Acima, a tela Friedland, do francês Ernest Meissonier, de 1807, pertencente ao acervo do Metropolitan Museum de Nova York; abaixo dela, a pintura O Grito do Ipiranga, do brasileiro Pedro Américo, de 1888. Parecidas?

 

O viajante que estiver passeando pelas galerias de arte europeia no segundo andar do Metropolitan Museum of Art de Nova York pode achar, de repente, se se deparar com uma tela do francês Ernest Meissonier, que está em frente ao famoso quadro brasileiro O Grito do Ipiranga, do brasileiro Pedro Américo. Não será uma impressão sem fundamento: de fato, as obras são mais do que simplesmente parecidas.

Uma das joias da coroa do revitalizado Museu do Ipiranga, que será reaberto no dia 7 de setembro em meio às comemorações do Bicentenário da Independência do Brasil, a tela Independência ou Morte, de Pedro Américo, de 1888 (também conhecida como O Grito do Ipiranga) está há 9 anos ausente dos olhos do público, tempo de fechamento do museu. Desde sua chegada ao museu, em 1895, a coincidência entre as pinturas de Meissonier e Pedro Américo é apontada por ensaístas, críticos e historiadores de arte.

A pintura de Pedro Américo que o visitante vai encontrar a partir do dia 7 de setembro no Museu do Ipiranga, em São Paulo, foi totalmente restaurada por uma equipe liderada pela restauradora Yara Petrella. Por conta das dimensões do quadro, o restauro teve que ser realizado no Salão Nobre do museu, onde se localiza. Ela possui dimensões de 415 cm x 760 cm, maior portanto do que as portas e janelas do salão e, como foi montada originalmente no local onde está, nunca saiu dali. Durante a reforma do museu, a tela foi protegida dos resíduos da obra no prédio com um tecido especial que impedia a entrada do pó, mas permitia que a obra “respirasse”, segundo informou a comunicação do governo. De seis em seis meses, o tecido e a obra são inspecionados.

O pintor paraibano Pedro Américo de Figueiredo e Mello (1832-1903), um dos mais controversos do seu tempo, foi comissionado para fazer a tela. Na mesma proporção em que era enaltecido como artista (era também cientista, romancista, orador e professor de História da Arte e foi deputado), Pedro Américo era também polêmico. Insistia em ser chamado de “doutor” e cultivava rivalidade com outro grande pintor histórico, Victor Meirelles (1832-1903). Américo foi mais de uma vez acusado de plágio, uma dessas ocasiões durante a ruidosa Exposição Geral de 1879, quando estava na presença de D.Pedro II e mostrava sua nova tela A Batalha do Avaí (1872-1877). Dois experts, Mello Moraes Filho e Bittencourt da Silva, apontaram figuras de outras pinturas antecedentes na tela de Américo (particularmente de Paul Delaroche e Horace Vernet), acusando-o de plágio.

Por isso, a acusação de que a obra mais famosa de Américo, o quadro Independência ou Morte do Museu do Ipiranga, também seja um plágio não é algo isolado na carreira do artista. O Grito do Ipiranga emula evidentemente a tela Friedland, do francês Ernest Meissonier (1815–1891), pintada em 1807. Essa pintura, que tem 135,9 cm por 242,6 cm, pertence ao acervo do MET, na Quinta Avenida, desde o século 19. É a maior e mais ambiciosa pintura de Meissonier, e evoca uma das maiores vitórias de Napoleão Bonaparte.

Para muitos especialistas, a citação de outras pinturas era um recurso típico da produção artística no século 19, sobretudo na pintura histórica. Para se defender, Pedro Américo escreveu a conferência “Discursos sobre o Plágio, Proferido a 25 de junho de 1880 em Lyon perante a Associação de Dramaturgos”. Ele não se conformava com as acusações e acabou fixando residência definitiva em Florença, Itália  onde já passava grande parte do ano.

“Os espíritos predispostos não consideram, não refletem que em uma composição de 400 figuras é impossível deixar de descobrir semelhanças com outras realizadas antes. Ah, a Europa não pode me desiludir mais do que a minha própria pátria onde fui recebido debaixo de chistes”. A crítica seria o pesadelo de sua existência, escreveu Gonzaga Duque, que acentuou que o artista paraibano conjugava “qualidades e defeitos, vulgaridades e raridades, precisão e prolixidade, engenho e imitação”. Américo retornaria ao Brasil em 1885 em busca de recursos para novos trabalhos. Recebeu apoio “da imprensa paulista”, como escreveu seu biógrafo, e conseguiu vender ao governo 11 obras que tinha exposto em 1884.

A tela de Pedro Américo e sua fonte de inspiração tem semelhanças evidentes e também algumas diferenças pontuais. Pedro Américo colocou ingredientes caboclos em seu trabalho, como uma plateia de tropeiros observando o gesto do imperador, uma casa de pau a pique ao fundo, uma vegetação reconhecível. O francês Ernest Meissonier fez centenas de estudos preparatórios para a tela que inspiraria Independência ou Morte, incluindo desenhos e modelos esculturais. Ele a concebeu como parte de um ciclo de 5 episódios-chave da vida do Imperador Napoleão Bonaparte. O trabalho ganhou notoriedade em 1876, quando o magnata de lojas de departamentos norte-americano Alexander T. Stewart o comprou do artista, sem ver a obra, pela soma astronômica (naquela época) de 60 mil dólares e ela foi parar nos Estados Unidos.

Em 1888, 12 anos após a compra do quadro de Meissonier pelo MET (e 66 anos após os fatos que descreve), Pedro Américo concluiu seu trabalho mais lendário em Florença. Antes de vir ao Brasil, Independência ou Morte foi mostrada à família imperial, à Rainha da Inglaterra, aos reis da Suécia e outros visitantes ilustres. Também chegou a ser exibida na Exposição Universal de Chicago.

A tela foi instalada no Museu do Ipiranga em 1895, ano de inauguração do museu. Em 1889, teria recebido elogios do seu próprio inspirador, Meissonier, que a viu em uma exposição de fotos em Paris (embora disseminada, é uma informação pouoo crível, Meissonier teria uns 110 anos a essa altura). As obras de Pedro Américo não angariaram só ressalvas, como seria de se supor. Seu talento consistia em dar vida às ações que retratatava. “Enquanto o quadro do sr. Victor Meirelles impressiona pela falta de ação, pela paralisia de quase todos os personagens, na Batalha do Avahy tudo se move, tudo tem vida, todos se batem”, escreveu um crítico na Revista Ilustrada.

O Museu do Ipiranga, reformado a um custo de 211 milhões de reais, deverá ser gerido por uma fundação e tem sido objeto de confronto entre os governos do Estado de São Paulo e o governo Bolsonaro.

 

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