O poeta Claudio Willer declama poema de Roberto Piva em 2010, no B_arco, em foto de JUVENAL PEREIRA

O poeta atravessava com passos medidos e lentos o posto de gasolina da Heitor Penteado, ali perto do metrô, carregando nos braços uma sacola de papel que denunciava pão de padaria. Eu berrei seu nome: “Willer!”. Ele arregalou os olhos e atravessou o posto de gasolina no mesmo passo lento em retorno ao ponto onde eu estava e, postado à minha frente, exclamou: “Rapaz, que bom que eu te encontrei! Tenho uma denúncia séria a fazer!”. Eu ri e disse: “Em vez de denúncia, eu queria era um poema!”.

Claudio Willer tinha um jeito de falar com tanta claridade o português, mastigando as palavras, esculpindo os erres, que imediatamente reportava a um tempo de rara cordialidade e paciência. No posto de gasolina, ele me contou que havia um edital de literatura do governo que, de todo o recurso que dispunha, 30% se destinavam à administração do prêmio, o que era um absurdo autofágico. Dois dias depois, por email, me enviou toda a reclamação explicadinha, tudo que tinha enxergado de irracional naquele lance.

Willer exalava força e fragilidade ao mesmo tempo. Lutava como um tigre para manter a poesia e a si mesmo vivos, e ao mesmo tempo parecia que ia esfarelar de tanta agonia pelo dia seguinte. Quando lia poemas em saraus, sua figura se avolumava e a autoridade descomunal de todas as palavras do mundo lhe davam posse numa rampa repleta de personagens livres, visões que suplantavam a condição humana.

Eu cheguei a ser duro com o Claudio Willer em uma época diferente. Ele tinha se tornado assessor para a literatura para um dos governos de Paulo Maluf na prefeitura de São Paulo e minha ética era mais rígida, eu tinha a determinação de nunca perdoar colaboracionistas. Durante algum tempo, o olhei com suprema desconfiança e, repórter da área, examinava com lupa suas evoluções na gestão pública. Só depois, muito tempo depois, comecei a pensar que os poetas precisam viver, que os poetas respiram mesmo durante a vigência de regimes opressivos, e que o Willer tinha apenas mantido a sua brasa acesa (sigo, entretanto, pensando que a adesão ao fascismo não pode ter perdão).

Outro dia, conversando com o amigo Ademir Assunção sobre o caso da poesia face às políticas públicas, pincei um trecho de uma entrevista de Mario Faustino (1930-1962) sobre o tema Do que a poesia precisa?: “A poesia brasileira precisa de dinheiro. Precisa de uma estrutura econômica estável como alicerce. Precisa que o Brasil seja rico e autoconfiante e independente em todos os sentidos. Precisa de universidades, enciclopédias, dicionários, editores, cultura humanística, museus, bibliotecas, público inteligente, críticos de verdade, agitação, coragem. Precisa de contar com uns poetas que leiam grego, com outros perseguidos pela polícia e com uns terceiros que leiam provençal e ameacem a sociedade. Isso sem contar com uns dois ou três cuja poesia fale à alma do povo”, respondeu o Faustino.

Daí, em 2010, teve um sarau no B_arco para arrecadar fundos para Roberto Piva, que estava internado no Hospital das Clínicas, o Viva Piva, organizado por Ademir Assunção. Havia muitos poetas, mas o poema que Willer invocou, Relatório para ninguém fingir que esqueceu, caiu como uma noite de Lorca na minha cabeça:

“Abandonem finalmente a veneração por meio dos jubileus centenários, a homenagem por meio das edições póstumas! Artigos sobre os vivos! Pão para os vivos! Papel para os vivos!”.

Em 2012, fui convidado pela Casa do Saber para mediar uma mesa com o biógrafo de Jack Kerouac e William Burroughs, o escritor britânico Barry Miles. O outro convidado era Claudio Willer, provavelmente o cara que mais conhecia de literatura beat neste lado do Atlântico – traduziu pioneiramente O Uivo, de Allen Ginsberg, há quase 40 anos. Confesso que fiquei bastante embaraçado de fazer aquele papel improvisado de sparring entre os dois gigantes, cada qual em seu terreiro. Toda intervenção de Willer era uma aula magna.

Agora, Willer está morto. Morreu ontem em São Paulo, aos 82 anos. Penso no poeta carregando o saco de pão no posto de gasolina, poeta que cobrava 30 reais por aula de literatura, e que virava um sacerdote da sublevação espiritual lendo poemas nas noites da cidade, poemas inacreditáveis de Corso, McLure, Snyder, Ginsberg que ele mesmo traduzia com o ritmo de um velho trompete de jazz. Como esse, Um supermercado na Califórnia, de Ginsberg:

“Eu o vi Walt Whitman, sem filhos, velho vagabundo solitário, remexendo nas carnes do refrigerador e lançando olhares para os garotos da mercearia.

Ouvi-o fazer perguntas a cada um deles; Quem matou as costeletas de porco? Qual o preço das bananas? Será você meu Anjo?

Caminhei entre as brilhantes pilhas de latarias, seguindo-o e sendo seguido na minha imaginação pelo detetive da loja.

Perambulamos juntos pelos amplos corredores com nosso passo solitário, provando alcachofras, pegando cada um dos petiscos gelados e nunca passando pelo caixa.

Aonde vamos, Walt Whitman? As portas fecharão em uma hora. Para quais caminhos aponta tua barba esta noite?”

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