Música, substantivo feminino

0
4312
Palestra do Quarteto Clarice virou misto de ensaio aberto e aula-espetáculo, ontem, na Emem. Foto: Zema Ribeiro
Palestra do Quarteto Clarice virou misto de ensaio aberto e aula-espetáculo, ontem, na Emem. Foto: Zema Ribeiro

Quarteto Clarice: soma dos talentos de Maria Tereza Madeira (piano), Ana de Oliveira (violino), Janaína Salles (violoncelo) e Andrea Ernest Dias (flautas) estreia hoje (21) em São Luís, na noite de encerramento do Festival Instrumental Nacional (Fina)

O Quarteto Clarice em ação, ontem, na Emem. Foto: Zema Ribeiro
O Quarteto Clarice em ação, ontem, na Emem. Foto: Zema Ribeiro

O pequeno público que não se importou com o chuvisco que caiu no meio da tarde de ontem (20) em São Luís e foi até a Escola de Música do Estado do Maranhão Lilah Lisboa de Araújo (Emem) foi testemunha do nascimento de uma ideia incrível. O que se anunciou como palestra acabou virando um misto disso, aula-espetáculo e ensaio aberto, uma espécie de pré-estreia do Quarteto Clarice.

“A estreia do quarteto vai acontecer amanhã [hoje, 21], aqui em São Luís. Está acontecendo aqui e agora, com vocês, em primeira mão. Amanhã [hoje, 21] a gente aguarda vocês também na Praça Maria Aragão, dentro do Fina, festival que é a fina flor realmente, de uma ideia musical maravilhosa. Muito obrigada à produção pelo convite”, fez as honras a pianista Maria Tereza Madeira. O Quarteto Clarice é formado por ela, Ana de Oliveira (violino), Janaína Salles (violoncelo) e Andrea Ernest Dias (flautas).

As quatro têm uma longa folha de serviços prestados à música brasileira. Maria Tereza Madeira é uma das mais conceituadas pianistas do país, referência absoluta no instrumento, tendo gravado 12 discos com a obra completa (216 peças) do pianista Ernesto Nazareth (1863-1934), professora da Unirio. Ana de Oliveira é spalla da Orquestra Sinfônica Nacional. Janaína Salles é a principal violoncelista da mesma orquestra, atualmente sediada na Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói/RJ, a antiga Orquestra da Rádio MEC, originalmente fundada para ser uma orquestra de música brasileira e sua difusão no rádio. Andrea Ernest Dias, que apresentou suas companheiras de Clarice e acabou não falando de si mesma, é doutora em flauta pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), integrou a Orquestra de Música Brasileira (OMB) e tem o nome em créditos de discos de nomes como Alberto Rosenblit, Alfredo Del-Penho, Angela Maria (1929-2018), Baden Powell (1937-2000), Beth Carvalho (1946-2019), Caetano Veloso (incluindo o recente “Meu coco”, lançado ano passado), Carlos Malta, Cássia Eller (1962-2001), Celso Fonseca, Celso Viáfora, Chico Buarque, Chico Pinheiro, Dona Ivone Lara (1922-2018), Dudu Nobre, Fagner, Gal Costa, Guinga, Henrique Cazes, Herbert Vianna, Humberto Araújo, João Bosco, Leila Pinheiro, Lelo Nazário, Los Hermanos, Marcos Sacramento, Mário Adnet, Martinho da Vila, Maurício Carvalho, Mauro Senise, Milton Nascimento, Miúcha (1937-2018), Moacir Santos (1926-2006), Mú Carvalho, Nailor Proveta, Nana Caymmi, Nei Lopes, Ney Matogrosso, Olívia Byington, Olívia Hime, Philippe Baden Powell, Roberta Sá, Rodrigo Lessa, Rosa Passos, Sérgio Santos, Simone Guimarães, Vitor Araújo, Walter Alfaiate, Wilson das Neves (1936-2017), Zé Ketti (1921-1999), Zé Menezes (1921-2014), Zé Nogueira, Zé Renato e Zeca Pagodinho – a lista é (mais) longa e diversa.

