Zuza Homem de Mello (1932-2021) não estava brincando quando colocou as seguintes entre as últimas palavras do livro Amoroso – Uma Biografia de João Gilberto (nas estantes a partir de sexta-feira, 5 de novembro): “Um agradecimento muito especial aos competentes e dedicados médicos que tanto me ajudaram a viver até os 87 anos para poder escrever este livro”. De fato, o produtor musical, pesquisador, escritor e jornalista morreu, de infarto, meros quatro dias depois de colocar o ponto final nesse que seria seu último livro. Amoroso emociona desde a primeira linha, não só pela proximidade relativa da morte do mito baiano João Gilberto (1931-2019), mas também pela do biógrafo, que acompanhou profissionalmente mais de sete décadas da produção musical brasileira e deixou obras de referência para a preservação da memória do samba-canção, da bossa nova, da era dos festivais, da música brasileira.
Coube à esposa de Zuza, a produtora Ercília Lobo, cuidar da edição final do livro, resultado de pesquisas iniciadas em 2001 e de 48 entrevistas realizadas pelo autor em 2019 e 2020, já sob a égide da pandemia. O trabalho coloca nexo entre episódios menos ou mais conhecidos da caminhada de João pela música e pela vida e é pungente ao retratar os anos finais do pai da bossa nova. Autor de canções gravadas a partir dos anos 1990 por Gal Costa, o trio Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown e Marisa Monte (em discos solo e no primeiro do trio Tribalistas), Bebel Gilberto, Caetano Veloso e outros, o também violonista e também baiano Cézar Mendes surge como testemunha ocular da história, no papel de raro interlocutor de João nos anos finais, em episódios quase nunca felizes. “Certa vez, Cézar ouviu um sonzinho que vinha do banheiro. Era João, muito abatido e frágil, que tentava tocar, para maravilhamento de Cézar”, narra Zuza, acrescentando um episódio triste à mitologia do amor de João pela acústica dos banheiros.
Hoje com 70 anos, Cézar afirma, por exemplo, que João “era um glutão” e, ao comer um acarajé, abocanhou uma colher cheia de pimenta na boca, para em seguida concluir: “A Bahia veio até aqui”. “Você deve estar sabendo que eu tenho uma dificuldade enorme de manter amizade”, disse João a Cézar quando esse tentava convencê-lo a celebrar um de seus últimos aniversários. Ao abordar o pandemônio financeiro e emocional que marcou os últimos anos de João, Zuza escreve que Chico Buarque, Caetano e Paula Lavigne conseguiram o apartamento em que ele ficou em 2018, ao ser obrigado a sair da moradia no Leblon, que acumulava R$ 270 mil em dívidas (e foi recuperado após o pagamento). Fala da falta que lhe fez a ex-esposa Miúcha (1937-2018) e narra crise de ansiedade e de choro sofridas por João nos dias derradeiros. “Na tarde de 6 de julho de 2019, no apartamento do Leblon, João Gilberto expirou”, narra Zuza, elegendo verbo perfeito para descrever a morte de quem costumava inspirar e expirar um ar chamado música.
Presente em algumas das últimas turnês internacionais de João (a derradeira delas, no Japão), o músico e médico baiano Tuzé de Abreu conta que o inventor da música moderna brasileira não tinha plano de saúde e morreu em decorrência de uma hérnia inguinoescrotal, que diagnosticou em João no longínquo 2004 e ele jamais operou. Segundo Zuza, em 2011 João chorou de emoção ao ouvir e constatar que estavam intactas as fitas originais dos três LPs que revolucionaram a música brasileira entre 1959 e 1961. Em março de 2019, quatro meses antes da morte de João, encerrou-se a disputa judicial de mais de duas décadas com a gravadora Universal (antes EMI, antes Odeon), e João conseguiu reaver a posse dos três discos originários, ainda hoje ausentes das plataformas digitais. Três anos antes, o banco Opportunity havia adquirido o controle sobre Chega de Saudade (1959), O Amor, o Sorriso e a Flor (1960) e João Gilberto (1961), por R$ 10 milhões, segundo estima Zuza. O mesmo Opportunity viria a cortar o aluguel do apartamento do Leblon.
