A cantora, compositora e dançarina pernambucana Lia de Itamaracá

Até o dia 11 de julho, o Itau Cultural oferece ao público, de graça, na Avenida Paulista, a chance de conhecer uma joia da cultura brasileira: a cantora, dançarina e compositora pernambucana Lia de Itamaracá. Trata-se da Ocupação Lia de Itamaracá, uma mostra multimídia que traz memorabilia, documentos, fotografias, canções, instrumentos musicais interativos e o pensamento e a moda desse monumento nordestino de 78 anos de idade.

O nome Lia de Itamaracá ficou célebre graças a uma canção composta em 1974 pela dupla satírica Baiano e os Novos Caetanos (ou Chico Anysio e Arnaud Rodrigues), que consagrou o verso “essa ciranda quem me deu foi Lia que mora na Ilha de Itamaracá” (na música Ciranda). A partir dali, houve uma popularização continental da arte e da presença dessa mulher alta, de espírito aberto, sorriso fácil e que um teste de DNA mostrou que tinha ancestrais na Guiné-Bissau, na África Ocidental, também pontilhado de ilhas.

A Ocupação Lia de Itamaracá, além de trazer a brisa de Itamaracá (ilha a 50 km do Recife, em Pernambuco) para a Paulista, tem a própria Lia como a anfitriã de jornadas musicais até 1º de maio. Ela faz o show intitulado Ciranda sem fim, cantando com Alessandra Leão (28 e 29 de abril), Novíssimo Edgar (30 de abril), Iara Rennó (1º de maio) e DJ Dolores (que participa de todas as noites). FAROFAFÁ entrevistou Lia de Itamaracá e também visitou a sua exposição na Paulista, que resenharemos logo a seguir:

 

Minha querida! Tá tudo bem?

Tudo bem!

Lia, Pernambuco sempre foi muito rico em música. Nos anos 1970, pintou aquela geração de Alceu Valença, Flaviola, Geraldo Azevedo…

Olha, Pernambuco é rico de cultura, é rico de mestres. O que se passa com essa cultura em Pernambuco é que o pessoal não valoriza…

Mas você é patrimônio vivo de Pernambuco. Você foi valorizada. Mas demorou. Ou não?

Mas tudo que demora, um dia chega.

Então, aquele pessoal dos anos 1970, com as guitarras de Paulo Rafael e Robertinho do Recife, aquele pessoal ajudou a renovar toda a música brasileira do período. Daí veio, nos anos 1990, a geração de Chico Science, Fred Zero Quatro, DJ Dolores, outra renovação que se espalhou.

O Abril ProRock

Isso. O Abril ProRock do Paulo André, que escalou você para cantar. E você é o esteio, é da tradição. Como são também os mestres do maracatu. Como você recebeu essas novidades ao longo dos anos, esse monte de garotos fazendo coisas diferentes. Você se sentiu parte daquilo, se sentiu incluída, ou se sentiu uma observadora?

Eu me senti família. Da família da música. Já vou entrando. Eles me convidam, vou entrando como se já estivesse ali há muito tempo. Não conheci Chico Science, mas conheci os músicos dele, sempre foi muito constante, maravilhoso, todos amigos. Isso é o que vale, né, nego: você ser amigo, se juntar, dar-se as mãos como numa roda de ciranda. A ciranda é uma família, não tem preconceito, dança todo mundo.

Como você aprendeu primeiramente a ciranda? Com sua mãe, sua família?

Não. Minha família não canta, não dança e nem sabe para onde vai (risos). Todo meu sonho era cantar, cantar maravilhosamente, tratar bem o público. Porque se você vai fazer uma apresentação, e não levar ao público amor, felicidade, carinho, você não vai receber nada. Eu sou desse jeito, eu trato todo mundo bem.

Quantos irmãos eram na sua família?

18 irmãos. Meu pai era casado. Com essa mulher com quem era casado, teve 11 filhos. Com a minha mãe, com que não era casado, teve 7 filhos. Aí, quando ele deixou minha mãe com esses 7 filhos, ela pensou: agora eu, com 7 meninos, o que vou fazer? Aí ela, vindo de um lugar chamado Sossego e arrastando esses 7 filhos, passou por uma família que lhe disse: “Estamos procurando uma pessoa para trabalhar”. Aí ela disse que tinha 7 filhos, e que queria acabar de criá-los. A mulher disse: eu tenho um sítio, e nesse sítio tenho uma casinha. Nessa casinha vou colocar a senhora com seus 7 filhos. Ela então perguntou como iria trabalhar e cuidar das crianças ao mesmo tempo. “Por isso não. A senhora venha e traga seus 7 filhos para o trabalho”. Era em Jaguaribe. Ali nós crescemos, dentro daquela casa. Um lavava os pratos, outros limpava o quintal, outro cozinhava.

