O cinema pulsante de Sérgio Machado

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Sophie Charlotte em cena de "O Rio do Desejo". Frame. Reprodução
Sophie Charlotte em cena de "O Rio do Desejo". Frame. Reprodução

O amazonense Milton Hatoum é autor do conto “O Adeus do Comandante”, que inspira “O Rio do Desejo”, novo filme do diretor Sérgio Machado – estreia dia 23 nas salas de cinema brasileiras, após uma trajetória vitoriosa em festivais aqui e lá fora, o que inclui ainda uma exibição na mostra competitiva da 38ª. edição do Mons International Love Film Festival (Festival Internacional dos Filmes de Amor de Mons, em tradução livre), na Bélgica, nesta sexta-feira (17), com a presença do diretor. A pré-estreia aconteceu no último dia 7 no Teatro Amazonas e o escritor recebeu, dia 9, o título de Doutor Honoris Causa, honraria concedida pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM), reconhecimento da instituição pela disseminação da cultura amazonense em suas obras.

O roteiro é assinado a oito mãos – Sérgio Machado, George Walker Torres, Maria Camargo e Milton Hatoum. “A inclusão de meu nome como roteirista foi uma grande generosidade do Sérgio Machado. Eu não sei fazer roteiro, exige uma técnica muito específica. Eu apenas escrevi alguns textos para encorpar o roteiro, a pedido dele. O conto é muito conciso e só “O Adeus do Comandante” não daria para escrever um roteiro de longa-metragem. E, claro, tentei ajudar como foi possível. Foi uma experiência muito bonita. O Sérgio é um desses seres humanos que sabem escutar, sabem ouvir. É um momento muito auspicioso, porque a gente deixa a vaidade de lado e não pensamos em hierarquias, pensamos no grupo, o que é melhor para o filme, para o trabalho. E por isso eu me dei muito bem com o Sérgio, nosso diálogo foi muito fértil, muito bonito. Ele mesmo se questiona o tempo todo. Ele tem um lado muito engraçado, ele consegue rir de si mesmo e é bom que a gente dê essas risadas. É um roteiro maravilhoso. Quando o roteiro é bom, já é um bom começo, já é uma promessa de um filme bonito. Eu saí apaixonado por todos, escutem essa declaração desse velho espectador e leitor, mas a direção é muito segura, o Sérgio sabia o filme que ele queria filmar, ele sabia o que queria fazer, entendeu essa parte da Amazônia, há muitas amazônias, os atores e atrizes entenderam também”, declarou o escritor durante coletiva de imprensa virtual com a equipe do filme, realizada hoje (15), de que FAROFAFÁ participou.

“Eu nasci a 200 metros do Rio Negro. A Manaus da minha infância praticamente não existe mais. “Órfãos do Eldorado” [2015, filme de Guilherme Coelho baseado no livro homônimo de Milton Hatoum], filmado em parte em Parintins, e “O Rio do Desejo” traduzem muito bem a atmosfera do romance e do conto. Não é uma Amazônia exótica, pra inglês ver, não tem esse apelo da Amazônia pulmão do mundo, que é um mito também. É uma Amazônia real que o filme tornou transcendente, como toda arte. Os atores e atrizes perceberam isso profundamente. Como diz o Guimarães Rosa (1908-1967): “eu sou de onde eu nasci, eu sou de outros lugares”, que é a epígrafe do “Cinzas do Norte” [livro de Milton Hatoum publicado em 2015]. Você é de onde você nasceu mas pode ser de outros lugares, é quando o ator se faz. Nada foi falseado nesse filme. Eu sinto uma grande empatia com esses dois filmes porque eu percebo que eles não foram falseados. Os diretores e atores assimilaram essa vivência, essa cultura, apesar do calor e dos mosquitos [risos]”, continuou.

