Quinteto Violado, 1973
Toinho Alves, Marcelo Melo, Sando Johnson, Fernando Filizola e Luciano Pimentel, em 1973

Completados 50 anos de atividade, a banda pernambucana Quinteto Violado adquire ares de insólita instituição, como prova a biografia Lá Vêm os Violados – Os 50 Anos da Trajetória Artística do Quinteto Violado, do jornalista paraibano-pernambucano José Teles. O livro, versão ampliada pela Companhia Editora de Pernambuco (Cepe) de um lançamento original de 2012 (pelo selo Bagaço), inicia nos primórdios e chega até à interrupção de tudo pela pandemia de coronavírus, exatamente quando o quinteto começava a comemorar 50 anos de estrada. Da formação original, com Marcelo Melo (violão), Toinho Alves (contrabaixo), Fernando Filizola (viola), Generino Luna (flauta, logo substituído pelo então adolescente AlexandeSandoJohnson) e Luciano Pimentel (bateria), resta apenas Marcelo – Sando deixou o grupo em 1975, Luciano saiu em 1983 (e morreu em 2006), Fernando debandou em 1984 e o resistente Toinho morreu em 2008, ainda integrando o grupo.

"Charge!" (1971), de Paladin
A capa original de “Charge!” (1971), do grupo Paladin…
"Quinteto Violado" (1972)
…e “Quinteto Violado” (1972), acrescida de um chapéu de cangaceiro

Há mais de uma data possível para marcar o cinquentenário. Embora já viessem tocando juntos, o nome Quinteto Violado surgiu quando os cinco, ainda sem nome, tocaram em Nova Jerusalém (PE), em outubro de 1971, e foram saudados por um grupo de crianças locais com um “lá vem os violados!”. Em junho de 1972, saiu o LP de estreia, chamado Quinteto Violado, com capa plagiada pela filial brasileira da Philips de um LP de 1971 chamado Charge!, do obscuro grupo inglês de rock progressivo Paladin. Desde os anos 1960, no entanto, os futuros integrantes circulavam na cena musical recifense, orbitando ao redor do Movimento de Cultura Popular (MCP) e do grupo Construção (com Geraldo AzevedoNaná Vasconcelos Teca Calazans), tocando em conjuntos de baile e até atuando no iê-iê-iê local (Fernando Filizola foi um dos vocalistas da banda que revelou Reginaldo RossiThe Silver Jets).

"Música Popular do Nordeste" (1972)
A capa do álbum quádruplo “Música Popular do Nordeste” (1972), na versão brinde, que seria comercializada em volumes separados em 1973

Em dezembro do mesmo ano surgiu, em princípio só como brinde publicitário, o álbum quádruplo coletivo Música Popular do Nordeste, que o Quinteto Violado protagonizou de várias maneiras, selecionando músicas e artistas Nordeste afora, tocando frevos ao lado da cantora conterrânea Zélia Barbosa e regravando amostras de ciranda, coco, embolada, cavalo-marinho e bumba-meu-boi. Editada sob o selo O Jogral, derivado da casa noturna paulistana de mesmo nome, do compositor Luiz Carlos Paraná e do publicitário Marcus Pereira, a iniciativa culminou na criação do selo Discos Marcus Pereira, que lançou o projeto comercialmente em 1973, dessa vez em quatro LPs avulsos. O mitológico selo foi inaugurado, portanto com Música Popular do Nordeste e com a presença, além do Quinteto Violado, de dois pernambucanos egressos do MCP: o coordenador Hermilo Borba Filho e o diretor artístico Aluízio Falcão.

Marcelo Melo, único nascido paraibano no grupo de pernambucanos, havia participado da gravação de Das Terras do Benvirá, o último LP do conterrâneo Geraldo Vandré, gravado em Paris em 1970 e publicado apenas em 1973. A música de Vandré já havia motivado o início da criação do Quarteto Novo (com o pernambucano Heraldo do Monte, o alagoano Hermeto Pascoal, o carioca Theo de Barros e o catarinense Airto Moreira), e agora ressoava no Quinteto Violado, cujos vocais desde sempre se assemelharam ao modo introspectivo e grave de cantar de Vandré. O Quinteto Violado se equilibrava, equidistante, entre as inovações do Quarteto Novo e o apego tradicionalista do Quinteto Armorial, mobilizado por Ariano Suassuna, mas também as iniciativas à Mário de Andrade de Marcus Pereira. O nome Quinteto Violado poderia ressaltar preferência pela vazante defendida pelo “Ponteio” de Edu Lobo e Capinan (e do Quarteto Novo) no festival da Record de 1967: “Quem me dera agora eu tivesse a viola pra cantar”.

