Jove (Jesuíta Barbosa) e Juma (Aline Guillén) em

Na última semana, a novela que fez muita gente voltar a acompanhar um folhetim teve cenas de impacto: o casal Juma e Jove finalmente transou. Os personagens vividos pelos atores Aline Guillén e Jesuíta Barbosa, que vinham adiando este momento por várias semanas, entre a tapera e a fazenda de José Leôncio (Marcos Palmeira), protagonizaram cenas quentes e que fizeram a hashtag Pantanal ficar por três horas nos trending topics do Twitter. Também porque os moralistas de plantão ficaram chocados com as referências sexuais nada ímplicitas: apesar da nudez apenas parcial, pelos diálogos não havia como ter dúvida do que estava acontecendo ali.

No mesmo capítulo, outro casal, Muda (Bella Campos) e Tibério (Guito), fizeram o contraponto romântico e protagonizaram uma cena clássica de telenovelas: Tibério, peão sério, mais velho, e que arrasta a asa para a jovem Muda há tempos, pediu a moça em casamento.

A refacção de Pantanal, exibida 30 anos atrás pela extinta Manchete, tem agora na Globo uma produção cuidadosa, cara e com elenco estelar. Na abertura, ouvimos Maria Bethânia entrar com a gravidade inconfundível de sua voz — e a precisão absoluta com a qual escande as palavras dentro da melodia — começar os versos da canção-tema de Marcus Viana: “São como veias, serpentes/ os rios que trançam o coração do Brasil/ levando a água da vida/ do fundo da terra ao coração do Brasil”.

Os acertos desta versão da novela, do roteiro à escolha de atores muito semelhantes fisicamente com aqueles que tiveram papéis na década de 1990, são tantos que a audiência da novela, em seu primeiro mês, registrou os maiores índices em anos. A nova versão repetiu o feito da Manchete quando exibiu a primeira versão: a primeira experiência em teledramaturgia da emissora ameaçou a hegemonia da Globo que já durava pelo menos 20 anos.

Em vez do gigantismo das produções globais, com histórias passadas ou bem nas duas maiores cidades do Sudeste, São Paulo e Rio, ou num Nordeste genérico, a Manchete optou por um texto de Benedito Ruy Barbosa sobre um interior do Brasil ainda pouco conhecido por brasileiras e brasileiros que não eram da região Centro-Oeste.

Seja pela vastidão das áreas alagadas do Pantanal matogrossense, seja pela exuberância da fauna e as paisagens deslumbrantes, a novela, exibida num horário intermediário daquelas da concorrente, permitia nudez parcial e violência. E, por isso, emplacou com rapidez. De quebra, ainda deu um recado para a Globo: sua liderança estava ameaçada e, pior, havia um público de nicho pronto para pular fora, caso tivesse alternativa.

Remakes na Globo não são novidade, nem de novelas próprias bem-sucedidas nem de outra emissora. No entanto, a julgar pelo apuro com que foi tratada Pantanal 2022, a aposta dessa vez foi bem mais alta do que o habitual.

Para o consumidor de audiovisual contemporâneo, sobretudo os mais jovens e com acesso às plataformas de streaming, é um formato completamente contraintuitivo. Tem de ver todos os dias para de fato não perder nada da história, não fica disponível depois, é entrecortado de intervalos comerciais e dura uma eternidade — coisa de quatro, cinco, seis meses. Pior: te prende em casa no mesmo horário por todo esse tempo.

É claro que para tudo isso acha-se a gambiarra que vai desde a mais cara, que é assinar o serviço de streaming da própria Globo, até os truques mais baratos, que consistem em acompanhar por rede social ou sites especializados. Como apontou o crítico Maurício Stycer, em resenha publicada no UOL: “A gente estava precisando de Pantanal e não sabia”. Ele atribuiu os altos índices de audiência da telenovela à “curiosidade de gente nostálgica da era de ouro das novelas (décadas de 1980 e 1990), e que havia trocado os mais recentes folhetins da TV aberta pelas séries das plataformas de streaming”.

Até agora, apesar do viés de baixa das férias, Pantanal tem se mantido num equilíbrio razoável entre teledramaturgia realmente bem feita e com momentos de brilho e os capítulos entediantes nos quais os mesmos personagens têm mais ou menos as mesmas conversas nos mesmos lugares, ou brigam pelas mesmas coisas e fazem as pazes do mesmo jeito.

A fonte literária da telenovela, o melodrama publicado de forma seriada no século 19 em jornais e revistas, também padecia do mesmo mal, até que sobreviesse ao autor alguma ideia mirabolante de como resolver os conflitos e interdições de determinado personagem. Hoje, com o dinheiro grosso envolvido nos contratos publicitários e os custos de produção, faz-se monitoramento fino e constante de redes sociais e audiência.

O que não parece ter mudado, do século 19 até os dias de hoje, é a força atrativa que ainda têm as histórias de amor, sejam comportadas e castas, sejam descabeladas. Em certo sentido, se Pantanal 2022 manera na nudez e no sexo, compensa com personagens femininas fortes e empoderadas, como a mulher do vilão da história, Tenório (Murilo Benício), a submissa Maria Bruaca. Vivida pela excelente Isabel Teixeira, a personagem, que inicia a novela apagada, calada e sendo destratada pelo marido, começa a perceber o quanto é oprimida e vítima de abuso verbal do marido e da filha Guta (Julia Dalavia) até que se revolta, se recusando a fazer serviço doméstico e seduzindo os empregados do marido.

A ambiguidade da emissora está presente em suas produções desde que a telenovela achou uma linguagem “brasileira”, nos anos 1970. Oferecendo uma vela para o progressismo nas relações familiares, como na criação de tramas com famílias de mães solo ou com adultos separados, e outra para o conservadorismo, mantendo os desenlaces com casamentos pomposos na igreja e matando os vilões mais amorais, as produções se mantêm numa equidistância para acomodar, afinal, as sensibilidades de milhões de espectadores de diversas idades, origens sociais e regiões do Brasil.

Pantanal não haveria de ser diferente. Há sempre detalhes que são muito eloquentes: como Juma, a menina-onça, está sempre depilada debaixo do braço? Por que não há nenhum indígena nesse Pantanal? como a família de Jove conseguiu a façanha de não ter um membro que trabalhasse desde o início da trama? Como José Leôncio é um empresário podre de rico e tão ecológico?

Se todo o entretenimento supõe algum tipo de suspensão de descrença, a novela pede ainda mais, além da paciência de aguentar o ritmo: ela exige uma certa alienação momentânea e um desligamento temporário do senso crítico. Como aponta Stycer, “a gente estava precisando de uma novela sem vergonha de ser novela, com ótima direção (de Rogério Gomes), lindamente fotografada, texto inteligente, elenco de primeira e música de qualidade. Uma novela que filosofa sobre o senso comum, sugere que a camaradagem supera todos os obstáculos e ensina que existe beleza na ignorância”.

Bia Abramo é jornalista e pesquisadora de música. Escreve sobre cultura e comunicação digital para a revista Focus. Este texto foi publicado orginalmente na edição 66.

PUBLICIDADE

DEIXE UMA REPOSTA

Por favor, deixe seu comentário
Por favor, entre seu nome