O desfecho de Wanessa Camargo no Big Brother Brasil, no último fim de semana, produziu imagens pouco habituais, como sua saída pela porta dos fundos do reality show global e seguir a aparição num aeroporto de máscara estilo covid e num estranho figurino encapuçado, mais parecido com o visual de um astro do hip-hop que de uma cantora pop. Esse gesto de auto-ocultação jogou por terra a viabilidade de versões segundo as quais a artista tivesse sido eliminada injustamente por algo que não fez, não estivesse consciente do triste espetáculo que protagonizou por mais de 50 dias ou tivesse sido retirada do programa para desagrado geral das arquibancadas. Antes de mais nada, recuemos alguns passos e examinemos o contexto do desenlace do drama de Wanessa.

Wanessa surge “disfarçada” e rodeada de seguranças após expulsão; veja |  Metrópoles
Wanessa Camargo sai camuflada do “Big Brother Brasil” – Foto AGNews

No mundo cá de fora, um genocídio está em curso e é classificado como “guerra” entre uma nação e uma facção criminosa pela mídia brasileira e ocidental, que ao mesmo tempo recobre a tragédia com a capa fantasiosa de que o que está acontecendo fosse um confronto minimamente equilibrado entre duas forças equiparáveis. A exposição diária de cadáveres adultos e infantis, em regime de extermínio televisionado e tuitado, inflama suscetibilidades que não querem (ou têm medo de) se pronunciar sobre o genocídio transmitido ao vivo, em cores e em tempo real – um reality show.

Como reação reflexa das arquibancadas e dos camarotes vip contra a “guerra”, o ódio planetário cresce em escala geométrica medida por diversas modalidades da maldita e desgastada “polarização”. Israel x Palestina (e não Hamas), Ocidente x Oriente, brancos x não-brancos, ricos x não ricos… Ódio racial e de classe, xenofobia e todo tipo de violência e preconceito se empilham ao redor do globo em ritmo análogo ao com que o exército israelense empilha corpos palestinos na Faixa de Gaza.

A parcela do rebanho indisposta em encarar a realidade da “guerra” liga a TV no reality show líder de audiência da Rede “não somos racistas” Globo, na suposta busca por distração e alienação do horror, e se depara com mais uma variante da maldita polarização: Wanessa Camargo, cantora, branca e herdeira apaulistanada de um império agropop (o agro é pop, não nos esqueçamos), versus Davi Brito, um “zé-ninguém” nordestino de pele preta, motorista de aplicativo de transporte entre outros sub-empregos. As polaridades, verdadeiras ou fake, se reproduzem feito gremlins, ao ponto da guerra sem limites, racistas versus misóginos, racistas contra homofóbicos, neopentecostais em oposição a quaisquer outros religiosos… O caos se organiza em duplas, em bipolaridades.

A cortina de fumaça é a arma mais potente para a “guerra” sem limites. Aqui em nosso quintal, a polarização e a falsa simetria se dão entre um jovem anônimo e preto de 20 anos que comete frases vazadas de misoginia e homofobia (quase nunca direcionadas especificamente a alguém) e uma celebridade de discurso e comportamento nitidamente racistas, abusivos e agressivos, cujo canhão retórico, de alta precisão, é apontado exclusivamente ao pretenso “inimigo”. O teatro criado por Wanessa contra o alvo único é amplamente apoiado pelo “silêncio dos inocentes” instalado entre as demais cobaias que compõem o elenco do “jogo” sadomasoquista. Os coadjuvantes e uma parte substancial da torcida (seja a favor de um, seja a favor da outra) naturalizam a inverdade de que se tratasse de uma guerra de identidades, de que fosse preciso exterminar a misoginia para que o racismo sobrevivesse ou vice-versa, de que as atrocidades proferidas em cada polo maniqueísta existissem em oposição, e não em simbiose com o caos instalado no outro polo.

O que se oculta por trás da cortina de fumaça é que não se trata de uma “guerra” entre “guerreiros” em condições e com privilégios análogos. No confronto supostamente balanceado, o jovem preto tem a metade da idade, um décimo do capital cultural e um milionésimo do poderio econômico da oponente. Um dos polos, inclusive, tentou comprar a subserviência e o silêncio do outro com uma supostamente caridosa bolsa de estudos para uma faculdade de medicina (paga não por ela, mas por patrocinadores terceiros). Não conseguiu, o que só fez aprofundar o ódio, o rancor e o revanchismo.

O que torna a situação peculiar à beira da explosão é que o “inimigo” da herdeira tem a PETULÂNCIA de ignorar todos esses signos sociais/coloniais conhecidos e compartilhados por todo mundo e tratar a oponente (e seu numeroso séquito de “inocentes” “úteis”) como sua igual – e, pior, de exigir ser tratado como igual por ela (por eles).

Essa é uma “guerra” desigual que se repete a cada edição do reality show da Rede Não Somos Racistas. Passaram por situações idênticas (e foram ignorados e silenciados) personagens como Babu Santana, Lucas Penteado e Fred Nicácio (os dois últimos homo ou bi ou pansexuais, além de pretos). Seus oponentes racistas avançaram impunes, eventualmente foram até campeões das respectivas edições.

