Por Ademir Assunção
Ruy Castro é esperto. No centenário da Semana de Arte Moderna, aponta seu canhão de carioca adotivo e dispara: foi tudo invenção da ditadura militar 50 anos depois! Mais precisamente em 1972! “Calma lá, nunca disse isso” – óbvio, ele vai retrucar. Mas não precisa nem ser um astuto leitor de entrelinhas para constatar que escreveu e repetiu exatamente isso, de maneira escorregadia, como convém a um esperto vendedor de seus próprios livros.
Com essa boutade conseguiu promover, e muito bem, seu livro lançado por uma editora de São Paulo (Cia das Letras) em duas páginas de um jornal de São Paulo (Folha), no domingo, e já na segunda-feira em 1 hora e meia de entrevista numa emissora de São Paulo (TV Cultura). Estrategicamente, uma semana antes em que o quiproquó modernista aconteceu, 100 anos atrás (de 13 a 17 de fevereiro). Jogada de mestre.
“Alto lá, não caia na armadilha do velho blablablá bairrista”, me avisa a tempo meu amigo Pinto Calçudo. Sim, melhor evitar as garras dentadas para apanhar velhos ursos e partir diretamente para os fatos. No texto “A vanguarda oficial”, publicado na Folha de S. Paulo (domingo, 6 de fevereiro de 2022), o jornalista-biógrafo alinha uma série de bobagens do tipo: “Não se pode mais duvidar de que a Semana foi o ‘marco zero’ da cultura brasileira. Tudo o que aconteceu antes, de Pero Vaz de Caminha a Machado, não passou de aquecimento para o main event, que foi ela, e dela derivou tudo o que veio depois, da antropofagia à dieta do glúten. Suas bandeiras e conquistas foram decisivas: a Semana enterrou o parnasianismo, liquidou o soneto e desmoralizou os pronomes bem colocados”.
Poderia mencionar que o tom jocoso do estilo castrino deve muito a Oswald de Andrade, mas novamente não convém cair na armadilha, adverte dona Lalá. Difícil não notar, porém, a intimidade com que se refere a Machado de Assis, como se fosse um velho amigo de botequim do mineiro de Caratinga, o esquecimento do baiano Gregório de Matos, do paraibano Augusto dos Anjos e do catarinense Cruz e Sousa, para não falar do maranhense Joaquim de Sousa Andrade, mais conhecido como Sousândrade. Sim, apenas para lembrar quatro nomes imprensados entre Pero Vaz de Caminha e Machado, no pastiche ruynista. Esquecimento natural para quem acredita que a Semana de Arte Moderna não teve repercussão alguma, pois “não saiu nada nos jornais do Rio de Janeiro, nem do resto do país”, como afirmou em entrevista ao Roda Viva.
Melhor deixar de lado a abobada piada “da antropofagia à dieta do glúten”, tolice que cai muito bem numa mesa de bar, depois do terceiro uísque, numa província qualquer, e passar direto para o Evangelho das Conquistas Modernistas Segundo RC: o enterro do parnasianismo, a “liquidação” do soneto e a desmoralização dos pronomes bem colocados. Reduzir as provocações modernistas a essas três “bravias rebeldias” cairia bem, novamente, a uma roda de provincianos e desinformados bebuns, depois do sétimo copo, entre gargalhadas e beliscadas numa porção de provolone à milanesa. Escrito em um dos grandes jornais do país e repetido numa emissora de televisão, pode-se abster da qualificação como sandice e passar para o terreno de desonestidade. Não tanto quanto afirmar que a entronização da Semana de 22 deve-se ao ditador Emílio Garrastazu Médici.
As sandices prosseguem texto afora (ou adentro?) com afirmações de que fomos informados, por meio da Semana de Arte Moderna, “da existência do arranha-céu, do automóvel e do avião” ou que “com base nas versões revistas e ampliadas dos fatos por Oswald de Andrade a partir dos anos 40 e, desde então, tomadas como verdades pétreas, saiu toda uma nova história da Semana e do modernismo”.
