quando, há mais de três meses, a gravadora universal editou uma versão caprichada do clássico “na rua, na chuva, na fazenda…” (polydor, 1975), logo pensei em propor a seu autor, o singularíssimo hyldon, uma entrevista por e-mail, aqui para o blog. ele topou a empreitada. eu me empolguei, e enviei uma lista de perguntas gigante, viajandona. ele avisou que ia demorar, por razões óbvias, e foi mandar o questionado respondido já em dezembro. mas a espera valeu – as respostas vieram detalhadas, caudalosas, amplas, generosas. foi minha vez de demorar na edição, mas eis enfim aqui finalmente o diálogo aberto com hyldon, na rua, na chuva, na fazenda, ou num blogzinho de sapê.


já que, onde tudo se mistura, o pequeno É o grande e vice-versa, aqui no telhadinho de palha virtual temos o privilégio de ler a manifestação integral do cara, sem edições, sem os cortes inerentes ao ofício jornalístico. é trabalho em progresso, com compassos e descompassos e percalços. porque, por exemplo, a metodologia “lista de perguntas” proposta pelo entrevistador desfavorece as réplicas e tréplicas, torna o diálogo soluçado, deixa perguntas adicionais fora do traçado. mas, por outro lado, arrisco dizer que pela primeira vez o pensamento (ou melhor, o pensamento escrito) de hyldon aparecerá mostrado na íntegra, sem censuras (ou, ao menos, sem censuras exteriores, se ainda houver as internas). uma experiência, enfim.

várias razões justificam a relevância do experimento, que, arrisco novamente dizer, resulta num documento histórico de alta consistência sobre música brasileira. tal contundência mora em motivações que procuro expor no teor das perguntas, e que nasceram da leitura dos textos do próprio autor no encarte do cd reeditado. ali, hyldon cita artistas de iê-iê-iê, black music e mpb, mas também escritores como machado de assis e filósofos como schopenhauer. ele re-revela os muxoxos dos músicos eruditos que tocaram em seu disco pop – sim, músicos eruditos tocaram no disco pop de hyldon. e é daí para diante, como procuro evidenciar negritando nomes, pessoas, movimentos, gêneros, referências e circunstâncias que ajudam a perceber o mapa diversificado, abrangente, aberto, contraditório, riquíssimo enfim, que constrói o imaginário de um artista como hyldon, pertencente ao rol dos geralmente confinados a rótulos tipo “popular”, “comercial”, “cafona”, “brega”…, impostos de fora para dentro (de dentro para fora também, será, hyldon?).

bem-vindos à aventura, para a qual me arrisco (de novo!) a resgatar recomendação já atribuída-criada-transformada-papagaiada por arquitetos (mies van der rohe, frank lloyd wright), físicos (einstein), escritores (flaubert, guimarães rosa), filósofos (nietzsche) & outros malucos: “deus (o diabo) está nos detalhes”. tintim.
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pedro alexandre sanches – você poderia fazer um resumo de suas andanças musicais antes do lp “na rua, na chuva, na fazenda…”?

hyldon – do violão em casa, que aprendi a tocar com sete anos, à minha primeira guitarra, que ganhei aos 14, pouca coisa aconteceu. mas a partir daí, influenciado por beatles e “com uma pequena ajuda” do meu primo pedrinho, dos fevers, formei meu primeiro conjunto de baile, os abelhas. fazíamos de tudo: tocávamos na rádio federal de niterói acompanhando calouros, em festinhas de colégio, em aniversários, e chegamos a fazer um programa de televisão, “a festa do bolinha”, do jair de taumaturgo.

morávamos em niterói, e, com a volta da minha família para a bahia, minha mãe só deixou eu ficar no rio de janeiro com a condição de morar com meu primo. e foi o que aconteceu. então acompanhei de perto todo o processo da jovem guarda. ia com ele a todos os lugares, bailes e gravações de programas de televisão. a mão do destino então deu seu toque mágico. certo dia, o outro guitarrista dos fevers, almir, faltou a uma gravação, e alguém sugeriu que eu o substituísse. eu estava com 16 anos. apesar de nervoso e suando muito na mão, me saí muito bem . a partir daquele dia, passei a ser o reserva oficial da banda. essa oportunidade me propiciou o contato com estúdios, maestros, músicos e produtores, e me interessou em fazer músicas e mostrá-las, até que, em 1968, gravei a primeira. como era menor de idade, pedrinho assinou o contrato por mim. em 1970, alguns fatos contribuíram muito pra minha dissidência da turma do iê-iê-iê. o produtor e versionista rossini pinto resolveu formar um conjunto em cima dos fevers, e me chamaram pra tocar guitarra solo. nessa época eu tinha acabado com os abelhas, porque era a maior mão de obra conciliar minha nova vida no rio com os ensaios e bailes em niterói.

