A cantora sueca Tove Lo

A sueca Tove Lo, verde como o Lanterna Verde, imersa numa cortina de fumaça verde, um maiô verde absolutamente incandescente, anda no palco para lá e para cá, ajoelha, reza, canta, pula, persegue a câmera. É praticamente uma veterana do cast: tem 10 anos de carreira já. Mas, sem um décimo do discernimento vocal de uma Lady Gaga e sem um milionésimo da competência coreográfica de uma Beyoncé, Tove Lo é o que nos resta nesse momento, é o show de smartphone içado ao palco principal para dar conta de uma demanda voraz represada. No telão, os fãs choram, berram, suas maquiagens meladas de suor e lágrimas ganham o telão – é a apoteose da dancinha do Tik Tok, com sua emoção sintética agora aplicada à psicologia das multidões vivas.

O vocalista Tyler Joseph, do duo Twenty One Pilots, grafitado agonizantemente no próprio pescoço por um spray negro que o enforca, grita deitado no chão de forma esquizóide, uma combinação algorítmica entre Sid Vicious e Chester Benington. Em seguida, canta numa plataforma erguida manualmente na cabeça do público por alguns peões (trabalho análogo ao dos carregadores de piano do início do século 20), e mais adiante escala uma plataforma de sonorização e canta lá no alto do andaime. Aranhas metálicas escalam o telão como se fossem de realidade virtual, e o impacto visual é tão inebriante quanto o de um show do Pink Floyd – a diferença, novamente, é a construção intelectual do show, suas combinações binárias de Minecraft, sua iniquidade emocional.

Nos festivais instagramados, décor vem antes do resto. Você pode argumentar: décor já era tudo no show Ziggy Stardust and the Spiders from Mars, de David Bowie, e no show dos Secos & Molhados, nos anos 1970. Basicamente, esse me parece o cerne da questão: ali o décor falava, o décor pensava, o décor complementava um discurso, insurgia-se contra uma ordem estabelecida. Em 2023, parece um crime pedir que a música diga algo, que tenha protagonismo paralelo à sua construção estética, capacidade de reivindicação, ruptura. No vácuo do Lollapalooza 2023, as imagens são vaporosas, não formam sentido. Nada parece sobrar para a crônica do futuro a não ser a notícia policial reincidente do uso de trabalhadores em situação análoga à escravidão nos trabalhos terceirizados de suporte do festival – outras potências do gênero, como o Rock in Rio, já foram pilhadas nessa prática (em 2013 e 2015).

Quase como uma metáfora da hiperdependência da construção digital da imagem, da idealização de si mesmo, a música avança enormemente nessa direção. Os grandes festivais atuais são um tipo de blind date – as pessoas compram os ingressos antes mesmo de saber o cast, a escalação dos artistas. Do Lollapalooza, a banda norte-americana Wallows, por exemplo, claramente teria dificuldades de se classificar para as oitavas de final do antigo Colégio Equipe. Muitas vezes os fãs festejam o acerto de um Drake, mas aí ele cancela porque o criptosistema que mantém Drake também não demonstra ter estima pela possibilidade de alcançar uma comunidade outra que não seja a que ele já domina, o cercadinho controlado.

“Ah, mas você é do tipo que curte Cassandra Wilson, Alison Mosshart, Cat Power, nunca vai entender nossa paixão por Billie Eilish”. Olha, admito que sempre haverá um gap geracional entre gostos e preferências, mas não vejam essa coisa aqui como arrivismo ou etarismo reverso. Justamente para evitar isso é que vou pular Billie Eilish, assim como, há uns 20 anos, pulei Avril Lavigne. E, antes dela, pulei Alanis. Há conceitos que sugerem encapsular-se precocemente numa redoma do tempo idealizado. Não é que não goste de pop, adoro – e a condição de trabalhador do sistema periférico da música me torna receptivo a todos os fenômenos. Tampouco sou isolacionista, adoro festivais, adoro o desfile de eletricidade humana que os megaeventos aglutinam – além do mais, 80 atrações e 302 mil espectadores em três dias é um encontro e tanto, não é algo de se esnobar genericamente.

O problema é que essa transição da qualidade de fã, de admirador, para seguidor, curtidor, que vem se cristalizando, ela ameaça trazer embutida em si uma dependência crônica. O trabalho escravo era definido como a posse de uma pessoa por outra. Extinta a escravidão em 1888, surgiu esse outro conceito, de “análogo ao escravo”, que define a relação quando há evidentes direitos violados, violação que nos arranca da condição de livre arbítrio e nos transforma em coisas. Com isso, termino esse quase-artigo com uma de minhas citações favoritas, do amarrotado Roland Barthes: “O fascismo não é só impedir de dizer, mas também obrigar a dizer”. É preciso lutar pela possibilidade de não curtir.

PUBLICIDADE

DEIXE UMA REPOSTA

Por favor, deixe seu comentário
Por favor, entre seu nome