Mas não era bem assim. O Quinteto Violado surgiu como uma síntese com faro comercial de tudo que propunham, não sem um bombocado de conflitos, criadores como Vandré, Edu Lobo, o Quarteto Novo, Marcus Pereira e Ariano Suassuna, mas também da tropicália baiana, com a qual o quinteto também cruzou desde os primórdios. A princípio, influenciou e foi influenciado por Gilberto Gil, que trouxe para o movimento baiano conceitos aprendidos em temporada recifense pré-tropicalista. Quem logo se tornou produtor do grupo foi Roberto Santana, ligado ao grupo baiano e primo do tropicalista Tom Zé. Guardadas as muitas diferenças de épocas, o autor de Lá Vêm os Violados não erra nem exagera ao estabelecer paralelos entre o que significou o Quinteto Violado nos anos 1970 e o que significaram Chico Science & Nação Zumbi e demais mangueboys nos anos 1990.

A síntese violada operou especialmente nos álbuns dos anos 1970, desde que o primeiro Quinteto Violado (1972) se abriu com uma versão moderna e monumental de “Asa Branca” (1947) – não era mais o caso de negar o baião nem o mestre pernambucano Luiz Gonzaga, como antes haviam feito os violados cariocas da bossa nova. O próprio Gonzagão se disse fã da releitura, e suas canções seriam uma constante no repertório do grupo, ao lado de composições dos próprios integrantes, por vezes recolhidas de temas tradicionais (e nem sempre creditadas), como por exemplo a antológica “Marcha Nativa dos Índios Quiriris” (1972), atribuída a Marcelo e Toinho.

Em Berra-Boi (1973), o grupo apresentava ao grande público, sem tomadas de fôlego, a tradicionalíssima Banda de Pífanos de Caruaru (em “Pipoquinha”), o experimentalismo de Hermeto Pascoal (em “Um Abraço ao Hermeto”, decalcada de “O Galho da Roseira“) e o forró moderno inédito do pernambucano Dominguinhos (em “Forró do Dominguinhos”, que Gilberto Gil transformaria em sucesso dois anos depois, na versão com letra chamada “Lamento Sertanejo”).

Teles mostra em seu livro que, mesmo com tantas e tamanhas credenciais, o Quinteto Violado não foi facilmente assimilado fora do Nordeste, em particular no Sudeste, fato que, não é difícil concluir, se prolonga até os dias presentes.  Aconteceu, por exemplo, com o arrojado disco A Feira (1974), que hoje adquire ares obra-prima, pelas versões modernas e cheias de identidade elaboradas para canções de Luiz Gonzaga (“Assum Preto”, matadora, e “Pau de Arara”), Gilvan Chaves (“O Gemedor”) Vandré (“Disparada”), Gil (“Procissão”) e Caetano Veloso (“Ave Maria”).

O crítico José Ramos Tinhorão gongou o disco pela “crescente (e extemporânea) bossanovização dos arranjos”, pela “emepebequatrização do coro vocal” (em referência ao conjunto MPB 4) e pelo tom jazzístico da bateria de Luciano Pimentel (ironicamente, Tinhorão não detectou herança jovem-guardista na viola de Fernando Filizola). Outro escriba, Marcel Delon, reclamou do disco e do show que o originou porque “o que se ouve é um som sofisticadíssimo, jazzístico, bem diferente daquele som e da qualidade das músicas e dos arranjos apresentados nos excelentes LPs anteriores”.

Quinteto Violado e Elba Ramalho, 1974
No chão, à direita, a novata Elba Ramalho participa do incompreendido show “A Feira”, em 1974 – fotos Cepe Editora

Quem se deu mal foi a paraibana Elba Ramalho, então estreante, cuja participação foi limada quando o show foi reformado com o objetivo de atingir, nas palavras de Marcelo Melo a Teles, aquilo que “a crítica queria ver, ou podia entender melhor naquele momento”. Em compensação, entrou o sanfoneiro Dominguinhos, que levou o grupo a pensar em virar Sexteto Violado. Segundo o biógrafo, Dominguinhos afirmou à época que não gostava da música que fazia com Gal Costa e que sentia mais afinidade com a música do quinteto. O trabalho com Gal era o hoje clássico Cantar (1974), produzido por Caetano.

Outro crítico, não nomeado por Teles, definiu o grupo, à época de Folguedo (1975), como o “Ray Conniff da música nordestina, em versões adocicadas e paternalistas da música da região para consumo da classe média pseudo-intelectualizada”. Em Folguedo está a primeira versão do futuro clássico forrozeiro “Sete Meninas”, composto por Toinho e Dominguinhos. Também foram criticados (ou mal entendidos pelo Sudeste) os álbuns Missa do Vaqueiro (1976) e …Até a Amazônia?! (1978). O primeiro, inspirado n'”A Morte do Vaqueiro” de Gonzagão, gerou antipatia e incompreensão por retratar o ritual católico a partir do imaginário sertanejo nordestino.

Quinteto Violado e Luiz Gonzaga, 1977
O mestre Luiz Gonzaga participa da “Missa do Vaqueiro” ao lado do Quinteto Violado, em 1977

Tentativa de integrar o Norte ao imaginário nordestino do quinteto, …Até a Amazônia?! foi classificado pela crítica sudestina Maria Helena Dutra como “apenas uma pasta sonora que a memória não retém”. No ano seguinte, o contrato com a Philips não foi renovado e o Quinteto Violado partiu para a independência, onde, via de regra, tem permanecido desde então.

