Em "Os Outros", as famílias de Cibele (Adriana Esteves), Amâncio (Thomás Aquino) e Marcinho (Antonio Haddad) e de Wando (Milhem Cortaz), Mika (Maeve Jinkings) e Rogério (Paulo Mendes) dialogam, mediadas pelo miliciano Sérgio (Eduardo Sterblitch, de costas) - foto Globoplay

No clássico Cidade de Muros – Crime, Segregação e Cidadania em São Paulo, publicado em 2000, Teresa Caldeira mostra como o medo da violência urbana foi determinante para a classe média trocar casas espaçosas por apartamentos em condomínios residenciais. Além da segurança, também era vendida como vantagem desse formato de moradia a existência de áreas de lazer, como quadras esportivas, salão de festa e piscina. Com o tempo, condomínios com apartamentos cada vez menores passaram a oferecer cada vez mais espaços coletivos, como academia de ginástica, spa, churrasqueira, coworking e até minimercado, de forma que o morador, protegido em um ambiente asséptico, praticamente não precisa mais sair do condomínio para se divertir, se exercitar, consumir e até trabalhar.

O condomínio residencial, assim como o shopping center, mantém afastados todos os indivíduos considerados contaminantes e perigosos, “os outros”, a ralé. Em um contexto em que a cidade é vista como o espaço da desordem, violência e insegurança, a arquitetura hostil dos condomínios, com seus muros altos invadindo calçadas estreitas e com suas câmeras de vigilância interna, nos faz pensar o quanto esses empreendimentos, apesar de venderem status social para quem neles vive, mantêm sob controle e vigilância não apenas quem está do lado de fora dos muros, mas também quem está do lado de dentro. 

Em 1995, uma CPI na Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro investigou os bailes funk de comunidade, realizados em favelas da cidade. O alvo principal era o baile do morro Chapéu-Mangueira, no Leme, zona sul. Acusava-se o baile de ser financiado por uma facção criminosa, de ser um espaço de venda e consumo de drogas ilícitas, em que se tocavam músicas que faziam apologia ao crime. Enquanto os pais de classe média e classe média-alta reclamavam do barulho alto e dos transtornos no tráfego que o baile causava, seus filhos, “meninos de condomínio” do “asfalto”, subiam o morro em busca de diversão, o que gerava ainda mais incômodo nos pais e pressão para que os bailes fossem fechados pelo Estado, o que de fato ocorreu.

Em Os Outros, série da Globoplay que obteve sucesso de crítica e de público, escrita por Lucas Paraizo, a família de Cibele (Adriana Esteves) se muda para o condomínio Barra Diamond, na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio, justamente depois de ter sua casa na Penha, na zona norte, assaltada. A busca por mais segurança parece ter sido, portanto, decisiva para a escolha da família pelo novo endereço, o que torna o desenrolar dos fatos ao longo dos episódios bastante irônico.

Trocar a zona norte pela zona oeste também pode representar uma elevação de status social. As torres residenciais do Barra Diamond violentam a paisagem natural deslumbrante do Rio de Janeiro, mas é o baile funk realizado nas proximidades do condomínio um motivo de queixa frequente dos condôminos. O fato de um apartamento ser voltado para o lado do prédio onde o barulho do baile chega com mais força é motivo para sua desvalorização, aumentando a desigualdade de status entre moradores. Afinal, a hierarquização social também está presente dentro de um condomínio. 

A ida do adolescente Marcinho (Antonio Haddad), filho da mãe superprotetora Cibele, ao baile funk, é motivo de pânico para ela. Enquanto no filme Era uma Vez…, de Breno Silveira, uma jovem de classe média-alta que vai ao baile funk na favela é vítima da violência do chefe do tráfico no morro, a série Os Outros inova ao mostrar que a violência não vem “do lado de fora”, da favela, do baile funk, mas justamente de onde menos os condôminos esperam: de seus vizinhos, familiares e seguranças privados, ou seja, “os outros” estão muito mais próximos. Neste ponto, a série se aproxima dos filmes O Som ao Redor e Aquarius, de Kleber Mendonça Filho.