As paisagens exuberantes em torno do Rio Negro compõem um personagem à parte em "O Rio do Desejo". Frame. Reprodução
As paisagens exuberantes em torno do Rio Negro compõem um personagem à parte em “O Rio do Desejo”. Frame. Reprodução

“O Rio do Desejo” é um filme pulsante, trágico, violento, belo e sensual. Atuações primorosas em uma paisagem exuberante – em novembro do ano passado trouxe na bagagem o prêmio de Melhor Fotografia (para o diretor de fotografia Adrian Teijido) na 26ª edição do Festival Tallinn Black Nights (PÖFF), na Estônia – se somam à trama bem urdida, prendendo a atenção do espectador: o policial Dalberto (Daniel Oliveira) se apaixona por Anaíra (Sophie Charlotte) ao atender a um chamado para investigar a cena de um crime. Pouco tempo depois abandona a corporação, leva a mulher para a casa que divide com os irmãos – Dalmo (Rômulo Braga) e Armando (Gabriel Leoni) –, após o sumiço da mãe e o falecimento do pai; compra um barco e passa a viver o sonho de realizar um sonho da mulher. A desarmonia, em enredo quase rodrigueano, se instala quando o capitão Dalberto precisa fazer uma longa viagem até Iquitos, no Peru, e sua vida dá uma guinada.

Daniel Oliveira, Rômulo Braga e Gabriel Leone em cena de "O Rio do Desejo". Frame. Reprodução
Daniel Oliveira, Rômulo Braga e Gabriel Leone em cena de “O Rio do Desejo”. Frame. Reprodução

O filme é dedicado ao peruano Coco Chiarella (1943-2021) e aos brasileiros Paulo José (1937-2021) e Sérgio Mamberti (1939-2021), três atores monumentais, perdas recentes da dramaturgia – o primeiro interpretou o passageiro de Dalberto na citada longa viagem e no próximo dia 1º. de abril se completam dois anos de seu falecimento, após as filmagens, vitimado pela covid-19. Fica a dica: lentes moralistas não são adequadas para ver “O Rio do Desejo”, rodado em três meses em Itacoatiara/AM.

“As lembranças que eu tenho das filmagens são sempre muito agradáveis, apesar de alguns acidentes. Um assistente de câmera foi picado por um inseto e a gente ficou algumas horas pensando se ele iria sobreviver, por causa das distâncias. Mas o que fica, além das dificuldades de filmar num barco, é o carinho da população de Itacoatiara. Eu nunca tinha experimentado uma população tão carinhosa como a gente teve. A gente andava na cidade e conversava com todo mundo, a cidade acolheu a gente, a gente fazia festa, foi tão impressionante isso. Teve momentos de dificuldades, mas o que é mais vívido em minha cabeça é o contrário, o quanto foi delicioso filmar no Amazonas”, revelou Sérgio Machado quando indagado sobre as dores e as delícias de filmar na Amazônia.

“Uma dificuldade que a gente teve, que é engraçado, é que a Amazônia é famosa por chover muito. A gente precisava muito de uma chuva, pra filmar uma tempestade. E não choveu absolutamente nenhum dia. Caiu uma tempestade no dia que a gente guardou o equipamento no caminhão”, continuou.

“Eu estou com Sérgio, estou muito feliz pelo filme, a gente teve uma pré-estreia muito emocionante no Teatro Amazonas. Ainda estou tomada pela emoção, um orgulho absoluto do filme. Eu só tenho boas lembranças. Aprendi muito com a população de Itacoatiara a lidar com o calor. Quando a gente chegou: “gente, onde estão as pessoas dessa cidade?”. Era perto de meio-dia. As pessoas se recolhem quando está muito quente. E a gente ficou ligado na esperteza da gente da região para fugir do calor. Foi aprendizado puro me relacionar com aquele rio e aquela floresta. Cinema é aventura, foi mágico”, declarou Sophie Charlotte.