comecei a acompanhar cantores nas caravanas pelo interior, geralmente em circos, capitaneadas por animadores de programas de rádio. me lembro, por exemplo, do paulo sérgio cantando e eu atrás, com violão sem amplificação. o cara ia rodando o picadeiro e eu atrás com meu violão, acho que só ele ouvia. mas voltando ao tal conjunto, o nome era os selvagens, foi aí que conheci o michael sullivan. a primeira música que ele fez foi comigo, fui eu que o iniciei no ramo. gravamos a dita cuja com um cantor chamado zé roberto, espécie de genérico do roberto carlos. porquinho ou ivanilton, que mais tarde seria conhecido como michael sullivan, era o crooner, e o tinho saxofone, que depois viria a tocar com tim maia na banda vitória régia, e eu fomos os únicos dessa banda que continuamos com a música. eu estava mais a fim de sair na capa do disco, minha passagem pela banda durou menos de três meses. foram alguns bailes e um festival de música acompanhando rossini pinto. tomamos a maior vaia. a música era tipo sentada à beira do caminho, chata e monocórdica, e ele cantava com uma voz pequena, meio desafinado, mandava muito mal no palco. era um cara de bastidor. as outras músicas eram muito loucas, muito rock – para se ter uma noção da praia que rolava por lá, a música que ganhou tinha o nome de “agite antes de usar”.

o que começou a me incomodar era ter que copiar as gravações originais para tocar nos bailes. como solista, eu tinha que fazer igualzinho os solos. a outra coisa que mexeu comigo foi um livro que ganhei de presente do maestro ian guest, chamado “cartas para um jovem poeta”, do rainer maria rilke. a última, mas não menos importante, foi aceitar um convite para tocar no quarteto que acompanharia toni tornado, que acabara de ganhar o festival internacional da canção. na banda, chamada br-4, tinha um pianista chamado hélio celso que era jazz puro, admirador confesso de bill evans. ele me apresentou musicalmente a joão gilberto e me ensinou aquelas harmonias cheias de “aranhas”, acordes imperfeitos, nonas aumentadas, quintas menores, e por aí ia.

pas – você tinha uma trajetória nos bastidores de gravadoras antes de conseguir gravar aquele que seria seu maior sucesso popular, certo? como foi essa experiência? por dentro, as gravadoras são tão ruins quanto a gente imagina?

h – foi muito importante minha experiência como músico de estúdio, porque quando eu pensava na música já “via” ela pronta. naquele tempo a banda gravava junto com cordas e metais, eram poucos canais nos estúdios, então eu sabia como soava uma orquestra e, apesar de nunca ter lido uma partitura, sabia o que acontecia na grade do maestro. aliás, eu sei ler muito bem cifra. às vezes, quando tinha notas para mim, eu pegava a partitura, ia nos pianistas, que sempre sabiam música. eu pedia para dizer ou passar as notas, e quando o maestro atacava aquele trecho eu já sabia que notas eram. meu bom ouvido me ajudava.

só tive problema uma vez, e logo com a cantora de quem eu era o maior fã: elis regina. cesar camargo mariano, com quem eu havia trabalhado num lp do wilson simonal, e o produtor mazzola, que gostava do meu jeito de tocar, me chamaram para gravar no disco da elis. só que eles estavam ensaiadaços, cesar no piano, luisão maia no contrabaixo e paulinho braga na batera, eles tinham passado meses ensaiando. a primeira música era um samba do gilberto gil chamado “prezado amigo afonsinho” (depois de alguns anos desse fato, afonsinho ficou meu amigo e está sempre nos meus shows no rio de janeiro). sem brincadeira, a música, além de ser um samba rápido, tinha uns 300 acordes por minuto, exageros à parte… era foda, quando eu tentava acertar os caras já estavam longe. botei minha viola no saco e recomendei que chamassem o hélio delmiro, que, além de ser um excelente músico, lia até cocô de mosca. e deu certo a minha recomendação, pois helinho ficou um tempão tocando com a minha ídola. e eu carrego essa frustração de não ter participado daquela “guigue”.

agora, voltando ao assunto das gravadoras e comparando antigamente com agora, se isso é possível, um lance que havia naquela época é que a gravadora mantinha no cast artistas que eram muito bons, que não vendiam muitos discos, mas davam prestígio. e as gravadoras tinham dezenas de artistas. um exemplo: milton nascimento gravou seus discos sem vender na odeon. outro exemplo é johnny alf. com a entrada do marketing e o jabá ostensivo, a partir dos anos 80, isso acabou. e o talento musical não está sendo preservado, isso é péssimo para nossa cultura. pena que o gilberto gil não se liga nessa, talvez porque ele, caetano veloso, maria bethânia e gal costa tenham se beneficiado desse esquema. então não pode nem falar mal, que dirá fazer alguma coisa, mexer nesse vespeiro.

