A iminente regulação, no Brasil, dos serviços de VoD (Video sob Demanda), medida que se tornou premente e de interesse prioritário para a indústria audiovisual de todo o mundo em anos recentes, está em vias de se converter no mais duro golpe do bolsonarismo na indústria audiovisual brasileira desde a paralisação da Ancine em 2019. Um Grupo de Trabalho (GT) interministerial do governo finalizou, em maio, uma proposta legislativa para adoção no Brasil – consiste na fixação de uma alíquota geral de 1% para operadoras estrangeiras (reduzida para 0,27% em casos que haja investimento direto em produções brasileiras), 0,2% (em casos de empresas com faturamento anual de até R$ 200 milhões) e isenção total (0% de incidência) para plataformas que estejam integradas à serviços de telecomunicações.
Caso seja adotada, será a menor tributação do mundo. Observadores do setor audiovisual consideram que a proposta é tão daninha para o setor audiovisual brasileiro que nem mesmo os advogados da Netflix teriam a desfaçatez de fazer uma oferta tão entreguista. Além de uma ampla isenção, na prática a alíquota máxima praticada seria de 0,27%, oficializando-se a não-regulamentação, o que transformaria o Brasil em um curioso paraíso fiscal das empresas de streaming. Para fins de comparação, eis algumas alíquotas de tributação do VoD praticadas em outros países:
Argentina: 21%
Colômbia: 19%
México: 16%
Uruguai: 22%
Chile: 19%
Turquia: 18%
França: 20%
A proposta brasileira, gerada num Grupo de Trabalho do próprio governo, que em tese deveria se incumbir de proteger o mercado nacional, os empregos e o desenvolvimento do setor, despreza completamente a proposta anterior elaborada a partir de Consulta Pública da Ancine em 2017, que previa uma alíquota de Condecine sobre faturamento de 4% (também muito baixa, praticada somente na Suíça atualmente, mas que ao menos servia para iniciar um debate). O Brasil, segundo dado apresentado pelo deputado David Miranda, é hoje o segundo País que mais consome streaming no mundo. O setor cresceu barbaramente durante a pandemia do Coronavírus, por conta do isolamento social.
A ironia é que os cálculos das planilhas do próprio GT bolsonarista demonstram que os valores efetivos a serem recolhidos pelas plataformas, caso recolhidos, seriam inócuos para a indústria audiovisual nacional. Por exemplo: se for adotada essa proposta, o valor que se estima arrecadar da Netflix, a maior empresa de VoD, seria de apenas R$ 18 milhões por ano, uma quantia irrisória para a indústria audiovisual (daria para fazer no máximo umas 3 séries de orçamento médio, e a Netflix já faz bem mais que isso sem regulação alguma, por interesse próprio).
A informação da existência da proposta causou espécie entre os servidores do setor. Por conta disso, a Associação dos Servidores Públicos da Ancine (Aspac) solicitou acesso (via Lei de Acesso à Informação) às atas do GT para entender quais fundamentos técnicos levaram à elaboração de uma proposta tão nociva para a indústria audiovisual brasileira. O Ministério do Turismo (que passou a englobar os temas da cultura desde 2018) respondeu que as atas estariam com a Casa Civil, que por sua vez respondeu que as atas estariam com o Ministério do Turismo. A Aspac solicitou oficialmente as atas pelo sistema Fala.br da Controladoria Geral da União (CGU), mas elas desapareceram.
Tendo em vista o misterioso desaparecimento das atas de um debate que deveria ser público, o tema foi levado ao Congresso. No dia 30 de junho, houve uma audiência pública na Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados com o tema “Cobrança a empresas estrangeiras produtoras de vídeo sob demanda”. Pressionada, a Ancine enviou um representante, André Luiz de Souza Marques, Secretário de Políticas Regulatórias da agência, mas seria melhor não ter feito isso: ele enalteceu a participação da Ancine na elaboração da proposta, mas não soube o que dizer quando o conteúdo foi revelado e sua apresentação foi vista como irrelevante. A audiência terminou com uma avalanche de críticas e alarmou o setor audiovisual do País.
Hoje, não se sabe o número de assinantes nem o faturamento das empresas do setor operando no Brasil. Tampouco a quantidade de títulos comercializados.
O relatório do Grupo de Trabalho do governo é preliminar porque o Conselho Superior de Cinema (CSC), que deveria aprová-lo, não é convocado há mais de 2 anos (a última reunião foi justamente a que instituiu o GT). A proposta é criticada também porque opta por não regular cotas de conteúdo nacional, que é a tendência mundial e uma das principais reivindicações do setor – a proposta de 2017 previa cota de conteúdo nacional de 20% (na Europa, isso varia entre 20% e 30%) e proeminência de conteúdo brasileiro no catálogo (algo que muitos países já regulamentaram, destaque visual para as obras nacionais não ficarem “escondidas”).