Daí para a frente, Ruy Castro elenca uma salada de fatos e nomes políticos, de Washington Luiz a Getúlio Vargas, de Júlio Prestes a Pedro Motta Lima, de Plínio Salgado a Vicente Rao, reduzindo toda uma complexa conjuntura histórica, social e política a um arrazoado simplório de ataque principalmente a Oswald de Andrade. Tudo para “comprovar” o que exatamente? Em resumo: que São Paulo era uma província, que a Semana de Arte Moderna não teve importância alguma e que o Rio de Janeiro sim, era e sempre foi moderno.
Novamente não vamos cair na armadilha estupidamente bairrista. Hábil na lábia do texto, Rui Castro ignora todo o contexto. Ao menos na parte ocidental do planeta, o caldo fervia com as bombas da Primeira Guerra Mundial, terminada quatro anos antes da Semana de Arte Moderna, com a Revolução Russa cinco anos antes, com a aceleração industrial, o aprimoramento do parque gráfico, a aparição do cinema, o desenvolvimento da fotografia, o avanço da distribuição da energia elétrica e muitas outras inovações que alteravam não apenas a vida especialmente nos centros urbanos, mas, inclusive, e como não poderia deixar de ser, também as artes.
Movimentos de vanguarda explodiam em todos os cantos (ao menos do ocidente, repito): o cubo-futurismo russo, o futurismo italiano, o cubismo, o dadaísmo, o surrealismo, etc, etc, etc. Escritores, poetas, pintores e pensadores, mais ou menos ligados a movimentos, como o irlandês James Joyce, o polaco franco-italiano Guillaume Apollinaire, o alemão Hans Arp ou o suíço Blaise Cendrars viravam e reviravam a linguagem, portanto, a percepção e visão do mundo. Não fossem os “garotos rebeldes” de São Paulo (entre eles futuros reacionários), outros acabariam fazendo a Semana de Arte Moderna. O repórter-biógrafo certamente sabe de tudo isso, mas sua visão um tanto míope prefere não ver o que se passava não atrás, mas à frente das cortinas.
Em seu falatório, inclusive, não consegue esconder uma flagrante contradição: se a Semana de Arte Moderna foi “pífia”, como a energia empregada por aqueles “dândis” poderia ter gerado tantos “filmes, peças de teatro, shows, discos, performances, documentários, exposições e, mais importante, incontáveis reedições de seus livros”, como escreve em seu artigo?
Certamente Castro sabe também que um acontecimento dessas proporções não se resume ao momento em que ocorreu, mas se estende também aos seus desdobramentos. Imagine se a bossa nova, que tanto o encanta, se resumisse ao Samba de Uma Nota Só – o que, certamente, já seria um feito de grandes proporções musicais. Mas não, teve desdobramentos – e muito da bossa nova se institucionalizou, se petrificou, virou maneirismo, assim como parte do que ocorreu em 22. Mas a essência dela mesma e de seus desdobramentos, especialmente o furacão Oswald de Andrade, é inegável, teve repercussão em todo o país e em todos os setores artísticos. Seja nos anos ou nas décadas seguintes, com ou sem descontinuidades.
Ruy Castro, certamente, sabe disso tudo. Mas ele precisa promover seu livro. E o espaço que conseguiu com sua jogada de mestre – mestre um tanto desonesto, diga-se – vai lhe garantir trabalho para o ano inteiro. Será convidado para muitos debates, palestras, mesas-redondas, com bons cachês. Não se sabe se muitos no Rio de Janeiro, mas, com certeza, em todo o resto do país.
Dona Lalá, Pinto Calçudo e eu sabemos disso.
Ademir Assunção é jornalista e poeta, autor dos livros A Voz do Ventríloquo, Faróis no Caos e Risca Faca.
(Leia mais aqui sobre Machado de Assis e implicações raciais no trabalho de Mário de Andrade.)