O biógrafo descreve em detalhes o último show da vida de João, em 2008, na última vez em que ele foi à Bahia natal para cantar. Lembra, por exemplo, uma frase que o cantor disse no palco, ao mencionar um primo-irmão: “Sempre viajamos muito, me ajuda demais nos temores totais e tudo”. Zuza se debruça com afinco no histórico de cancelamentos de shows e atrasos homéricos para pisar no palco, mas com delicadeza vê a questão por um outro prisma, sempre deixado de lado no noticiário. “Um dos motivos pelos quais eu e outros viajamos várias vezes com João Gilberto era neutralizar ou pelo menos minimizar seu pavor patológico de entrar em cena”, interpreta Tuzé de Abreu, classificando o stage fright como “paralisante”.
Road manager das turnês de João, Arnaldo Bortolon descreve o mesmo pânico, sem usar o termo ou relacioná-lo a uma patologia: “O que acontecia com João é relacionado à dificuldade dele de sair de um lugar. Depois que se acomodava, não queria mais sair, ele adiava a viagem ou se atrasava para um show porque tinha muita dificuldade em deixar o ambiente onde estava, deixar o aconchego. Depois que chegava, não queria mais sair”. Sempre privilegiando a anedota em detrimento dos fatos, a mídia e o show business escolheram tratar o sofrimento de João como excentricidade, esquisitice, maluquice etc. etc. etc. Jamais compreendido em suas queixas profissionais no Brasil (desabafadas frequentemente no palco), João preferiu no fim da vida se apoiar em técnicos de som importados do Japão, mais sensíveis a sua música e, quem sabe, às suas obsessões. No outro lado do mundo, os japoneses chegavam ao ponto de estampar os dizeres “é proibido aplaudir por mais de 15 minutos”e “João Gilberto se atrasa” nos ingressos.
Curiosamente, não há relatos estrangeiros sobre quiproquós de palco que ele viveu no Brasil, como por exemplo no show da “vaia de bêbado não vale” na inauguração do hoje desativado Credicard Hall, em São Paulo. O samba “Pra Que Discutir com Madame” (registrado por João em 1986) paira no ar desses atos talvez teatrais, de amor e ressentimento simultâneos pelo país natal, mas essa é uma deixa que Zuza não apanha em Amoroso. Pouca coisa escapa à lente do biógrafo, casos do compacto duplo lançado no mesmo ano que Chega de Saudade, chamado João Gilberto Cantando as Músicas do Film Orfeu do Carnaval, com corais de samba e arranjos pré-bossa nova, ou da peculiar reinterpretação joãogilbertiana de “Me Chama” (1986), do roqueiro Lobão. Fica no ar se não houve tempo para as inclusões ou se se trata de alguma manifestação de reprovação do autor por tais gravações.
A narrativa de Zuza sobre as dificuldades que João tinha em conviver com outros seres humanos é caudalosa. Em 1989, João protagonizou raríssima excursão conjunta com Caetano e João Bosco, inclusive viajando de microônibus com eles, e ficava enciumado pelos beijos que as fãs davam nos outros dois no camarim. Bosco alertou que isso se devia ao fato de ele preferir o isolamento à aproximação com o público. “Aí João Gilberto também começou a receber beijos e abraços das moças depois do show. Ao que se saiba, acontecimento inédito em sua carreira, de vez que ele era um azougue em dar no pé assim que saía do palco”, escreve Zuza.
