remetendo à democratização do acesso de que já falava no início do século seu antecessor Gilberto Gil: “Outra importante forma de superar desigualdades é permitir que todos possam acessar as políticas públicas”.

Falando antes da ministra da Cultura para uma plateia de secretários estaduais e municipais de Cultura vindos de todas as partes do país, o gestor Eduardo Saron, presidente da Fundação Itaú (que congrega Itaú Cultural, Itaú Social e Itaú Educação e Trabalho), havia proposto a superação do debate sobre democratização do acesso: “Há um novo paradigma que precisamos assumir entre nós. No início do primeiro governo Lula, Gilberto Gil foi um dos que trouxe à cena um grande paradigma para o mundo da cultura, a questão da democratização do acesso. É claro que esse tema continua sendo necessário e central num país tão desigual quanto o nosso. Mas apelo que precisamos encontrar um novo patamar de referência, sem perder de vista a democratização do acesso”.

Saron projetou qual seria o próximo momento: “Para mim, esse novo patamar é a democratização da participação. Esse é o centro da nova referência de uma boa política cultural. Não adianta só fazer o acesso à produção cultural, é preciso garantir também formação e fomento à produção cultural. É fazer com que as pessoas possam ser protagonistas da sua própria transformação e possam participar do processo de produção cultural em todo o país, revelando com mais força ainda a diversidade cultural brasileira. Precisamos fazer com que os direitos culturais ganhem uma outra potência”.

A ideia-força de Saron seria amplificada e reformulada na fala da ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF), alçada no encontro a uma condição heróica, graças à defesa que fez da comunidade cultural ao invalidar obstáculos colocados pelo ex-presidente da República para a execução das leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo. “Dois ou três falaram que é preciso democratizar a cultura. A cultura é democrática por ela, ninguém precisa democratizar a cultura. Eu proponho que é preciso culturalizar a democracia e fazer da democracia deste país uma verdade”, a ministra divergiu de outros participantes do debate.

Externando posição diferente da tomada por ela e por outros integrantes da Corte Suprema durante o golpe de 2016, Cármen Lúcia atacava veladamente, portanto, as aventuras golpistas e obscurantistas imaginadas ou perpetradas pelo núcleo bolsonarista: “É preciso que a gente saiba que se não houver uma cultura democrática permanente vai haver vez ou outra uma tentativa de tempestuosamente cercear esses direitos. É preciso que numa cultura democrática todo mundo seja capaz de exercer seus direitos a tal ponto que se sedimenta o que chamamos em direito de sentimento constitucional democrático. Quando a sociedade acredita nisso, ela é a própria barreira contra investidas autoritárias que se sucedem. É contra exatamente isso que a cultura precisa ser consolidada, no sentido de não permitir que essas investidas deem certo nem tenham acabamento”.

Cármen Lúcia terminou seu discurso com uma crítica aberta e um chamado à responsabilidade do empresariado que se utiliza de leis de incentivo cultural como a Lei Rouanet. Fez isso na presença de Saron, representante do Itaú, e de Hugo Barreto, ex-Fundação Roberto Marinho e atual presidente do Instituto Cultural Vale (o Itaú e a Vale estão entre os parceiros na realização do encontro de gestores, ao lado do MinC, da Unesco no Brasil, do Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes Estaduais de Cultura, do Fórum Nacional de Secretários e Gestores de Cultura das Capitais e Municípios Associados e da Secretaria Estadual de Cultura do Espírito Santo).

“Precisamos, como sociedade e como empresariado, pensar que não é concedendo benefício como se fosse favor, e no final o incentivo é tirado de um imposto que ia ser pago de todo jeito, que se pode pensar de uma forma tão acanhada na gestão dos recursos públicos. Isso não é incentivo nenhum, é um deslocamento de recursos”, argumentou a ministra do STF.

“É preciso que não se catequize a arte, a cultura, o produtor, principalmente o artista, que têm que ser garantidos na sua liberdade. O mecenas vai sempre se encaminhar num sentido que seja coerente com o que ele pensa, mas eu espero que ele pense incialmente a partir do que é o ser humano livre para produzir sua arte. Se não, nós teremos para sempre limites estreitos estabelecidos”, finalizou, ovacionada por uma plateia formada majoritariamente por gestores públicos de cultura. Para esses, Carmen Lúcia recomendou a gestão responsável, mas não amedrontada, dos muitos recursos que virão.

(O jornalista viajou a Vitória a convite do Itaú Cultural.)

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