“O cinema é feito de dores e delícias. Estar num lugar como Itacoatiara, à beira do Rio Amazonas, contato direto com essa selva, viva e pulsante, com essa floresta, esse rio. Tudo isso de uma forma deliciosa, instigante. A primeira, segunda semanas foram um período de adaptação. A gente não tinha esse hábito de siesta. Entre 10 da manhã e três da tarde, você não ouvia nem um passarinho cantando. Todo mundo se recolhia, as pessoas e os animais. Depois tudo voltava ao normal e a gente voltava a respirar aquele ar quente e úmido e a violência do cinema. Eu lembro que quando a gente estava gravando as cenas no sítio que era do nosso pai [dos personagens irmãos] e estávamos em volta da fogueira, à beira do rio, um braço, o sol foi caindo, era uma [cena] noturna, mas eu não sei porque cargas d’água os insetos começaram a me carregar, eu meio suado, um suor melado, os insetos grudaram no corpo e eu pedia: “me deixem trabalhar, insetinhos queridos””, disse Rômulo Braga, em tons poéticos.

O produtor Fabiano Gullane falou sobre a estreia do filme nas salas brasileiras. “A gente lança o filme dia 23 de março, entre 40 e 50 telas nas principais capitais do Brasil. Infelizmente não chegaremos a todas as capitais [a princípio]. É uma estratégia de lançamento onde a gente achou melhor concentrar o número de cinemas por cidade, para conquistar uma média de público de alguma maneira favorável para nossa permanência nos cinemas. O Brasil é um dos países no mundo que está demorando, junto com a Itália, junto com alguns outros países, para recuperar seu mercado de antes da pandemia nas salas de cinema. O que a gente quer, e certamente a imprensa estará ao lado da cultura brasileira, é retomar esse hábito de a gente ir ao cinema ver os nossos filmes. As pessoas voltaram pros shows, voltaram pro carnaval, mas pro cinema ainda falta voltar. É claro que temos aí uma questão econômica que provavelmente seja a razão desse não-consumo do ingresso do cinema, muitas teorias apontam para isso e estamos nessa batalha com este filme, com todos os colegas, tentando recuperar este protagonismo da sala de cinema na história de um filme. Claro que é uma delícia vê-lo na televisão, nos computadores, mas é incrível vê-lo na tela grande. A gente está indo muito forte, com apoio muito grande da imprensa, a imprensa especializada tem gostado muito, os festivais têm ajudado. A animação e a motivação e a nossa crença, a gente não sabe se vai fazer sucesso, se vai dar certo, mas a gente fez tudo que podia fazer e essa é uma boa sensação, de entregar o filme assim”, resumiu. Este repórter faz votos de que, junto ao público brasileiro, “O Rio do Desejo” repita o sucesso de público e crítica que vem conquistando em festivais internacionais.

O diretor Sérgio Machado antecipou que o seu próximo projeto de longa-metragem é a adaptação de “Cinzas do Norte”, já em processo de negociação e novamente com Maria Camargo entre os roteiristas.

Ele tornou a lembrar o processo de realização de “O Rio do Desejo”: “O Milton foi escrevendo outros contos, que são tão bons quanto o conto que está publicado. Então a gente tem vários outros contos do que acontece antes, do que acontece depois, tem um que chama “Os Sonhos da Anaíra”, tem um que é o que introduz o personagem do Dalmo, que não existe no conto original, que tem umas cenas, que é talvez o que é mais parecido com o livro, mas uma coisa curiosa, é que o Luiz Schwarcz, que é editor do Milton [na Companhia das Letras], estava botando uma pilha para ele transformar esses contos numa novela, aí, se acontecer isso, e eu torço muito que aconteça, vai ser um caso raríssimo de um conto que virou filme e de um filme que virou livro e depois a gente adapta esse livro de novo e não termina nunca mais essa aventura, um filme sem fim”. O que também pode ser lido como uma perfeita metáfora sobre quem se dedica a fazer cinema – e cultura, de modo geral – no Brasil.

"O Rio do Desejo". Cartaz. Reprodução
“O Rio do Desejo”. Cartaz. Reprodução

Serviço: “O Rio do Desejo” (drama, Brasil, 2023, 107 minutos, direção: Sérgio Machado) estreia dia 23 nos cinemas brasileiros.

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Veja o trailer:

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