Wilson Simonal recebe James Brown no aeroporto de Congonhas, em São Paulo, em 1973
Wilson Simonal (esq.) recebe James Brown (com pandeiro na mão) no aeroporto de Congonhas, em São Paulo, em 1973 - foto Almir Veiga/JB/divulgação

Um debate maiúsculo está inscrito das entrelinhas do livro Black Rio nos Anos 70: A Grande África Soul, do historiador, escritor e ex-vereador niteroiense André Diniz. Debruçando-se sobre o movimento musical-social-político que se espalhou pelos subúrbios do Rio de Janeiro dos anos 1970, em torno da soul music e do funk original, ele mapeia o racismo estrutural por trás da repressão aos bailes frequentados pela população negra a partir de 1969. Como demonstra a obra ricamente ilustrada (ver fotos), o controle e a contenção da expansão da identidade e do orgulho negros eram (como ainda são) exercidos pela repressão civil-militar, mas também pela própria sociedade, tanto à direita quanto à esquerda. Para além disso, Black Rio nos Anos 70 documenta com intensidade o divisionismo que vitimou em várias frentes o movimento negro, fomentado sub-repticiamente pelo racismo branco, mas incorporado também internamente.

Um baile black carioca de multidão nos anos 1970 - foto Paulo Moreira
Um baile black carioca de multidão nos anos 1970 – foto Paulo Moreira/divulgação

A primeira grande divisão aconteceu na ascensão e explosão da música negra de ascendência estadunidense nos bailes cariocas suburbanos, compreendida à direita (branca) como uma tentativa de instalar a guerra racial no ambiente pretensamente pacífico da dita “democracia racial” brasileira e à esquerda (branca) como um sintoma de alienação política e de subjugação ao colonialismo e ao imperialismo de matriz norte-americana. Tal divisão se expressou na rivalidade entre a geração black Rio e o samba “de raiz” (negro), traduzido pela imprensa e pela intelectualidade (brancas) como um conflito entre artificialidade importada e autenticidade afrobrasileira.

André Diniz mostra estar, ele mesmo, em transição a respeito do tema, ao tratar da black Rio depois de publicar uma série volumosa de livros dedicados ao samba. Em defesa mais dos chamados blacks, o autor não chega a assimilar o espelhamento permanente entre os dois grupos, o “autêntico” considerando o outro domesticado pelos Estados Unidos e o “importado” se opondo à domesticação do samba à normatização imposta pela esquerda branca nacionalista. “Circulava no meio dos blacks um sentimento de que o samba fora apropriado pelas elites e outros segmentos da população, o que teria determinado o seu processo de ‘embranquecimento’. No fundo, a construção cultural do ‘samba de raiz’ servia de plataforma para progressistas e conservadores ‘atacarem’ a cena black”, corrobora Diniz. A gosto do opressor, os dois fenômenos até certo ponto se neutralizaram, com consequências mais danosas à modernização “black power” na interpretação de Diniz.

Os passos de dança, o visual e o vestuário compõem o conjunto de identidade e orgulho negros na cena black Rio – foto Almir Veiga/JB/divulgação

Entrevistados por ele, vários dos militantes da black Rio atribuem o declínio do movimento na virada dos anos 1970 para os 1980 à eclosão da onda discothèque. “O sucesso das discotecas e de suas trilhas sonoras representava um circuito econômico impeditivo para os herdeiros da black Rio”, escreve Diniz, reverberando mais um pomo da discórdia possivelmente fomentado de fora para dentro, já que, John Travolta Bee Gees à parte, a disco music norte-americana também foi uma movimentação musical idealizada e elaborada majoritariamente por artistas negros. “Estava tudo bem nos anos 1970, até que veio o Travolta com aquele piripiri da discothèque. Os bailes soul acabaram, a black music acabou, e, com ela, eu também”, declara o dançarino e cantor Gerson King Combo. “Criaram as Frenéticas. O outro lado estava pronto, vamos derrubar o soul e criar um novo movimento musical”, afirma o DJ, produtor de bailes e produtor musical Dom Filó. Tal como os sambistas se atiravam contra o black power à maneira estadunidense, os DJs e produtores da black Rio veem na disco music o agente destruidor da cultura negra emanada das periferias cariocas.

Diniz contrapõe o nacionalismo do samba à transversalidade do movimento black power internacional, ecoando uma histórica desidentificação dos brasileiros mais marginalizados (e negros, em sua maioria) com valores nacionais. É algo que marcou e marca muitas gerações de cidadãos menosprezados pelo Estado e pela sociedade dominante, como por exemplo a do hip-hop paulista dos anos 1980 e 1990. O livro, porém, narra uma transformação lenta do início ao ocaso da black Rio, período em que a música consumida era sobretudo estrangeira, com poucas exceções bem-sucedidas e duradouras, casos dos fronteiriços Tim Maia e Jorge Ben Jor (que “namoravam com a MPB”, nas palavras de Diniz) e do anjo (negro) caído Wilson Simonal, que aparece em foto do livro recebendo o matricial James Brown no Brasil, em 1973, quando já era isolado e descartado tanto pela ditadura de direita quanto pela comunidade cultural de esquerda.

