O grito da Arte Indígena Contemporânea é por mais vida

JAIDER ESBELL

Achamos, e achar é julgar; nos rouba a consciência. Tendemos, e tender é ceder; nos submetemos. Criamos, e criar é fazer; nos colocamos. Abre-se uma cerimônia grandiosa na pequenez do mundo. Em volta da fogueira há sempre entidades, mesmo quando todos se retiram. Tudo tem espírito, por assim dizer, e nós estamos pobres nisso. Desmilinguidos, esvaímo-nos nos ralos, importunando os ratos; sons de pinga-pinga. Em outro ralar, a mulher canta cuidando da vida, pois a morte é certa.

Está a se esvair o todo, e há uma urgência enquanto o outro lado se preenche. São guerras de mundos unindo os conselhos de paz. À parte as artes, miríades de prontidão. Caçadores percorrem distâncias, decididos; entendem a gravidade da missão. O transe da força da fome é o alimento, seguem em juramento. Toca um som erudito e entro como o tal, ente maldito. Pois sigo e digo.

Em uma dança-transmundos, águias coreografam muito alto. Elas dançam eternamente, e nós de cá, à beira do abismo, achamos que duelam. Suas asas fortes, em constante movimento, ventilam nossas estruturas. Estamos enfraquecidos, precisamos de ajuda. Com punhos juntos entregamos nossas últimas forças em mãos erradas.

Alguém malicioso nos observa, à espreita. Há uma hipótese, portanto. Mas, com lamentos, ainda soamos egoístas, e o eco da nova era ainda não reverbera plenamente sobre o ego. Entramos então por outros meios, agimos como se deve. Passagens hão de surgir, pois elas existem e devem estar do nosso lado.

Arrisco dizer que cada um que aqui passar os olhos já flertou com a ideia plena da loucura. O fim, a morte na sua forma mais triste, a nossa. Decerto alguns já percorrem suas almas, quando outros ainda teimam na descrença quanto a uma elevação desta. Outros ainda, porém, já a perderam; vagam, agora, fora de toda ilustração. Nos passeios universais há uma parada; passagem obrigatória.

O letreiro diz, ofuscado: Salão das artes. A ideia de morte é escura, fria, solitária, e está por todos os lados. Ela é autoritária, determinista e recorrente. Sem qualquer cerimônia, circula por todos os espaços. De dentro dela saem monstros que logo se multiplicam e nos dominam. Eles atacam de súbito e, enganadores como são, disfarçam com boas vantagens. São horrendos, alguns já bem conhecidos. Agora aparecem mais intensos, longos e decididos. Os mais famosos conhecemos um pouco: medo, horror, desespero, pânico.… Tempestades.

São temas recorrentes na ideia clássica de arte. Por séculos seguidos ganham distinta exaltação. Em sua origem sistêmica são velhos companheiros da razão. Nos além-mares, já exauridos, sentimentos perpetuam-se, deprimindo. Almas vagas, contágios de pestes cíclicas vieram. No arroubo das investidas às nossas terras aportaram. E, cá estando, entram pelos sertões, esmiuçando.

Poderia ter sido diferente. Mas, certos de uma sentença, não ver nosso modo foi sua negligência. Recuo, foi tal nossa estratégia, por ambos. A diminuição foi imposta a nossa “auto”>estrutura composta. Instruídos, deixamos de ver até onde iria tal descabimento. A cena em construção ilustra bem. Ora caímos mais, ora somos arremessados de volta à terra firme. Ainda estamos vagos em vaidades. Sabemos da coisa comum que nos assola quando miramos. Consolam nossa origem os caminhos para onde ir. Nas aparentes calmarias, tendemos a repetições. Não aprendemos a respirar com respeito, e influenciados, ainda, perdemos por falta de estratégia. Nossa condição de teimosia exige mais treinamento, um outro tratamento para despertar, a serenidade. Devemos arrebatar. O oposto é matar, o que não nos compete. Talvez mostrar o espelho da morte como imposto a ser pago. Por sorte, temos memória, galerias de acesso consciente. Assim remodelamos, dizemos que arte não pode ser aquilo, visto que fraquejou. Farejou, a sabedoria ventilou com nitidez. Arte, no nosso sistema, é sublimar.

Quando tudo que viver couber, isso é a arte, por assim dizer. Junção de sentido prático. Elemento maior do existir, o ato do pleno servir. Não contemplação, apartação. É a idade, o valor do julgamento que pode nos dar a sentença. É a tentativa que pode nos levar à justiça das coisas. Ela vem como a saudade, a memória em sua metade. É uma rede ancestral, invisível abaixo dos refletores modais. Sons têm frequências invertidas, e a volta não será uma mera ideia. Entram cenas outras, outras apostas, opostas narrativas. Não podem ser só veleidades, frágeis leviandades, ocasiões.