Em 1992, depois de quase 30 anos afastados nos palcos, João e Tom Jobim aceitaram fazer um show em dupla, mas João usava mil subterfúgios para evitar um encontro entre ambos nos bastidores. Zuza especula os motivos do distanciamento, creditando-o à hipótese de que João não se conformava de Tom ter aceitado fazer uma apresentação com Frank Sinatra – tocando violão, que era o instrumento dele, João. Em 1994, num show em homenagem ao então recém-falecido Jobim, no Lincoln Center de Nova York, João entrou e saiu sem ver nem ser visto por nenhum outro convidado. Entre eles estavam Caetano, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Gal Costa, Herbie Hancock, Sting, Dave Grusin, Nana Caymmi, Lee Ritenour, a ex-esposa Astrud Gilberto etc.
Para cá dos percalços, as histórias saborosas, por vezes divertidas, também são inúmeras, sobretudo nas primeiras décadas de sucesso. João Donato relembra as farras notívagas de ambos nos anos 1950, antes de João Gilberto ser João Gilberto. Seu amor pelos conjuntos vocais das décadas pré-bossa nova – Bando da Lua, Anjos do Inferno, 4 Ases e 1 Coringa, Namorados da Lua, Garotos da Lua (do qual participou em 1951) – fica evidente conforme Zuza vai decifrando de onde vinham muitos dos temas antigos que ele garimpou e revitalizou em bossa ao longo de toda a carreira. O convívio com os Novos Baianos se desenvolve no início dos 1970, mesma época em que João procurava cada vez mais se desvincular do movimento bossa nova. O encontro musical com Rita Lee num especial da Globo de 1980 ilustra o visor amplo do artista, que jamais concentrou o olhar apenas no imaginário musical da bossa. Maria Bethânia narra o embate para que João transformasse sua voz trovejante em sussurro, na gravação de sua participação no antológico disco Brasil (1981), gravado com Caetano e Gil. Zuza resgata a entrevista mais profunda (e possivelmente única nesse quesito) que João deu em vida, para o jornalista Tárik de Souza, em 1971.
Do pré-bossa, o livro remonta as passagens de João por Porto Alegre (RS) e por Diamantina (MG), importantes para a consolidação que se daria a partir de 1958. Demarca que em mais de uma ocasião o artista atribuiu as onomatopeias em suas (poucas) composições próprias, como “Bim Bom”, “Hô-Bá-Lá-Lá” (1959) ou “Undiu” (1973), aos “requebros das lavadeiras de Juazeiro”, sua cidade natal. As provas do fascínio de diversos jazzistas internacionais pela musicalidade de João (e da bossa nova) são inúmeras, e rendem histórias de fábula e encanto. O autor conta, por exemplo, que Dizzy Gillespie foi o primeiro deles a gravar bossa nova, antes de Charlie Byrd, Coleman Hawkins, Zoot Sims, Herbie Mann, Jon Hendricks, Stan Getz etc. “Dizzy tinha assinado contrato com a gravadora Philips, que não sacou o que tinha nas mãos e preferiu que ele gravasse um disco convencional para seu público. Dizzy perdeu a chance. Poderia ter tido um possível primeiro hit nos Estados Unidos. Quando seu disco foi lançado, todos disseram que ele foi o último músico a mergulhar na bossa nova. Na verdade ele foi o primeiro. É uma história terrível”, afirma o livro, pela voz do especialista em jazz Gary Giddins.
Zuza baila com desenvoltura pelas tentativas de explicar a música de João por palavras, o que produz momentos de grande inspiração, como quando traduz a relação direta entre as palavras de “Samba de Uma Nota Só” (1960), de Tom Jobim e Newton Mendonça, e o que acontece na estrutura musical enquanto João canta. Tratando do orquestral Amoroso (1977), Zuza expõe seu momento de maior intimidade com o ídolo e mestre, classificado como totalmente satisfeito com o resultado do disco (outra raridade em se tratando de João). Essas linhas explicam em grande parte a escolha do titulo para a biografia e todo o monolito emocional que deve ter significado construí-la. Parece ter sido a última coisa que Zuza Homem de Mello desejou fazer na vida, e ele fez.
Amoroso – Uma Biografia de João Gilberto. De Zuza Homem de Mello. Companhia das Letras, 323 pág., R$ 90.