A partir daqui, este texto contém spoilers. A tentativa de sequestro/homicídio de Lorraine (Gi Fernandes), namorada de Marcinho e filha de Sérgio (Eduardo Sterblitch), morador do Barra Diamond e miliciano, ocorre no baile funk, mas é planejada dentro do próprio condomínio, pela síndica, Dona Lúcia (Drica Moraes). Da mesma forma, o sequestro-relâmpago de Wando (Milhem Cortaz), apesar de ocorrer fora dos muros do condomínio, é tramado dentro dele, pelo vizinho Sérgio, que se torna chefe da segurança privada. Cabe destacar, nesse sentido, que o tráfico de drogas dentro de um baile funk tende a estigmatizar ainda mais esse espaço, embora quem mais lucre com o negócio esteja fora das favelas, em mansões ou condomínios residenciais. 

No modelo machista da personagem Wando, o papel do homem é ser o provedor da casa e proteger sua família. A maior ameaça à sua esposa Mila (Maeve Jinkings), no entanto, é ele mesmo, que a agride fisicamente e chega a tentar matá-la. Ironicamente, apesar de Wando ser alvo de milicianos, é morto pelo próprio filho Rogério (Paulo Mendes), que age em legítima defesa da mãe. No caso de crimes como estupro e abuso infantil, aliás, quase sempre o criminoso, “o outro”, é um familiar ou conhecido, o que contraria o estereótipo do criminoso sexual como um desconhecido que ataca aleatoriamente na rua. 

A relação da violência com o machismo é central não só na sociedade como na série ficcional. A primeira cena de violência de Os Outros se dá na quadra de futebol do Barra Diamond, área de uso comum, mas disputada pelos meninos numa lógica territorial que lembra o comportamento de gangues e em que uma agressão não pode ficar sem uma resposta igualmente violenta. Da mesma forma, Cibele cobra de seu marido o papel que se espera de um “pai de família”, de “um homem”, o que vai de encontro às saídas conciliatórias e dialogadas que ele defende para a solução de conflitos. Os adultos comportam-se sem qualquer maturidade e agravam um conflito que nasceu como “coisa de adolescentes”.

O carro, símbolo de virilidade, é importante na construção da identidade de Wando, não só porque lhe confere status, mas porque, na era da uberização da economia, acaba representando uma alternativa de sustento financeiro diante do desalento do desemprego. Os danos provocados no automóvel por Cibele, para além do prejuízo financeiro, representam uma espécie de emasculação que fere ainda mais a autoestima de um homem recém-demitido e desperta sua fúria assassina. O fetiche pelas armas de fogo, um instrumento fálico, está presente nos jogos de videogame que adolescentes como Rogério gostam de jogar, mas também em clubes de tiro.

A riqueza de Os Outros, apesar das caricaturas da mãe superprotetora e do machista truculento, está em evitar maniqueísmos. A evolução dos episódios nos leva, se não a concordar, pelo menos a entender a ação desesperada de alguns personagens e ter empatia por eles, posição oposta à compreensão niilista de que “ninguém presta”. Afinal, se em abstrato a violência e a corrupção são condenadas por (quase) todos, no caso concreto muitas vezes são justificadas em nome de algo maior, como a defesa da família, numa lógica em que os fins justificam os meios e em que os atos violentos são encarados como uma reação à uma ação prévia de “um outro”, em um ciclo de violência sem fim.

Se a síndica Dona Lúcia entra em um esquema da milícia, é “em nome da família”, porque deseja comprar o juiz que pode libertar seu amado marido, preso por corrupção no contexto da realização de obras para as Olimpíadas de 2016 no Rio. Se Cibele compra ilegalmente uma arma para defender o seu filho, é porque seu vizinho já tinha dado mostras reais do que era capaz de fazer, chegando ao ponto de ameaçar matá-la com uma barra de ferro. Cibele foi salva pelo vizinho miliciano, não pela polícia, que não chegaria a tempo, e isso é bastante significativo. A arma comprada por Cibele para defender sua família, no entanto, acaba se tornando uma grande ameaça ao filho, seja quando ele está com a mão no gatilho e acaba atingindo o próprio pai, seja quando ele fica sob sua mira. 

Bem ou mal, a ideia de que o Estado não consegue proteger o “cidadão de bem” é o que justifica que tantos recorram à segurança privada ou às próprias armas para se defenderem. E tanto o Estado quanto a milícia se valem do medo da população para ampliar seus poderes, “vendendo” proteção contra a violência de que eles próprios são causa, cada qual à sua maneira. A presença de policiais em milícias ou fazendo bicos como seguranças privados borra a distinção entre o público e o privado, o legal e o ilegal. Cabe salientar que, ao contrário de facções criminosas como o Comando Vermelho, as milícias demoraram para ser encaradas por grande parte da população como grupos criminosos, chegando a ser homenageadas e elogiadas por políticos como “grupos de autodefesa comunitária”.