A palestra (chamarei assim para simplificar as coisas) “O papel da mulher na construção da MPB” anunciava a premissa da formação: destacar a importância de mulheres compositoras, arranjadoras e instrumentistas. O conteúdo (e o repertório) traçam um arco que vai da pioneira Chiquinha Gonzaga (1847-1935) até compositoras contemporâneas. Sempre com muito bom humor, as musicistas executaram algumas peças do repertório da estreia e contaram episódios de machismo sofridos por elas ao longo de suas trajetórias, vidas inteiras dedicadas à música, em todas as frentes: execução, composição, arranjo, regência, ensino. “Eu terminava um concerto, as pessoas vinham me elogiar: “você está linda!”. Eu pensava: “opa! Eu toquei, eu não estava num salão de beleza, eu estudei pra caramba para fazer o que eu fiz”. Eu recebia o elogio, mas sempre me perguntava: será que ele diz isso para o meu colega, para outro violino da orquestra?”. Isso hoje acontece bem menos. Quando eu cheguei, não tinha mulher, então eu demorei a ser aceita. Mas a minha ação foi política: fazer, fazer, fazer. Isso tem muito mais efeito do que ficar discutindo. Hoje há uma geração de mulheres, várias orquestras têm mulheres como spallas. Eu fico até arrepiada quando eu digo isso, e isso é uma evolução a partir de uma reflexão e a partir, sim, de algum enfrentamento ideológico, mas mais do que tudo, ação”, refletiu Ana de Oliveira, então spalla (primeiro violino) da Orquestra Sinfônica Brasileira. “A gente levantou muita bandeira sem saber”, sintetizou Maria Tereza Madeira.

O Quarteto Clarice soma os talentos individuais de quatro mulheres bastante requisitadas em diversas funções – entre as quatro há professoras, coordenadoras de orquestras, musicistas acompanhantes, além de suas trajetórias solo, às vezes (quase sempre) tudo isso ao mesmo tempo agora. A premissa da formação é justamente reverenciar o feminino na música – brasileira, instrumental, de câmera, popular e o que mais pintar: são hábeis, talentosas, versáteis, virtuoses e qualquer redundância aqui é intencional, a merecidamente destacar-lhes a qualidade e a magia do encontro, tanto entre elas quatro em si quanto entre elas e o público.

“Chiquinha Gonzaga, que é sempre uma inspiração, um marco na nossa música, música brasileira de qualquer gênero, é uma figura marcante. Ainda há muito o que se estudar da obra da Chiquinha. Eu acho que o interesse pela Chiquinha Gonzaga começou com a história pessoal de vida dela, de tudo o que ela passou para poder sobreviver como uma musicista, e naquela época, como toda sinhazinha, tocava piano, mas o pai não esperava que aquilo virasse uma profissão. Então foi um grande problema. A música, na verdade, começou como um problema na vida dela e depois virou a solução. Ela tem uma obra imensa, que agora está sendo mais gravada, mais explorada, inclusive pelos pianistas de concerto, grupos de choro, orquestras, muitos arranjos têm sido feitos para várias formações, e o Quarteto Clarice não poderia ficar de fora”, afirmou Maria Tereza Madeira, após o quarteto executar “Ada”, uma polca inglesa de autoria da maestrina, uma das homenageadas do concerto de hoje à noite, com três peças no repertório. “Chiquinha Gonzaga, curiosamente, morreu em 1935, aos 87 anos, numa terça-feira de carnaval, o que é uma coisa impactante porque ela escreveu o “Ó abre alas”, que foi uma música especialmente feita para o carnaval, o que não acontecia anteriormente. Então ela foi muito pioneira em várias coisas, inclusive nisso”, continuou.