pas – como se deu a história da gravação de “na rua, na chuva, na fazenda (casinha de sapê)”? ela demorou um tempo para ser lançada, não foi?

h – foi uma escrotidão do [presidente da philips] andré midani, que já tinha feito a mesma coisa com o compacto do tim maia, “primavera”. tim havia gravado em são paulo, quando o disco chegou na mão do midani ele ficou segurando, não acreditava que fosse acontecer alguma coisa. até que um dia tim, num ato de desespero (estava duro e faminto, e gordo faminto não é mole), invadiu a sala dele e deu um soco na mesa. não sei se por medo ou pelos “argumentos” gritados do tim, logo depois do incidente o disco saiu e deu no que deu: “primavera” estourou.

comigo foi o seguinte: eu saquei que a melhor maneira de fazer o disco sem ser “descoberto” por um produtor ou empresário era estar dentro de uma gravadora. então comecei a produzir, primeiro como assistente do mazzola na philips e depois já como produtor na polydor [selo mais “popular” da philips]. eu tinha um feeling para produzir, e talvez um pouco de sorte também. tudo que eu fiz deu certo, até projetos da casa, discos de bandas fictícias como banda do canecão, som bateau e samba é uma parada. aumentei as vendas em mais de 100%. eu havia feito um trato com o [diretor da polydor] jairo pires, de que quando eu estivesse pronto iria gravar o meu disco. e foi o que rolou, quando um dia faltou um cantor eu, que já tinha puxado o grupo azymuth para tocar comigo em quase todos os trabalhos, aproveitei e gravei três músicas. descartamos uma, “palavras de amor ao vento”, e montamos um compacto com “na rua, na chuva, na fazenda” e “meu patuá”. o andré, quando ouviu, falou na reunião de produção que era um dos trabalhos mais legais que ele tinha escutado no brasil nos últimos dez anos. eu dei gritos de alegrias quando soube.

uma semana depois o jairo me chama na sala para me dar a boa notícia: a companhia achava que eu poderia ser o cara que faria um trabalho fifty-fifty, ou seja gravaria metade das minhas próprias músicas e metade de versões, e eles iriam investir muito em mim. a primeira música seria “angie”, dos rolling stones. eu fiquei pasmo, a vontade que me deu foi ir lá tomar satisfação com o midani. o pessoal da polydor me segurou. me levaram para um restaurante e lá me acalmaram, me deram um compacto da música para eu ouvir e pensar. cheguei em casa e coloquei a música pra tocar, até gostei. era uma bela música, mas totalmente longe da minha realidade. pensei que poderia regravá-la do meu jeito, se quisesse, mas tudo o que eu queria era gravar as minhas músicas. se eu não fosse compositor nem pensaria em cantar músicas de outras pessoas, nem do papa.

então começou uma guerra surda. a minha estratégia era produzir cada vez mais e dar mais lucro, assim uma hora eles teriam que ceder. só sei que, em dez discos da companhia, no final do ano de 1973 eu tinha quatro que havia produzido sozinho e mais uns dois de que participara da produção, preparando as bases: odair josé e erasmo carlos. meu compacto foi três vezes para a fábrica e voltou, por ordem do andré. isso durou oito meses, até que, para não me perder como produtor que estava gerando muito lucro para a empresa, resolveram soltar o disco, mas meio que escondido, sem nenhuma divulgação. mas o disco foi sozinho, com ajuda de pessoas honestas que trabalhavam no rádio fui sendo descoberto pelas rádios mundial e tamoio, no rio, e a bandeirantes de são paulo. em pouco tempo fui a primeiro lugar em todo o brasil.

pas – de onde e como partiu a idéia de mistura de samba, iê-iê-iê, música erudita, soul, rock’n’roll, música norte-americana etc. de “guitarras, violinos e instrumentos de samba”? era uma experiência malvista em 1975, mesmo entre músicos populares do brasil?

h – essas misturas sempre aconteceram na minha música naturalmente. deixo a música sair de mim sem bloqueio ou sem querer direcionar ritmo, levada ou melodia. simplesmente elas nascem assim, é uma mistura de tudo que ouvi nessa e em outras vidas (risos). em 1989, quando estava terminando um disco para a gravadora esfinge, apareceu por aqui o ex-trombonista de uma banda americana que eu adorava, chamada the crusaders. ele era também produtor da janet jackson e dos brothers johnson, e depois que ouviu meu disco me botou o apelido de “change man”. wayne gostou tanto do trabalho que levou para mixar nos estúdios dele em los angeles, cobrando só o custo do técnico. tenho os direitos desse disco, pois a gravadora faliu e ficou me devendo dinheiro. qualquer dia desses vou relançá-lo. mas minha música tem esse lance de mistura, dentro da própria música o clima muda de repente.