De acordo com o criminólogo Nils Christie, a distância social tende a aumentar as chances de uma pessoa ser criminalizada, ou seja, de ser vista como criminosa. Afinal, quando se conhece a história de vida do indivíduo, seu contexto social e suas qualidades, é mais difícil demonizá-lo e reduzi-lo apenas ao papel social de “bandido”, congelando toda sua vida em um único momento de erro. Por essa razão, apesar de Marcinho ter atirado em direção a Rogério, Cibele não enxerga seu próprio filho como “bandido”, mas sim o filho do vizinho, que havia agredido Marcinho na quadra de futebol. Quer evitar o contato de Marcinho com a filha do miliciano, mas não se conforma com outra mãe do condomínio querer evitar o contato de seu filho com Marcinho, por causa do episódio do tiro. Se Cibele aceita a chantagem de Sérgio e tem relações sexuais com ele, é novamente para proteger seu filho, mas desta vez em relação ao Estado, uma vez que ele havia cometido um ato infracional e poderia ser punido se delatado. O “bandido” é sempre o filho do vizinho, nunca o nosso. 

Ao longo dos episódios, tanto Cibele quanto os espectadores passam a conhecer as razões da violência de Rogério e reconhecer que ele é capaz igualmente de atos de generosidade, o que o torna uma personagem mais humana, complexa e interessante. Se age de forma violenta, é porque foi ensinado a agir assim por seu maior modelo de conduta e masculinidade, o pai. Se aceita receber dinheiro do miliciano, é porque quer ajudar financeiramente a mãe agora viúva. O mesmo garoto que agride Marcinho arrisca posteriormente a própria vida para tentar salvá-lo do miliciano. 

Por outro lado, mesmo as personagens aparentemente mais éticas mostram um certo grau de hipocrisia e, portanto, de humanidade. Amâncio (Thomás Aquino), o marido de Cibele, critica sua atitude de riscar o carro de Wando como vingança, mas, entregue ao machismo, deixa uma caixa de pizza com fezes e urina na porta do homem que chantageou sua mulher para ter relações sexuais com ela. Já Mila critica o filho Rogério por receber dinheiro de Sérgio, mas abre seu salão de beleza justamente com o dinheiro obtido com a venda de seu carro por um preço alto para o vizinho miliciano, com base em chantagem. O mesmo Wando que aponta revoltado a corrupção da síndica do condomínio encoraja seu filho Rogério, menor de idade, a dirigir. Afinal, a corrupção e o crime estão sempre “nos outros”, nunca em nós mesmos.

Os Outros foi interpretada por alguns analistas como uma alegoria do Brasil, um microcosmo da nossa sociedade. De fato, o Barra Diamond e seus habitantes, assim como o condomínio real Vivendas da Barra, onde viviam o ex-presidente Jair Bolsonaro e Ronnie Lessa, acusado de matar a vereadora Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes, dizem muito sobre o que se passa no Brasil de 2023: violência, desigualdade social, uberização da economia, machismo, especulação imobiliária, segregação espacial, disseminação das milícias, corrupção generalizada e uso seletivo e oportunista do discurso anticorrupção. 

Mais do que espelhar polarizações ideológicas, políticas, religiosas ou étnicas, como o conflito interpessoal banal do filme libanês O Insulto, de Ziad Doueiri, que também escala, os conflitos de Os Outros refletem algo mais universal: nossa incapacidade de conviver em comunidade, de dialogar, de se submeter a regras básicas, acordadas e civilizadas de convivência coletiva, como cidadãos. Em uma sociedade em que o ideal de liberdade é a defesa incondicional da propriedade privada, o uso do meio de transporte privado e o direito ao porte de arma como forma de autodefesa, alguns moradores tendem a tratar espaços de uso comum como extensões de seus apartamentos.

Os valores individualistas, aliados a uma baixa tolerância à frustração, fazem com que a convivência nos espaços coletivos, mesmo com uma homogeneidade social e racial, seja cada vez mais difícil. Quem já presenciou brigas em reuniões de condomínio escalarem rapidamente para agressões verbais ou até físicas sabe bem o que é isso. Adicione um “cidadão de bem” com uma arma de fogo, defendendo sua família, sob o domínio da milícia, e a tragédia está anunciada. 

Danilo Cymrot é autor do livro O Funk na Batida – Baile, Rua e Parlamento (Edições Sesc, 2022) e doutor pelo Departamento de Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia da Faculdade de Direito da USP.

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