Outra homenageada é compositora e pianista Francisca Aquino (1956-2019), mãe da violoncelista Janaína Salles. Dela, elas tocaram “Modinha”, da “Suíte brasileira”. “Foi tirada de uma série de ritmos brasileiros que minha mãe compilou para o iniciante brasileiro, que ela chamou de “Música brasileira para iniciantes”. Tem baião, frevo, bossa. [No concerto] a gente vai tocar outros movimentos dessa suíte. Depois que ela faleceu, eu e minhas irmãs, que somos musicistas, todas, a gente teve oportunidade de gravar isso, no início do ano, e a gente teve um trabalho tão insano com essas peças, que a gente pensou “gente, isso não é para iniciantes” [risos], na verdade a gente rebatizou de “Suíte brasileira” devido a isso. Às vezes vem um pouco desse lugar da mulher brasileira, a síndrome da impostora, a gente meio que diagnosticou a síndrome da impostora, mamãe achando que aquilo não era grande coisa, aí a gente decidiu rebatizar. Esses arranjos que a gente fez aqui são muito especiais, estou achando maravilhoso ouvir soar isso assim, porque eles são originais para solista e piano, então tem uma versão para violino e piano, para violoncelo e piano, e aqui a gente fez um quarteto. Onde ela estiver, ela está muito feliz de ouvir essa versão. Ela fez isso nos anos 1990, ela tinha uma editora chamada Assunto Grave, e tem várias obras, muita coisa de música brasileira, composições originais e arranjos de músicas mais tradicionais também, que eles botaram num site, aberto para todo mundo”, explicou Janaína Salles.

“É realmente uma estreia, aqui nesse palco, é a primeira vez que a gente está apresentando essas músicas para alguém. Esse festival é muito especial pra gente, São Luís do Maranhão vai estar sempre nos nossos corações”, declarou Ana de Oliveira. “Quando a gente estava formando o repertório a gente falou “vamos pedir para arranjadoras e compositoras brasileiras, porque a gente aborda desde Chiquinha Gonzaga, Francisca Aquino, até jovens compositoras, arranjadoras. A gente não está tocando numa ordem cronológica, mas a gente faz uma viagem pelo tempo do feminino na música brasileira. A gente ganhou alguma música de presente, que vocês também vão ouvir em primeira mão, que é de uma grande compositora, flautista como Andrea também, de São Paulo, a Léa Freire. Ela tem um trabalho muito conhecido também com Arismar do Espírito Santo, com vários músicos, Teco Cardoso, é uma pessoa muito importante no meio da música instrumental. Ela tem também um selo, Maritaca Records, é muito ativa, muito criativa, uma música maravilhosa que ela faz. Então a gente vai tocar para vocês agora essa música que ganhamos de presente e vamos dar de presente agora, e se chama “Mamulengo”, anunciou. “É a descrição musical de um mamulengo, vocês verão”, anunciou Janaína Salles, rindo. Andrea Ernest Dias lembrou que o documentário “A Música Natureza de Léa Freire”, dirigido por Lucas Weglinski, estreou este ano na 14ª. edição do In-Edit Brasil (Festival Internacional do Documentário Musical).

“Uma brincadeira, né? Uma grande brincadeira”, celebrou Andrea Ernest Dias sobre a peça, que evoca, em várias citações, cantigas de roda e, consequentemente, memórias da infância. “Um presentão”, completou Janaína Salles.

O repertório inclui ainda peças de compositoras como a baixista Gê Cortes (“7×1”, composta inspirada pela fatídica derrota do Brasil para a Alemanha, jogando em casa, na Copa do Mundo de 2014) e a multi-instrumentista Ignez Perdigão (o baião “Pitombeira”), maranhense radicada no Rio de Janeiro desde a década de 1970, além das próprias integrantes do quarteto.

A partir de pergunta da reportagem do Farofafá, elas afirmaram a intenção de seguir com o quarteto para além do festival que se encerra hoje em São Luís, incluindo o desejo e a disposição de registrar este repertório em disco. Ao reouvir o que gravei (com a devida autorização de Andrea Ernest Dias) da palestra para escrever este texto, torno a me arrepiar. Se a palestra emocionou desse jeito, imaginem o concerto de daqui a pouco.

Serviço: noite de encerramento do Festival Instrumental Nacional (Fina). Hoje (21), às 18h, na Praça Maria Aragão (Centro), em São Luís. Com Jayr Torres Trio, Quarteto Clarice e Wagner Tiso Trio. Programação gratuita (veja completa aqui).
PUBLICIDADE

DEIXE UMA REPOSTA

Por favor, deixe seu comentário
Por favor, entre seu nome