Em 2010, eu comprei das mãos do Emicida e do seu irmão Fióti, na Zona Norte de São Paulo, ali perto da rodoviária, a mixtape Emicídio, com 18 faixas do artista. Paguei 5 reais pra eles. Os irmãos apenas começavam a viagem afro empreendedora da produtora LAB Fantasma, que tinham fundado um ano antes. A reportagem foi publicada na época num antigo periódico centenário também estabelecido na Zona Norte de São Paulo, no Limão.
Até hoje me lembro de ter achado bonito aquilo, dois irmãos pretos oriundos dos territórios fronteiriços rompendo com os velhos modelos de produção, divulgação e legitimação da arte (e seus subprodutos), tomando para si a frente das iniciativas, comerciais e artísticas. Inteligentes e esclarecidos, abriam caminho para milhares de garotos e garotas como eles, apontavam soluções e, sobretudo, ensinavam sobre paciência, comedimento, inovação, tenacidade, socialismo.
Por isso, como todo mundo, me entristeceu bastante a notícia de que Emicida e Fióti estão brigando na Justiça, e que Emicida acusa o irmão de ter levado dele 6 milhões de reais. A notícia me levou a duas conclusões imediatas: uma, que o negócio cresceu enormemente desde a venda de mixtapes a cinco reais cada; a outra, que a utopia que se desenvolve dentro das sociedades socializantes também está sujeita às mesmas implosões de qualquer empresa mercantilista ordinária.
O fato é que o Laboratório Fantasma não é uma utopia qualquer. Há um manifesto em vídeo no site do coletivo que ilumina essas visões: “Somos feitos das mesmas coisas de que são feitos os sonhos. Somos a outra maneira, o outro olhar, o outro Brasil. Discordamos da forma como o mundo funciona e trabalhamos para como ele pode ser”, dizem Emicida e Fióti na narração. O problema consiste justamente nisso: havia uma promessa de criação de novos parâmetros de relacionamento, de apropriação da criatividade, um horizonte de crenças igualitárias (e de afirmação racial).
“Acima de tudo, o Laboratório Fantasma é um coletivo de amantes de arte urbana, fãs de hip hop que optaram por aplicar em suas vidas a seguinte frase de Confúcio: ‘Escolha um trabalho que você ama e não terá que trabalhar um dia na vida’. Sob essa filosofia, canalizamos nosso amor e conhecimento com a intenção de dar o melhor para ver a história sendo feita e obviamente fazendo parte dela”.
O litígio entre Emicida e Fióti parece escancarar uma outra realidade. Não parece ter havido um coletivo de verdade, mas uma centralização bem embalada. Seria moralista (e equivocado) dizer que iniciativas como a Lab Fantasma não têm direito de ganhar muito dinheiro. É muito justo e até muito desejável. Essa briga judicial também não conspurca as produções artísticas de ambos – tem sido um caminho cristalino, de assimilação identitária, clareza política, êxito comercial – a turnê AmarElo – A Gira Final, de Emicida, reuniu mais de 100 mil espectadores no primeiro semestre de 2024, em 15 shows, e impactou diretamente mais de 5 milhões de pessoas, nas contas da LAB.
As hordas da extrema direita vivem de vampirizar episódios desse tipo. As hostes progressistas têm medo de entrar em duelos que podem derramar seu próprio sangue. A imprensa tradicional quer mais é produzir protótipos de Irmãos Gallagher em profusão para vender pílulas de miséria humana. É preciso tirar o fel desse negócio, retomar os pressupostos de coletividade (a LAB Fantasma era ponta de lança de estratégias de inclusão, com 54% de colaboradores autodeclarados negros, 44% de mulheres líderes e LGBTQIA+). Não pode perder o foco. A divisão entre Emicida e Fióti arrastou a mãe deles, dona Jacira (também do cast da produtora), ao conflito. Ela teve de escolher a defesa de um dos filhos, como toda mãe, mesmo entristecida. É difícil. Dá até para pinçar alguma outra frase dessas de calendário de Confúcio para tentar ajudar. Tipo: “Não fales bem de ti aos outros, pois não os convencerás. Não fales mal, pois te julgarão muito pior do que és”.