pas – do episódio que você conta sobre a rixa entre músicos eruditos e os “psicodélicos”, que impressão você guarda hoje? os eruditos se acreditavam superiores aos populares? como os populares reagiam a isso?

h – os eruditos daquela época eram coroas que não estavam acostumados com essa “profanação”. estudavam anos e mais anos para tocar numa grande orquestra. de repente apareciam aqueles cabeludos tocando acordes perfeitos, alguns ruins, e eles tinha que aturar. então tinha essa parada de estereótipos. para complicar, todo cabeludo roqueiro tocava mal, não existia afinador de guitarra. imagina você estudar anos para conseguir entrar para uma orquestra do teatro municipal e de repente ter que gravar umas musiquinhas chinfrins com uns caras tocando desafinados. na cbs, tinha um presidente chamado evandro [ribeiro], que produzia também alguns discos [toda a produção iê-iê-iê de roberto carlos, por exemplo]. a máxima dele era “vamos gravar, gente! se afinar, não vende!”.

pas – mudando um pouco o registro da pergunta anterior, você sente que os músicos populares da geração dos festivais, da dita “mpb”, se acreditavam superiores a artistas de extração mais popular, como eram os da jovem guarda, da black music, da canção “cafona” etc.? como você reagia a isso?

h – sempre existirá esse lance de turma, os iguais procuram se juntar. naquela época tinha a turma da jovem guarda, a turma do chacundum, a turma do soul, a turma da velha guarda (os da tradicional mpb, aliás no meu gosto os melhores, como nelson gonçalves, angela maria etc.), a turma do brega (que só estourava no nortewaldick soriano, por exemplo, era o rei dos puteiros do interior do país e aqui ninguém sabia quem era)… e existiam os “dandarandês”, a galera dos festivais que adorava um “dandarendê” [uma pequena pausa, para não engasgar: hahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahaahahaha]. era um tipo de música em que sempre cabia um barato desse. a nossa turma, também chamada de esquadrilha da fumaça, sempre circulou bem entre todas, até porque neguinho respeitava, porque éramos músicos e nosso trabalho, apesar de simples, sempre teve um rebuscamento nas entrelinhas.

pas – nos textos que incluiu na nova reedição do lp em cd, você cita suas visitas a filósofos, pensadores e escritores tão diversos como schopenhauer (violinos?), machado de assis, aldous huxley (guitarras?), jorge amado, arthur clarke, isaac asimov (instrumentos de samba?). você é um bom leitor?

h – agora estou sendo de novo. em 1977, depois do meu segundo disco, eu tive um problema muito sério. passei a desdenhar da força da palavra, adotei um bordão de um personagem do chico anysio: “palavras são palavras, nada mais que palavras”. coincidência ou não, aconteceu um episódio comigo, uma experiência muito louca, e eu não estava drogado. eu morava em são conrado, estava na janela e saí do meu corpo e comecei a me observar. cada vez eu ia me afastando mais, até que cheguei à distância de uma estrela e me vi ínfimo, pequeno. a partir desse dia perdi a minha , a auto-estima. a palavra escrita era passado, o futuro era o nada, para mim só importava o presente. ali começava o meu inferno astral, e passei a pior fase da minha vida. apesar de ter feito muitas músicas nesse período, que durou mais de dez anos, me perdi totalmente, só comecei a voltar a ser como era por volta de 1989. mas mesmo assim tinha altos e baixos, acho que só me encontrei de novo por volta de 1997, quando fui morar em teresópolis. foram 20 anos de eclipse. hoje recuperei a fé religiosa e na palavra. acho que uma coisa está ligada a outra, pelo menos para mim.

pas – a associação comum que se faz entre quem faz música mais popular e alta cultura, mesmo em termos extramusicais, é fruto de um preconceito? quando você falava, em “na sombra de uma árvore”, do que “não se aprende em nenhum livro”, estava de certa forma aceitando esse preconceito?

h – inteligência pode ser treino, alimentação, estímulo na infância ou quem sabe fator genético, mas tem um lance de sensibilidade que só as grandes almas têm, somado aquele lance de que a teoria na prática é outra. fiz questão de colocar e falar “na sombra” e não “à sombra”, como para chamar à atenção sobre a língua praticada, coloquial e a erudita do intelectual, o verbo e a ação.

