Criar uma arte erudita bebendo de manifestações artístico-culturais populares, começando pelas do Nordeste. Há 50 anos, Ariano Suassuna se impôs e cumpriu essa desafiadora missão. Da vontade expressa do escritor em unir dança, literatura, pintura, música e teatro nasceu o Movimento Armorial. Na visão de seu criador, o movimento deveria recuperar o romanceiro popular nordestino, marcado pela literatura de cordel, pela música de viola, rabeca, pífano e até o aboio dos vaqueiros, pelas xilogravuras de artesãos e pelos folguedos e danças populares, como reisado, maracatu e cavalo-marinho.
Foi em 18 de outubro de 1970, que a Orquestra Armorial de Câmara se apresentou em um concerto na igreja barroca de São Pedro dos Clérigos, no bairro de São José, no Recife. A data marca o início do Movimento Armorial. Desde então, a invenção de Ariano Suassuna alçou muitos voos. A própria Orquestra ganhou vida independente, excursionando por Rio, São Paulo e Porto Alegre. Em seus 24 anos de duração, contou com a participação de nomes como Benny Wolkoff, Cussy de Almeida, Jarbas Maciel e Capiba. Outro grupo musical que surgiu foi o icônico Quinteto Armorial, composto por Antônio Nóbrega, Antônio José Madureira, Edison Eulálio Cabral, Egildo Vieira do Nascimento e Fernando Torres Barbosa. De 1972 a 1980, gravou quatro LPS.
O Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) celebraria os 50 anos do Movimento Armorial em 2020, não fosse a pandemia. A Mostra Movimento Armorial 50 Anos teve de aguardar quase dois anos para estrear em dezembro do ano passado na unidade de Belo Horizonte. Tal como os imigrantes nordestinos, a exposição veio descendo em direção ao Sul, com temporadas no Rio (entre março e junho) e agora em São Paulo, de 20 de julho a 27 de setembro. Para fechar o ciclo, a mostra se encerra em Brasília, entre os dias 13 de outubro a 31 de dezembro.
A exposição em São Paulo teve de se acomodar no histórico prédio do centro, um local bonito, porém de difícil disposição para a expografia. Não deixa de ser uma remissão às várias dimensões artísticas-culturais a que se propôs o próprio Movimento Armorial. Com ajuda de Carlos Newton Júnior, consultor e curador dos encontros artísticos da mostra, que mantém viva a memória de Ariano Suassuna, foi montada uma cronologia completa do escritor, que é o ponto de partida da exposição, no 4º andar do CCBB. Estão presentes momentos importantes da trajetória de Suassuna, desde a infância em Aparecida, no sertão paraibano, a foto posada na escadaria da Faculdade de Direito do Recife, em 1946, onde fez parte do Teatro do Estudante de Pernambuco, até as suas relações com os acadêmicos e sua insaciável vontade de valorizar a arte nordestina.
Autor de livros e peças consagrados, Suassuna se destacou como dramaturgo, romancista, ensaísta, poeta, artista plástico e até caligrafista. Ele concebeu um alfabeto sertanejo, criando uma forma identitária para marcar sua produção textual e visual. Em quadros batizados por ele de “iluminogravuras”, da junção de iluminura e gravura, Suassuna produzia, com nanquim preto sobre papel, textos ilustrados nos quais se faziam presentes as letras do alfabeto sertanejo, que foram inicialmente apresentadas no livro-álbum Ferros do Cariri, de 1974.
De sua extensa produção literária, emergiram clássicos como Auto da Compadecida (1957), que ganhou duas versões cinematográficas, A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta (1971), Farsa da Boa Preguiça (1974) e As Conchambranças de Quaderna (2018). Embora seja mais conhecido como o filme dirigido por Guel Arraes, em 2000, a partir de uma minissérie homônima lançada um ano antes, a peça teatral Auto da Compadecida ganhou uma primeira versão para o cinema em 1969. A Compadecida, dirigido por George Jornas, contava no elenco com Armando Bogus, Antônio Fagundes, Ary Toledo, Regina Duarte e Zózimo Bulbul. Os cenários levavam a assinatura de Lina Bo Bardi, embora a maioria das gravações ocorreu ao ar livre, em Brejo da Madre de Deus, no interior pernambucano. Para os figurinos da película, o artista plástico Francisco Brennand, amigo de Suassuna, foi convidado e também está presente na mostra, embora ele próprio dissesse: “Eu não sou Armorial, sou sexual”.
A Mostra Movimento Armorial 50 Anos, no CCBB, tem curadoria de Denise Mattar, consultoria do artista plástico Manuel Dantas Suassuna, filho do escritor, e coordenação geral de Regina de Godoy. Os organizadores preocuparam-se em mostrar as diferentes vertentes e referências, dando amplidão aos diferentes significados da arte unificada em torno do Movimento Armorial. Pode-se, por exemplo, ver desde a exposição de gravuras, pinturas e esculturas do amigo Gilvan Samico (1928-2013), as pinturas e esculturas de Miguel dos Santos, as pinturas de Ariano e de sua mulher, Zélia, a extensa produção de cordel, que Suassuna considerava ser “a principal referência do Movimento Armorial”.
Como outras exposições recentes, a Mostra Movimento Armorial 50 Anos tem seus lados instamagráveis, como na área de subsolo do CCBB, onde se podem ver desde a figura do Caboclo de Lança, do maracatu, até os painéis xilogravados de J. Borges. Aos visitantes, reserve um tempo para se dedicar às aulas-espetáculo de Suassuna, que foram um marco desde o início do Movimento Armorial, mas que foram ganhando musculatura ao longo dos anos, sobretudo quando ele assumiu, pela segunda vez, a Secretaria de Cultura de Pernambuco, entre 2007 e 2010. Nelas, vê-se a grandiosidade e genialidade do homem que explica não uma exposição, mas o sonho possível de se fazer cultura no Brasil.
Mostra Movimento Armorial 50 Anos. No CCBB, de 20 de julho a 27 de setembro. Gratuito. Reserva de ingressos em Eventim.