Retrato de D. Pedro I

O que foi a Independência do Brasil? Fruto de um rompante de D. Pedro I ou um processo longo e complexo? Sua decretação se deu às margens do Ipiranga, com um berro, ou começou a se articular politicamente na velha metrópole Lisboa ou mesmo na enevoada Londres, anos antes?

Bom, quem quer saber exatamente quais foram os personagens, os termos, os países, as histórias secretas, os amores, os conflitos e os antagonismos envolvidos na decretação da independência nacional não poderia receber uma notícia melhor: a Editora da Universidade de São Paulo (Edusp) está lançando o portentoso Dicionário da Independência do Brasil – História, Memória e Historiografia, com 1038 páginas (preço: 280 reais), possivelmente a obra mais elucidativa do processo de dois séculos atrás. Organizado por Cecília Helena de Salles Oliveira e João Paulo Pimenta, o volume pulveriza, em plena era digital, todas as possíveis janelas da internet que tenham a ambição de explicar velozmente o acontecimento histórico. Pode parecer irônico, mas dessa vez nem o Google pode competir.

Além de mapear (em verbetes extensos e fundamentados por centenas de estudiosos) todo o desenvolvimento histórico das diversas independências que mobilizavam o mundo daquela época, o livro reúne todas as versões possíveis de certos fatos, como por exemplo as caricaturas, a literatura e os filmes produzidos ao longo dos anos que ajudaram a consolidar um conceito.

É preciso, inicialmente, compreender a posição geopolítica de Portugal naquele momento, sufocado pelo reino da Inglaterra (e o contexto: a Inglaterra tinha proibido o tráfico de escravos acima da linha do Equador). “Reduzido a um pequeno reino europeu, que mais parecia uma colônia da antiga colônia, suas elites dirigentes encontravam-se sujeitas ao que não desejavam, sentindo falta de sua liberdade. Além do mais, queriam romper os elos da cadeia do despotismo, transformando Portugal em uma monarquia constitucional e liberal”, diz o Dicionário.

A pregação liberal e constitucional já instava a uma nova ideia de liberdade, insuflada em cafés, academias, livrarias e sociedades secretas, como a maçonaria. Outros atores sociais entravam na cena, como as mulheres, os escravos e os indígenas. Tanto os conservadores quando os “progressistas” aceitavam já uma emancipação moderada. Isso, somado a um descompasso de repercussão das decisões tomadas dos dois lados do Atlântico, acabou por empurrar para um ato simbólico de ruptura. O grito foi o ato simbólico. Em 1º de agosto, D. Pedro já tinha declaradas inimigas todas as tropas portuguesas que desembarcassem no Brasil sem seu consentimento. Os políticos e intelectuais já davam a separação como fato consumado muito antes do 7 de setembro.

O que o Dicionário possibilita é conhecer também o teatro humano da independência. Como foi, por exemplo, aquele dia na vida de D. Pedro? Bom, após o episódio do grito às margens do Ipiranga, naquela mesma noite, ele foi à Casa de Ópera no centro de São Paulo (no Páteo do Colégio, hoje demolida) para encontrar Domitila de Castro Canto e Melo, a irmã de seu ajudante de ordens, Francisco, que ele chamava de Nhô Xico. Pedro conhecera Domitila em 29 de agosto, ela engravidara dele nesses primeiros encontros e perderia o filho – a namorada do imperador, então com 29 anos, passaria para a História com o título de Marquesa de Santos.  Ao entrar no seu camarote na Casa de Ópera, acompanhado de Francisco de Castro, o Nhô Xico, Pedro I foi recebido aos gritos de “Rei do Brasil”.

Personagens nacionais e internacionais assomam na narrativa, gerando uma possibilidade de interpretação mais rica e aberta para quem se interessa pela História. Há também uma saudável sedução pela riqueza cronística, que se revela desde grandes verbetes até alguns que já se tornaram até ficção, como o caso da história de Francisco Gomes da Silva, o Chalaça, intrigante figura que se tornou influente como secretário do Imperador, o primeiro a criar um “Gabinete Secreto” no Estado brasileiro – e, muito possivelmente, talvez tenha operado também algum tipo de orçamento secreto.

Dali até 1831, quando D. Pedro I abdicaria, o trajeto é também examinado pela ótica da sedimentação da política, dos interesses e das movimentações nacionais que geraram levantes como a Noite das Garrafadas. “No momento da disputa entre Imperador e Poder Legislativo, o que se viu foi uma tensão entre dois modelos dicotômicos, caracterizada numa ambiguidade onde a centralidade do poder político oscilava entre os dois focos de legitimidade, sendo o sistema representativo seu ponto crucial, visto ser ele a novidade”.

Para fazer o Dicionário, durante três anos, desde 2019, os organizadores reuniram a contribuição de 274 autores do Brasil e do exterior, construindo 743 verbetes temáticos e biográficos. O livro teve suporte da Editora da Universidade de São Paulo (Edusp), a Livraria João Alexandre Barbosa e a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM), e teve seu primeiro lançamento nesta quinta-feira (1º), no Espaço Brasiliana da USP (Avenida Luciano Gualberto, 78, em São Paulo). Os responsáveis ressaltam, em nota conjunta, o seguinte: “Para os organizadores, o ponto de partida é a compreensão de que a Independência é sobretudo tema da política, em uma perspectiva que envolve a cultura, a economia, as formas de pensar e as relações sociais; não se restringindo a datas, acontecimentos ou atores específicos, e sim abarcando processos, instituições, linguagens, conceitos, narrativas, artefatos e memórias”.

OS ORGANIZADORES:

Cecilia Helena Lorenzini de Salles Oliveira se graduou, fez mestrado e doutorado em história na USP. É professora titular sênior no Museu Paulista da instituição, do qual foi diretora entre 2008 e 2012, e é professora do Programa de Pós-Graduação em História Social da universidade.
João Paulo Pimenta também se graduou, fez mestrado e doutorado em História na USP, além de ter sido chefe do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da universidade entre 2018 e 2020. É professor da instituição desde 2004.

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