pas – o imaginário musical e visual do lp remetia à vida na natureza, você colocaria seu disco dentro daquela vertente que, nos anos 70, ficou conhecida como “rock rural”? você vê pontos de contato entre o que fazia e as obras de outros artistas que também visitaram essa praia, como sá, rodrix & guarabyra, elis regina, erasmo carlos, milton nascimento & clube da esquina, ney matogrosso & secos & molhados?

h – eu sou daqueles que param para apreciar tudo da natureza: a cor do céu, as nuvens, o mar, o arco–íris, as plantas, os passarinhos, as borboletas. quando eu morava em teresópolis, acordava cedo para curtir a neblina e achava aquilo maravilhoso. pensava “como é que pode?”, se eu tivesse condições trazia o povo lá do sertão para ver aquilo, é um espetáculo. acho que “na rua, na chuva, na fazenda…” é um disco urbano, mas que valoriza muito o contato com a natureza.

quanto às pessoas citadas, todas me influenciaram um pouco. eu tinha os dois primeiros discos de sá, rodrix & guarabyra, certa vez fui gravar um jingle com os três num estúdio em ipanema, e quando terminamos eles me chamaram para tocar com eles, que iam lançar um disco e estavam formando uma banda. acho que isso foi em 1972. acabei declinando do convite, e fiquei muito honrado por sinal. secos & molhados foi um impacto muito grande quando apareceu. eu gostava das levadas e das bases do primeiro disco. zé rodrix estava nas bases desse disco. um grupo de que eu gostei muito foi o som imaginário, que tinha zé rodrix também, wagner tiso, tavito, paulinho braga, frederico, que tocava guitarra solo pra cacete. assisti a um show deles com milton nascimento no teatro do copacabana palace que foi um dos grandes shows que já vi na vida. o “clube da esquina” é um disco maravilhoso. deve ter me influenciado, com certeza. acho que tudo o que você ouve acaba fazendo parte de você, principalmente quando se é jovem, com a cabeça mais fresquinha.

pas – a celebração à natureza que você faz em suas letras tem a ver com algum tipo de nomadismo, de viver sem teto, como faz lembrar a citação à “nuvem cigana” do pessoal do clube da esquina, na faixa “eleonora”?

h – não, tem a ver com olhar em volta com olhar de criança. moro no rio e quando saio fico maravilhado com o visual, tenho sempre aquele olhar de turista, de pintor. quanto ao papo de nômade, eu tenho uma fixação por ciganos, se existir esse papo de outra vida mesmo acho que devo ter sido cigano, ou quem sabe motorista de caminhão.

pas – o grupo azymuth, fromado para acompanhar marcos valle, tem participação importantíssima nesse seu primeiro disco. que papel eles tiveram em sua obra, que paralelo você faria entre seu som e o de marcos valle?

h – há um equívoco nessa pergunta. o azymuth já existia com o nome de grupo seleção. o marcos chamou o trio para gravar a trilha do filme “o fabuloso fittipaldi”, acho que tinha uma música com esse nome e eles resolveram adotar o azymuth a partir daí. marcos valle é um burguês querendo fazer música popular, eu sou um músico popular em todos os sentidos. eu não desço o nível propositadamente, estou sempre dando meu máximo. houve um tempo, lá por volta de 1972, que gravei uns jingles com ele, as músicas eram dele e do seu irmão paulo sérgio valle. ele mostrava a música, em seguida passávamos. era um quarteto, marcos de piano, eu de guitarra, o batera era o nelsinho e o baixista, o tião neto, que tinha tocado no grupo do sergio mendes. era uma produtora chamada aquarius, de que ele e o irmão eram sócios [e também andré midani, e nelson motta] e tinha contas de empresas muito importantes. eu nunca gostei de gravar jingle, quando você começa a curtir, pimba, acaba, 30 segundos é muito pouco tempo. quando pintava um jingle de um minuto era festa. mas era assim, o marcos apresentava, a gente passava uma ou duas vezes e gravava, mas ele ficava puto que eu sempre puxava as levadas pro meu jeito e ele acabava entrando na minha. era um trabalho de que eu não gostava muito, mas pagava muito bem. acho o marcos um ótimo compositor, mas como músico é meio “mão de ferro”.

pas – o universo “black music” do soul (e/ou samba-soul, samba-rock, outros tantos rótulos) que você freqüentou antes, durante e depois de “na rua, na chuva, na fazenda…” foi habitado também por nomes como tim maia, roberto carlos, jorge ben, elis regina, marcos valle, wanderléa, wilson simonal, cassiano, bebeto, maria alcina, arnaud rodrigues & chico anysio, luiz melodia & black rio, entre tantos outros. você poderia dar pequenos depoimentos sobre todos esses caras?