O que distingue os personagens/estereótipos atuais é que o Big Brother Brasil, tal qual uma inteligência artificial, possui uma capacidade de aprendizado que sobrepuja os planos mirabolantes dos homens medíocres que dirigem o programa. Numa espécie de auto-regulagem, o programa mais importante (comercialmente falando) da Globo promove a tão propalada alternância de poder, premiando sucessivamente homem homofóbico, homem homossexual, mulher branca, uma médica negra em aliança com atrizes globais e outras sinhazinhas loiras, uma branca racista integrante dessa mesma aliança etc., até chegar à situação peculiar que hoje testemunhamos (e protagonizamos), de favoritismo de um homem preto que a sanha persecutória dos racistas e classistas transformou, paradoxalmente, em favorito.

O suposto “estranho no ninho” é esquadrinhado com lupa em busca da mais mínima “falha de caráter”, seja pela direita, seja pelo centro, seja pela esquerda comprometida com causas feministas, anti-homofóbicas e de justiça social. Para alegria muda dos anti-“identitários”, estabelece-se a batalha suicida entre antirracistas, feministas, anti-homofóbicos etc., e todos os grupos e subgrupos são parceiros em tentar empurrar para debaixo do tapete o ódio de fundo de todos os ódios: o de classe (os anti-“identitários”, repita-se, estão mudos).

Além da inesperada “petulância” do jovem preto, outro fator extraordinário desregula a velha e manjada balança forjada no caldo de nossa “democracia racial” e de nosso racismo “cordial”. Agora, lá fora (bem longe daqui), está em curso um extermínio, um genocídio, um holocausto não de brancos ricos europeus, mas de palestinos pobres de pele escura. No comitê de (falsas) simetrias e polaridades, Wanessa, Yasmin Brunet e Rodriguinho (apesar de preto e pagodeiro) são Israel, Davi é palestino desde menino (e MC Bin Laden, bem, esse parece ter sido exterminado pelo exército estadunidense depois do 11 de setembro de 2001).

Mas, contra todas as evidências, nosso pequeno “palestino” ainda permanece favorito, ameaçando desse modo o poderio econômico e o capital cultural herdados de berço por wanessas e yasmins (ou conquistados a duras penas por rodriguinhos e bin ladens) espalhada(o)s por todo o território nacional e internacional – mesmo que os milhões que ele eventualmente pode ganhar não cheguem a roçar o poder simbólico que os outros possuem e ele não.

Enquanto o apoio à causa palestina segue crescente à revelia da monstruosa máquina de propaganda de guerra de Israel, aqui no nosso provinciano quintal global o preto “errado”, ininterruptamente promovido a monstro misógino e homofóbico, cavou, exigiu e conquistou a eliminação da sinhazinha herdeira do agropop agrotóxico. É como se os palestinos (re)conquistassem o território inteiro onde se assenta Israel, e não o contrário habitual naturalizado, esperado e desejado.

Ele já colaborou na eliminação de um playboy misógino abusivo, de um pagodeiro corroído pela grana e de outros seres típicos do capitalismo à brasileira, e pode vir a ser influente numa eventual derrota da herdeira Brunet e de uma numerosa corte de negros e mestiços amortecidos pela lógica de “casa grande & senzala”. O crime de Davi, aos olhos da sociedade classista e escravagista brasileira, é inafiançável.

Um último comentário, sobre a auto-eliminação de WC (que, por sinal, a protegeu de uma série de incômodos). Wanessa parece odiar Davi desde o primeiro olhar, ou pelo menos desde que ele, “petulante”, afirmou que pobres mereciam mais prêmios que ricos. Mas Wanessa não odeia Davi. O racismo à brasileira é auto-dirigido, não se volta exatamente contra o “outro”. Brasileiros de pele clara se esmeram (nos esmeramos) em parecer herdeiros legítimos da branquitude europeia, quando herdaram (herdamos) de portugueses/europeus, no máximo, o pendor escravagista.

Wanessa não tem por que odiar Davi, a não ser pelo fato de que ele materializa, diante de seus olhos e em seus pensamentos persecutórios, a negritude afrodescendente que corre no sangue de todos os brasileiros, mas não só ela, não só essa “diferença” de cunho racial. Talvez Wanessa também projete no rosto redondo de Davi (e o odeie profundamente por isso) uma série de outros valores. A origem indígena da música sertaneja que construiu seu patrimônio e herança. A própria música sertaneja que envergonha tantos brasileiros europeizados. O pai sertanejo mais famoso que ela. A cantora branca herdeira de sertanejos mais bem-sucedida do que ela. O marido de traços abusivos e narcisistas sobre o qual pesam denúncias de agressões de mulheres brancas e pretas. E assim por diante.

Talvez, acima de tudo, Wanessa veja a si mesma no inimigo imaginário, e não goste nem um pouco do que vê. Nesse sentido, não existe ninguém mais tipicamente brasileiro que Wanessa Camargo. Sua auto-exposição em carne viva talvez seja no final do túnel um ato de generosidade, infelizmente desconhecido e ignorado por ela e por um sem-fim de brasileiros que pensam e sentem o mesmo que ela.

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