Ela está viva?

Morreu com 52 anos de um derrame cerebral. Você sabe que um derrame cerebral quando não mata aleija logo. Do meu pai, que eram 11, só restam 5 filhos. A gente era tudo amigo. A madrasta não era ruim não. E minha mãe era muito carroceira (barraqueira) também, viu? Por ele ter deixado minha mãe com esses 7 filhos, ela só deixava a gente visitar ele toda Sexta-Feira da Paixão. Era de ano e ano. Ela guardou, guardou (mágoa).

E os 7 irmãos estão vivos?

Só resta eu. O resto tá tudo com Deus.

Seu nome de batismo é Maria Madalena, não? De onde veio Lia?

Quando a gente é muito em casa, sempre tem essa coisa de como um vai chamar o outro. Eu era Maria, eles diziam: como a gente vai chamar? Chama Lia, disseram. Chama Liinha. Os pescadores me chamam de Lia Maria. Então eu adotei Lia como nome artístico. Se forem a Itamaracá perguntar por Maria Madalena, não vão achar nunca. Mas chame Lia da Ciranda que todo mundo sabe, até os meninos te levam lá em casa.

Sua ciranda tem alguma conexão com a umbanda?

Não, não mexo com candomblé, com essas coisas não. Mas a ciranda tem em toda manifestação. A ciranda é uma dança onde todo mundo se dá as mãos e é uma família, todo mundo se reúne.

E suas influências, além dos mestres? Você ouvia Luiz Gonzaga, por exemplo?

Ouvia muito, no rádio. Conheci também, em show que fizemos. Era povão.

E o que você achava dele?

Era maravilhoso. Era o Mestre Cheguei. (Lia começa a cantar): “Eu sou do povo/Sou um cirandeiro /Armo a ciranda/Em qualquer lugar/Dou minha mão/À dama e a cavaleiro/É o bastante/Para me apresentar”. É uma ciranda. (trata-se da canção Portador do Amor, de Gonzagão)

No ano de 2020, houve o tombamento da ciranda como Patrimônio Imaterial do País. Alguma coisa traz de bom essas coisas da parte do governo? Ajuda ou atrapalha?

Não ajuda nem também atrapalha. É regular. É um reconhecimento. Eu mesma sou Patrimônio Vivo de Pernambuco pelo reconhecimento do meu trabalho. E teve a medalha do Mérito Cultural, dada por Gilberto Gil.

Você  é próxima de Gil?

Não, não, não, não. É cada qual na sua praia. Cada qual no seu quadrado.

E por que você sempre volta para Itamaracá? Porque não muda para o Recife, que fica mais fácil para todas essas turnês? Volta e meia você está na Europa, está hoje em São Paulo, amanhã em Brasília. Não fica melhor?

Porque Itamaracá é onde eu nasci, é onde me criei e onde eu vivo.  Ali é onde estão minhas raízes, é onde eu me inspiro, onde tá minha família. Tudo ali naquela bola. Itamaracá é uma ilha cercada de água por todo lado. Eu saio, faço meus showzinhos, volto pra ilha. Não posso desprezar a minha ilha. Nunca pensei nisso. Uma vez Reginaldo Rossi me disse: “Saia daí, Lia!”. Ele tinha uma casinha em Forte Orange e quando vinha para Itamaracá me chamava para jogar conversa fora com ele e tomar uísque. “Minha rainha, venha conversar comigo, venha!”, chamava. E me dizia sempre: “Minha rainha, saia dessa ilha!”. Eu dizia a ele: “Não posso. De jeito nenhum”. Ele dizia: “Você vê que eu fiz tanto pela Ilha de Itamaracá, fiz música e tudo e levei um pé na bunda”. Mas eu não vou tomar um pé na bunda não, respondi a ele. Nem na bunda e nem na cara.

E essa exposição aqui no Itaú Cultural? O que achou dela?

Maravilhosa. Aqui está tudo que é de Lia. Trouxeram tudo do Recife.

Até a carteira de trabalho de merendeira. Você trabalhou de merendeira 30 anos, não foi?