h – roberto carlos fez algumas incursões no soul. luiz melodia tinha uns lances, como em “ébano” e “pérola negra”. cassiano faz mais soul music do que muito negão do harlem. a elis era fã do gênero, adorava as cantoras negras americanas e fazia algumas experiências audaciosas na época, como chamar o tim maia pra gravar com ela “these are the songs”, uma canção dele, mas fica por aí. eu estou escrevendo um livro para deixar meu testemunho sobre alguns fatos. acho que o testemunho escrito é muito importante, senão fica aquela história de telefone sem fio e depois, no futuro, vai ficar mais difícil pra se separar o joio do trigo. por exemplo, o trabalho do arnaud rodrigues e chico anysio não era musicalmente sério nem engajado em algum movimento musical. era uma piada para divertir as pessoas, não tem nada de samba–rock. neguinho fazia umas músicas engraçadas para ganhar dinheiro e divertir a galera, acho válido, e era muito bem-feito. cheguei a compor duas músicas com arnaud rodrigues, mas nunca gravaria uma música dessas num disco meu.

maria alcina, quando a conheci, eu estava tocando com toni tornado e ela foi convidada pra abrir o show dele no teatro do copacabana palace, e nós a acompanhamos. ela tinha ganho um festival, acho que de cataguases (mg), excelente pessoa com talento nato pro palco. se eu escrevesse um musical a chamaria com certeza. gravei tocando algumas músicas de um cara que mandou muito nessa praia, o hélio matheus, gravei guitarra em “crioula”, que a wanderléa cantou, e uma gravação de uma música linda chamada “boi da cara branca” [linda!, linda mesmo!, de morrer!], com ele mesmo cantando, que foi pra uma novela [“o astro”, 1977-78, de janete clair], o erlon chaves também tinha uma levada dessa praia. mas eu mesmo nunca compus nada parecido.

o erasmo carlos chamou eu, luis vagner e helinho para gravar um disco com ele, chegamos a iniciar a gravação. não deu certo, mas erasmo usou levadas que criamos nas sessões, que não foram aproveitadas no disco que ele concluiu com outras pessoas. não lembro o nome do disco, mas a música que caracterizava a nossa marca era “mané joão” [o nome do disco é “sonhos e memórias – 1941-1972”, saiu em 1972. reúne músicos como azymuth, luizão, pedrinho, tavito, jorge amidem, lafayette (inventor do órgão iê-iê-iê), renato e paulo césar (dos blue caps), roberto (irmão de wilson) simonal etc., e é um dos álbuns mais geniais da história da música brasileira]. o que foi legal para mim foi que o erasmo me convidou pra ir para argentina e paraguai e me nomeou diretor musical, com total liberdade para convidar os músicos que eu quisesse. adivinha quem eu chamei? claro, o azymuth. como o tecladista zé roberto [bertrami] não podia ir, eu chamei o cidinho, um pianista que havia trabalhado comigo na banda da eliana pittman, para substituí-lo. foi muito bom, porque passamos quase 40 dias viajando e essa convivência com o mamão e o alex malheiros [os componentes do azymuth, com bertrami] refletiria no nosso entrosamento na gravação do meu disco, que eu começaria a gravar no ano seguinte.

pas – você diria que se ouvem no disco de estréia referências à música de seu estado natal, a bahia? qual é sua relação com a música de dorival caymmi, de joão gilberto, dos tropicalistas (haveria algo de “domingo no parque” no lindo arranjo de “quando a noite vem”?), de raul seixas, de novos baianos, de antonio carlos & jocafi? entre eles, você seria uma violeta num jardim de rosas?

h – nunca associei “quando a noite vem” com “domingo no parque”. no arranjo procurei, através das cordas e do coro feminino, criar um clima de mistério, de medo. claro que sofri influências da tropicália, com aquele lance de misturar tudo, amava os mutantes. joão gilberto e dorival caymmi são referências obrigatórias para quem gosta de boa música, são dois craques do violão, e uma coisa peculiar é o contraste da maneira de cantar: um canta baixinho e o outro alto, colocado, deve ser porque dorival sempre morou em casa e o joão em apartamentos [genial a hipótese, hyldon, genial!]. talvez, para não incomodar os vizinhos, tinha que cantar baixinho. agora, do raul seixas e antonio carlos & jocafi, não tive nenhuma influencia, não.

pas – você diria que se ouvem nesse disco referências à sempre tão maltratada música “cafona”, ou kitsch, brega, tantos outros rótulos? qual é sua relação com a música de odair josé, wdom & ravel, wando, maria alcina, fernando mendes, reginaldo rossi, tantos outros? entre eles, você seria uma violeta num jardim de rosas?

