Disco de intérprete, “Trilhas do amor”, de Fernando Salem, é uma qualificada coleção de canções de amor – entre inéditas e regravações ele assina apenas duas das 12 faixas. Artista versátil, ex-Vexame (sim, a banda da Marisa Orth e André Abujamra), o cantor e compositor não se entrega ao óbvio.
O modo de consumir música mudou radicalmente com o advento das plataformas de streaming: em vez de álbuns, com conceito e unidade, singles esparsos, o que já torna “Trilhas do amor”, de cara, uma demonstração de ousadia, de quem não se rende a regras mercadológicas.
Em paralelo ao ofício da música, Salem é roteirista e assinou trilhas sonoras para programas infantis como Castelo Rá-Tim-Bum, Cocoricó, Vila Sésamo e Rádio Zoo. Tudo isso – somado à teatralidade da banda Vexame (procurem uns vídeos no youtube e confirmem) – nos ajuda a entender certas opções do músico, entre, ao mesmo tempo, costurar um repertório sobre tema ao mesmo tempo universal e batido, sem apelar ao fácil ou repetitivo.
Fernando Salem (voz, violão, guitarra, cavaquinho, baixo, programações e produção) é escoltado por Swami Jr. (violão, violão sete cordas e requinto), Marcelo Freitas (saxofone e clarinete), Adriano Busko (percussão) e Joel Timoner (bandolim). O repertório vai do pagode que abre e intitula o disco (assinado por André Renato, Arlindo Cruz, Carlos Sena, Charlles André, Gilson Bernini, Mauricao, Riquinho e Xande de Pilares) ao brega (como se convencionou chamar), na releitura de “Cadeira de rodas”, sucesso de Fernando Mendes, parceria dele com Zenith e José Wilson, aqui vestida de samba.
Mas não fica nisso: há bossa nova – “Demais” (Tom Jobim/ Aloysio de Oliveira), “Eu e a brisa” (Johnny Alf), “Só tinha de ser com você” (Tom Jobim/ Aloysio de Oliveira) –, canção latina – “11 y 6” (Fito Paez) –, e mais brega – “Mon amour, meu bem, ma femme” (Cleide), sucesso de Reginaldo Rossi. Passeia ainda pelo jovem-guardista Erasmo Carlos (“Olhar de mangá”), Caetano Veloso (“Sou seu sabiá”, também gravada por Marisa Monte) e uma interpretação bastante particular e delicada do clássico “Curare” (Bororó), já gravada e regravada por nomes como Jane Duboc, João Gilberto, Maria Bethânia, Nina Wirtti, Orlando Silva, Rosa Passos e Terezinha de Jesus, entre outros.
O repertório se completa com as autorais “B. O” (sigla de boletim de ocorrência) e “Pro Nelson, pro Cezinho, pro João”. A primeira “fala das queixas de um amor romântico. Depois de composta, percebi o quanto ela expressa a minha paixão por Reginaldo Rossi, Odair José e Fernando Mendes, desde os tempos da banda Vexame. A sonoridade brega-ska do Norte do Brasil também está no ar”, revela Salem no faixa a faixa distribuído aos meios de comunicação.
A segunda é um samba bem-humorado, carregado de mensagens cifradas, bolado por ele alinhavando histórias de três personagens: João Gilberto, Cezar Mendes (o Cezinho, como o pai da bossa nova o chamava) e um “enrolado” Nelson, como também nos conta o próprio Salem: “o meu amigo, compositor e violonista baiano, Cezar Mendes foi um dos poucos seres vivos desse planeta a ter o privilégio de conviver intensamente com João Gilberto nos últimos anos do gênio. João adorava Cezinho, como o chamava. E com ele, dividia histórias incríveis vividas na companhia de um outro amigo “enrolado” chamado Nelson. Quando Cezar me contou o quê e quem era Nelson, resolvi compor esse samba pro “Trilhas do Amor””. O resenhista também não vai entregar o ouro. Ou melhor, o fumo.
Nada em “Trilhas do amor” é mero mais do mesmo: várias das músicas reunidas pelo cantor e compositor no disco são bastante conhecidas do público, a maioria hits de rádio de outrora e ainda de agora. As abordagens de Fernando Salem são absolutamente originais e o convite a percorrermos suas trilhas é irrecusável.