Wilson Simonal recebe James Brown no aeroporto de Congonhas, em São Paulo, em 1973
Wilson Simonal (esq.) recebe James Brown (com pandeiro na mão) no aeroporto de Congonhas, em São Paulo, em 1973 – foto Almir Veiga/JB/divulgação

Outros artistas brasileiros citados e por vezes entrevistados não chegam ao protagonismo atribuído na pesquisa a DJs, dançarinos, produtores e equipes de som dos bailes: Toni Tornado, Cassiano, o baiano Hyldon, Gerson King Combo, Erlon ChavesBanda Black RioDom Salvador, Grupo SenzalaAzymuthCarlos DaféMacau, Sandra de SáZezé Motta (descrita por Diniz apenas como atriz), União Black e Luiz Melodia. Quanto à discothèque brasileira, efêmera, predominantemente feminina e menos restritiva às expressões não-heterossexuais, o historiador menciona o fenômeno mercadológico-global das Frenéticas (que incluía duas integrantes negras), mas não outros artistas afro-centrados, como Robson Jorge e Lady Zu.

O que Black Rio nos Anos 70 interpreta como um refluxo da expressividade negra não-sambista conduz a uma transformação que teria seu auge na explosão do chamado funk carioca, fenômeno musical sólido da cultura negra jovem, já com 40 anos de duração e inúmeros sucessos de massa, invariavelmente cantados em português. “O movimento funk ocupou as ruas e as favelas cariocas com suas letras cantadas em português e extremamente comunicativas. Essa mudança democratizou o acesso aos bailes para seus frequentadores, possibilitando que a diversão da juventude negra driblasse as constantes dificuldades financeiras”, documenta o autor. Sua descrição oculta algum tipo de valoração negativa do funk carioca, em comparação a movimentos musicais precedentes: “Tem uma influência direta do Miami bass e do freestyle. É um funk de sabor latino, mais sensual, caracterizado por uma batida repetitiva e constante, com pouca harmonia e melodias contidas em suas notas”. Não é muito diferente das persistentes (e hoje predominantemente enrustidas) reprovações à suposta insuficiência musical do rap, que para alguns não era música ou significaria o fim da canção.

Apesar das ressalvas, o que Diniz descreve na prática é a continuidade e o desenvolvimento das culturas de resistência afrobrasileira, e não a interrupção da insurreição dos anos 1970. A repressão policial e a cara feia repressora da institucionalidade branca atesta que o suposto “inimigo” sempre foi o mesmo, esteja no samba, nas rodas de capoeira e nos terreiros de candomblé, na black Rio, no funk carioca ou no hip-hop paulista.

Elemento distintivo do orgulho black, o "pisante" ou "cavalo do aço" surge como criação especificamente brasileira, segundo define o ativista Dom Filó no livro - foto Almir Veiga/JB/divulgação
Elemento distintivo do orgulho black, o “pisante” surge como criação brasileira, segundo define o ativista Dom Filó no livro – foto Almir Veiga/JB/divulgação

Outras divisões por dentro se insinuam na narrativa. André Diniz silencia sobre cenas comparáveis à da black Rio em regiões diversas do país, como o samba-rock dos paulistas, o balanço dos gaúchos, as diversas sonoridades afro-indígenas do Norte, o soul-funk pernambucano de Paulo Diniz ou o complexo samba-reggae/axé music baiano (esse citado apenas de passagem, sob a alcunha “blocos afro”), igualmente desafiadores de bipolaridades e maniqueísmos difundidos tradicionalmente pela crítica e por artistas de diferentes segmentos.

Mesmo por vias tortuosas, tantas pistas e evidências sugerem o acerto central de André Diniz ao atribuir ao racismo estrutural disfarçado de cordialidade e “democracia racial” a marginalização dos blacks cariocas dos anos 1970. Não tem sido diferente com sambistas, funkeiros cariocas de outras gerações, ídolos latinizados, “cafonas”, “bregas” ou tecnobregas, sempre desaprovadas pelo senso comum crítico/intelectual sob pretextos diversos (e não raro disfarçados de “estética”), mas com motivações invariavelmente parecidas.

O estilo black Rio em close
O estilo black Rio em close – foto Almir Veiga/JB/divulgação

A exuberância estilística dos blacks dos anos 1970, elevada a níveis inéditos entre os jovens dos anos 2020, se verificava em cabelos, vestimentas e sapatos (também chamados de pisantes ou cavalos de aço), como evidencia a saborosa descrição em Black Rio nos Anos 70: “As combinações de cores dos pisantes eram as mais inusitadas possíveis: rosa-choque, rosa e roxo, amarelo-ovo, verde-limão, pescoço de marreco, ocre marajó. Tudo isso levou a outro apelido desse modelo de pisantes: ‘Salada de frutas’. (…) O sapato imponente para os blacks era, digamos, uma revanche, um grito de liberdade, e uma afirmação diante de todos os séculos que escravos domésticos, agricultores, mineradores ou urbanos eram obrigados a andar descalços em terra batida”. A conclusão é cabal, e pode ser aplicada ao verde-e-rosa da Mangueira, aos maracatus estilizados do manguebit pernambucano, às aparelhagens paraenses e em manifestações de resistência ao longo das décadas e séculos: “Os sapatos converteram-se, junto ao cabelo black, no símbolo máximo de recuperação da auto-estima e da valorização da negritude”.

"Black Rio nos Anos 70: A Grande África Soul" (2022), de André Diniz

Black Rio nos Anos 70: A Grande África Soul. De André Diniz. Numa Editora, 224 pág.

 

PUBLICIDADE

DEIXE UMA REPOSTA

Por favor, deixe seu comentário
Por favor, entre seu nome