A estreia independente, Desafio (1981), lançou “Notícias do Brasil”, canção-manifesto de Milton Nascimento Fernando Brant que caía como luva no vocabulário do quinteto, em especial se o termo “litoral” fosse substituído por “Sudeste”: “A novidade é que o Brasil não é só litoral/ é muito mais, é muito mais que qualquer zona sul/ tem gente boa espalhada por esse Brasil/ que vai fazer deste lugar um bom país”.

Na saga da sobrevivência, o grupo foi impelido a se dedicar cada vez mais ao repertório de forró, em geral, e de Luiz Gonzaga, em particular. Assim foram Antologia do Baião (1977) e Pilogamia do Baião (1979), ambos ainda na Philips, Coisas Que Lua Canta (1983), Retirantes – De Sanfonas e Violadas (2002), Quinteto Violado canta Adoniran Barbosa & Jackson do Pandeiro (2010), Quinteto Violado Canta Zé Marcolino (2010), Quinteto Canta Gonzagão (2012), Quinteto Violado Canta Dominguinhos (2015)… Ao pernambucaníssimo frevo, foram dedicados 100 Anos Depois – É Frevo no PE (2008) e Eu Disse Freeevo! (2014). Já dentro da pandemia, veio à tona o ao vivo Na Estrada, resultado de turnê histórica que agrupou no palco o Quinteto Violado e a Banda de Pau e Corda (surgida na esteira dos violados e, segundo Marcelo Melo, batizada por Toinho Alves), mas foi interrompida pela quarentena.

Mesmo com o quinteto já sedimentado como instituição, nada disso significou o abandono do experimentalismo ou de uma veia, digamos, antipop. Em 1986, o grupo adaptou a ópera O Guarani, de Carlos Gomes, à qual introduziu guitarra elétrica – ia longe o tempo em que a dicotomia violão/guitarra era tema de guerra. Em Ilhas de Cabo Verde (1989), gravou mornas e coladeiras no idioma crioulo cabo-verdiano, antes que Cesaria Evora fosse descoberta pelo mundo. A partir de 1990, foram adicionados teclados, a cargo de Dudu Alves, filho de Toinho, numa quebra de paradigma que persiste até hoje, com Dudu, Ciano Alves (sobrinho de Toinho) Roberto MedeirosSandro Lins na formação.

Quinteto Violado, 2020
A formação atual, com Roberto Medeiros, Ciano Alves, Sandro Lins (de pé), Dudu Alves e Marcelo Melo – foto Elimar Caranguejo

Transformações e adaptações à parte, Lá Vêm os Violados demonstra que o Quinteto Violado criou escola, o que só costuma acontecer com artistas que deixam marcos verdadeiros em sua passagem. A Banda de Pau e Corda foi a que ficou mais conhecida nacionalmente, mas Teles apresenta outros nomes, como Concerto ViolaSom da Terra Bolo de Feira, além do roqueiro Ave Sangria, contratado (brevemente) pela Continental, na esteira do sucesso do Violado.

Uma prova a mais de que a amálgama entre tradição e invenção sempre orientou a pós-tropicália desenvolvida pelo Quinteto Violado se encontra no álbum Farinha do Mesmo Saco (1999), que rompeu o século tornando violadas algumas criações manguebeat (ou não) de Chico Science, Fred Zero QuatroOrtinhoLenine e Mastruz com Leite. Chico Science, em especial, reconheceu o vínculo violado-manguebeat em depoimento ao livro Bodas de Frevo – A História do Quinteto Violado (1998), de Gilvandro Filho, e reproduzido por Teles: “O Quinteto Violado foi para a música nordestina o que os Mutantes foram para o rock brasileiro. Para a cultura do Nordeste, eles são de muita importância, a união, o resgate de ritmos populares, do frevo e do maracatu”. E Chico arrematou, vinculando indiretamente o quinteto ao movimento udigrúdi que também vicejou em Pernambuco nos anos 1970: “O primeiro disco deles é um dos pontos psicodélicos da música nordestina”.

Farinha do Mesmo Saco sucedeu, como de praxe sem muita tomada de fôlego, o belíssimo Quinteto Canta Vandré (1997), que percorria direção oposta e prestava tributo concentrado àquele artista dissidente que, afinal de contas, foi sempre inspirador do som complexo do grupo pernambucano. A diversidade e a riqueza de referenciais que se podem colar ao Quinteto Violado evidenciam, no mínimo, que nunca foi banal a sua obra.

"Lá Vêm os Violados" (2021), de José Teles

Lá Vêm os Violados – Os 50 Anos da Trajetória Artística do Quinteto Violado. De José Teles. Cepe Editora, 248 pág., 50 reais.

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