h – em 1969, fiz um excursão com os diagonais, que tinha um convidado chamado maurício reis (anos depois eu produziria um lp dele para a polydor, que tinha uma música chamada “verônica” que puxou a vendagem do disco, e também um bolero do cassiano). eu tinha um fusca, e fomos daqui do rio a salvador fazendo shows, em clubes, circos, bares e puteiros. chegamos a morar em algumas “casas” dessas por dias, quando a situação apertava. geralmente eu e o maurício arranjávamos as namoradas para arrumar lugar pra dormir. eu me dava bem porque era o mais gatinho. maurício cantava só musica brega: “o ébrio” do vicente celestino, sucessos de altemar dutra, adilson ramos, carlos alberto… as meninas choravam quando o maurício cantava. mas tinha uma coisa que ele ficava puto, queria matar eu e o cassiano, que nos revezávamos entre o contrabaixo e a guitarra. por exemplo, quando ele cantava “o ébrio” e nós puxávamos a levada para o soul, ele virava para a gente e nos fuzilava com olhares, a gente só ria. quando acabava a apresentação, ele vinha reclamar dizendo que nós estávamos estragando o número dele. mas não adiantava, eu e cassiano sempre fazíamos isso. o resto do show era os diagonais cantando músicas que tinham gravado, tinha “você fingiu”, que tim maia gravou no primeiro disco dele. aliás, várias músicas desse nosso show entraram no disco do tim, como “coronel antônio bento” (do luiz wanderley), que era uma parte cômica do show, em que camarão imitava o coronel ludogério (um cara tipo genival lacerda). na gravação do tim, quem canta a segunda parte da música é o camarão.

e finalmente eu cantava duas músicas minhas, “eu me enganei” (gravada pelo robert livi), música que entrou na coletânea “as 14 mais” da cbs e rendeu uma grana legal, que foi o dinheiro com que comprei o carro que nos conduziu, um fusquinha 1965. imagina cinco caras, malas, instrumentos e dois meses viajando por estradas que nem sempre eram asfaltadas. tem uma cena em uma cidade, leolpodina (mg), quando fomos pedir para dormir a um padre e ele, claro, quando viu aqueles cinco homens esquisitos, negou categoricamente. acabamos dormindo todos no fusca sentados em frente à igreja. a outra música que eu cantava era “chove, a natureza chora”, minha e do meu primo pedrinho, gravada pelo wanderley cardoso. na gravação do w.c., os diagonais fizeram vocal, e o cassiano depois se inspirou nela pra compor “primavera”. aí vai a letra: “chove, a natureza chora/ assim como eu choro a falta de você/ lembro, você me disse que as flores voltam com a primavera/ já é inverno/ tudo é tão triste/ a primavera passou e você não voltou”. a música é totalmente diferente, mas a letra tem a ver. tem música dita brega que eu gosto, acho bem-feita. e tem muita música clássica chata.

pas – como “a turma do samba”, de martinho da vila, beth carvalho, paulinho da viola, clara nunes, roberto ribeiro etc. etc. se relacionava com a “turma da black music”? havia disputa, chegou a ser barra pesada? para você, o que separava os “sambistas” dos “blacks”, se suas origens pessoais muitas vezes eram parecidas?

h – maravilhosamente bem. eu tinha grandes amigos sambistas: agepê, roberto ribeiro, joão nogueira, joel teixeira. aliás, ainda tenho. o jorge aragão gravou no seu último disco uma música minha (“na rua, na chuva ,na fazenda”), o sombrinha e o carlinhos vergueiro jogam futebol comigo.

pas – embora seu nome nem sempre seja lembrado entre os artistas sempre citados das gerações heróicas dos anos 60 e 70, você é dono de dois clássicos inquestionáveis da música pop brasileira, “as dores do mundo” e “na rua, na chuva, na fazenda (casinha de Sapê)”, que passaram a ser revalorizadas por grupos dos anos 90 e até hoje gozam da simpatia da molecada. como explicar esse descompasso?

h – eu colocaria “na sombra de uma árvore” nessa lista… eu tenho uma parcela de “culpa” por esses períodos de ostracismo. é da minha natureza gostar de observar as pessoas, mais do que ser observado. meu sonho era que todo mundo conhecesse a minha música e ninguém soubesse como eu era fisicamente. de certa maneira trabalhei para isso, só “aparecia” quando tinha alguma novidade para mostrar, tipo diretor de cinema, escritor de livro, por aí… gosto da liberdade do anônimo. o que acontece é que a nossa indústria fonográfica é uma titica, os caras estão mais preocupados em ganhar dinheiro fácil, em resultados imediatos, e em roubar também, sabe como é, caixa 2… então interessa para eles trabalharem com artistas que movimentem grandes somas, arte que se dane.