Trabalhei. 270 crianças para fazer merenda pra eles todo dia em dois turnos. Me aposentei, mas ainda sinto saudade daquelas crianças. Eu passei a fazer merenda também pelo município porque não tinha merendeiro, só eu. Mas as crianças que vinham estudar pelo município, de tarde, ficavam sem comer. Aí, eu pensei: eu já tô aqui, e tenho pena dessas crianças, e não tenho preguiça. Fui até eles e disse: vocês me pagam e eu fico aqui mesmo para fazer comida pra elas. Toparam. Quando chegou a época de aposentar, não pode ter duas aposentadorias. Mandaram avisar pra mim:  você tem que escolher: ou o município ou o Estado. “Eu vou ficar com o Estado que tem mais cabelo”.

E que você fazia para as crianças comerem?

Tinha de tudo. Arroz, feijão, coxa de galinha, bolinho de chuva. Eles saíam da escola almoçados. Fazia com amor, com muito carinho, dignidade, muita paz com eles. Eu dava comida, ia comprar pão, dançava com eles, cantava com eles. Está todo mundo já casado, pai e mãe de filho. De vez em quando encontro um na praia. Uma mulher tava passeando arrastando os meninos na praia e me chamou: “Lia, você já fez merenda pra mim, faça agora para os meus filhos!”. “Que é isso, menina, eu já me aposentei!” (risos).

E você enxerga ali, em Itamaracá, alguém que possa ser sua sucessora ou seu sucessor na ciranda?

Eu sempre quis que uma das minhas famílias assumisse isso. Mas nenhum, nenhum. Se algum tivesse interesse em seguir a minha carreira, estava por ali, em volta. Uma vez minha irmã me dizia: “Tu não se acanha? Não se sente envergonhada em cantar na frente de um público? Todo mundo ali olhando para sua cara?”. Eu disse que não, era isso tudo que eu sempre sonhei, e não venha botar minhoca na minha cabeça não. Uma vez um repórter do Diário de Pernambuco esteve lá em casa e perguntou ao meu sobrinho Ezequiel: “E como vai ser o legado de Lia? Quem vai ficar no lugar dela?”. Ao que Ezequiel respondeu: “Por isso não, doutor! Eu vou ser a continuação do trabalho dela”. Eu fiquei feliz. “Jesus, me ajuda! Ele vai entrar!”. Em uma viagem para a Alemanha, entramos numa loja de instrumentos e compramos um tarol, um instrumento de percussão, para Ezequiel aprender. Levei para casa. “Izaque, se tu vai ser a continuação da minha carreira, aprenda a tocar”. Se não vai cantar, tem que aprender a tocar alguma coisa. Tem oficinas no Espaço Cultural, não paga nada para aprender. Aí ele pegou o instrumento e botou em cima do guarda-roupa. Logo já tava embaixo da cama. “Izaque, tu enganasse o repórter, foi? Num dissesse que ia ser a continuação do meu trabalho?”. Ele é filho da minha irmã de criação. Ele me chamava de menina, na época. Agora é ‘minha velha’. “Menina, eu não vou tocar não..”. Então para que tu enganasse o repórter? Gostava de uma bola. “Menina, eu vou estudar”. A mãe é doceira. A gente é pobre, então você vai estudar. Botei na escola. Um dia a professora veio e disse: “Lia esse menino é muito displicente”. Eu chamei a atenção dela. “Se não tem paciência de ensinar, não pode estar na escola”. Ela passava tarefas, português, matemática. Ele não fazia as tarefas e a mãe batia nele por causa disso. Eu fui na escola que ele tava matriculado. Levei as tarefas e mostrei para o pessoal da secretaria de Educação, que me deu razão. Eu falei com a professora: “Você é doida ou joga pedra na Lua? Como passa uma tarefa assim para uma criança dessas?”. Não era trabalho para a idade dele. Eu tirei da escola e botei na minha, onde eu trabalhava. Ficava prestando atenção nele de longe, mas não falava nada, só olhava. Izaque hoje é um advogado. Mas e se eu não tiro? A vida está hoje de um jeito que, se você não souber criar aquela criança, ela desanda.

Lia, você parou com tudo na pandemia?

Parei com nada, meu filho. Trabalhei pra dedéu. Me preparei, me cuidei, me vacinei, me atestei. Fazer um vídeo, uma live, capa de revista, fiz filmes. Fiz o Bacurau, Paraíba Mulher Macho. Fiz a novela Riacho Doce. Filmei em Fernando de Noronha. Eu pintei o sete.

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