junte-se a isso algumas crises pessoais, resultado: grandes hiatos entre um disco e outro. e a mídia para mim é um cachorro louco, cego e faminto [waaal! morou na contundência da imagem, formulada por um “artista popular”?], salvando-se raríssimas exceções. vai em qualquer uma. o que salva é que o tempo (a história) sempre se encarrega de fazer justiça com as próprias mãos. o que tem me ajudado é estar vivo, com saúde, produtivo e com a mesma garra de quando era moleque. e a história está mostrando que meu trabalho é honesto, simples e de qualidade. antigamente o repórter não colocava meu nome, apesar de eu ter sido citado. de uns tempos para cá, isso melhorou. agora citam meu nome, mesmo quando não sou citado (rs). o mesmo acontece quando dou entrevista e falo de algumas pessoas importantes para mim e para a música e não sai na matéria [ê!, aqui é blog!, agora vão sair!], tipo luis vagner lopes, hélio matheus, robson jorge e outros mais.

pas – sendo romântico, falando de coisas simples da natureza e da vida e buscando o otimismo, você dizia querer esquecer as dores do mundo. schopenhauer não estava com nada?

h – quem sou eu, primo, para ousar duvidar da inteligência de um filósofo? eu fiquei pau da vida por que ele ia de encontro ao amor platônico, inocente e verdadeiro que eu sentia pela gioconda. soube que a mãe dele tentou matá-lo empurrando-o escada abaixo, morrendo de ciúmes porque ele era um menino-prodígio e com 14 anos escrevia melhor que ela, que também era escritora [a história de schopenhauer, contada com tons diferentes dos de hyldon, mas confirmando-o, pode ser lida no psico-romance “a cura de schopenhauer”, de irvin d. yalom]. às vezes, quando eu estava lendo seu livro “as dores do mundo”, me parecia que ele odiava as mulheres. então, a música era uma resposta às coisas que ele falava sobre o amor romântico. eu era um adolescente apaixonado e não podia ser contrariado. se ele fosse vivo eu teria mandado o disco ou pelo menos a letra para ele.

pas – politicamente, você admitiria que fazia parte da turma “alienada” da mpb, ou isso também é outro mito de que os “populares” se tornaram bodes expiatórios, enquanto só artistas da casta de chico buarque e caetano veloso eram vistos como essencialmente politizados? como você sentiu e reagiu à barra pesada política de seus anos de produtividade musical mais evidente?

h – apesar de nunca ter me envolvido em política, fui preso duas vezes pela ditadura. tive uma música desse meu primeiro disco censurada. era uma música instrumental que eu havia feito para o meu amigo hélio celso, jazzista radical, e a única frase que tinha na música aparecia no final, que dizia “cuidado pra não virar jazz”. o advogado da polydor, dr. joão carlos müller, me chamou um dia na sala dele e disse que estávamos com um probleminha com essa música, que ela sido censurada, mas que poderíamos ir eu e ele a brasília tentar libera-la. eu, que havia sofrido duas prisões arbitrárias, nem pestanejei, “precisa, não, joão carlos, essa música já está fora”, e tirei a música do disco. mas cheguei a imaginar a cena, eu de tênis, camiseta e aquele cabelão black power tentando me explicar para uma bancada de generais prontos para me mandar pro pelotão de fuzilamento.

eu procuro trabalhar o máximo minha individualidade, e acho que assim agindo estou fazendo pela coletividade, que é formada por indivíduos. a música para mim é sagrada, está acima da política. mas não sou contra quem faz isso, respeito a individualidade. é isso, cada um faz o que acha melhor para ele e para a comunidade. eu faço música primeiro para me satisfazer e segundo para satisfazer as pessoas. sou contra guerras, guerrilhas, acho uma estupidez, tanto é que me alistei no exército para tirar carteira de identidade e motorista e nunca mais dei as caras por lá.

nunca senti na pele essa discriminação na classe artística, acho que era mais coisa da imprensa, tipo ou você estava engajado ou era um merda. mas dos artistas, não, caetano veloso cantou “na sombra de uma árvore” num show dele chamado “cinema transcendental” e compôs uma música comigo, “primeira pessoa do singular”, que foi do meu segundo lp, “deus, a natureza e a música”, de 1976. uma vez eu encontrei o chico buarque na casa do chico anysio e ele me disse que “na rua, na chuva, na fazenda (casinha de sapê)” era a música dele e da marieta severo.

pas – seu lp de estréia está completando 30 anos. se você fosse escolher uma música ou um detalhe dele que representasse o ano de 2005, qual seria?

h – “balanço do meu violão”: “esqueça todas as tristezas, venha e caia no balanço do meu violão”.

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Editor de FAROFAFÁ, jornalista e crítico musical desde 1995, autor de "Tropicalismo - Decadência Bonita do Samba" (Boitempo, 2000) e "Como Dois e Dois São Cinco - Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa)" (Boitempo, 2004)

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