A certeza está mais ausente, e isso é muito bom. A mente, ainda que demente, sente. No todo corpo há sementes inteligentes. Os dormentes ainda brindam com sangue, festa hostil e mortuária. Alguém, porém, um ser do além, poderá vir, e é do mais esquecido interior que vai surgir. Alguém, posto inferior por mera competição, tem um tição, uma brasa que flamula na escuridão ocular.

Fantásticos, pululam nos breus da imensidão seres comuns, indígenas. O fato é que conversam com os alienígenas. Com as linhagens cruzadas checam direto as previsões, com telepatia. São outras tecnologias, nem cabem assim, neologias. Não inferior; a arte indígena é transformadora. Essa, a arte-motor, motora que monitora, vai florescer tipo macega. Erva daninha, tem o poder de deslocar, fazer andar o oculto na antes vistosa plantação. Como vemos acontecer, a planta já cresce só, e faz devolver, floresta, onde antes se detinham tristes jardins coloniais. Um grito para chamar, cantos para curar, circunstâncias novas a ocupar.

Curas para expandir-se, o tempo agora é de escutar. Essa gente viva vive a trabalhar, nos pega pela mão e nos leva a planar com anciãos. Planar, mais que passeios bucólicos, pelas repetições dos pátios das instituições arruinadas.

Chegaram as novas estações, alguém chamou e alguém faz, as instalações. Vieram e cá estão, a polinizar. Ainda a polemizar mas, sem parar, os mangangás, besouros hábeis no ar, estão firmes a florear. Os seres especiais vão às raízes, falam com as matrizes. Com manhas próprias transportam de lá a arte deles. Aqui fora, ela pode geminar.
Era essa a arte que faltava, o par. O componente separado encontra seu condutor. Um outro tipo de amor tem seu valor. Esse tio é quem realoca, a partir da maloca. Ele é manso, muda as sinapses cerebrais para outras dimensões, em atos leves. Esse tio é assim pois não é gente, meramente gente como a gente sente. É de outro tipo de amor esse vivente.

Os sistemas milenares não são lineares, e dialogam. Operam, portanto, flexíveis, com linhas têxteis. Coloridas que crescem viçosas no ar como lianas. Fazem movimentos livres, vão longe, mas bem ancoradas. Por exemplo, faz uma madrugada serena agora, e sinto o capim dançando do outro lado do mundo, pois lá faz sol. Não tem luar aqui e ela está para lá, no seu momento. As marrecas migratórias chegaram para chocar, elas me contam as novidades. Passarinhos despertam, animados, e nós, os dorminhocos, achamos que é muito cedo para nos levantarmos.

O mundinho humano deriva em piloto automático. Parece que tememos, mas ainda não conseguimos exaltar a vida de mais ninguém de outra espécie. Tudo é triste, e parece que faz escuro. É, parece que faz mesmo. Como bichos do lusco-fusco, estamos juntos a cantar, pois somos artistas de entremeios, ainda. Flanamos, bem devagarinho, unindo versos que surgem. Somos todos indígenas, testemunhas dos universos prontos. Altivos e solidários, ainda que tidos como solitários, miramos.

Ainda somos um povo só, mas há os outros. Eles foram inventados e agora estamos quase quites. Os outros foram malcriados, já estão bem grandinhos e são bem fortes. Os outros não são o norte, são a morte. Nutridos, pesam muito, e a suas estruturas impostas hão de servir na hora exata. Virá, sabemos, a justiça das coisas há de chegar.

Fundir é um exercício longo, de demora. É urgente, para muito além de nossas gerações, das nações, das mansões. Monções, abriu-se o tempo da luz e vai adentrar, tortuosa como o vento, vai invadir. Fazemos arte para crianças, cirandas para rodá-las. Os outros não deixam entrar, nem ao menos as amamentam. Onde isso poderia dar, por acaso?
O planeta, vivo, comemora. Segue confiante o fluxo de seus irmãos. Muito além de nossas últimas memórias codificadas sobre rumos, nossas avós ainda dançam como avós. Elas vão estar sempre por aqui, e cá pode ser lá, o nosso lar. Cantam sons em notas suaves, cantam para nos acordar. Estamos em um sono abissal, precisamos de máquinas potentes, tamanha é nossa desatenção. Sonares introduzidos trazem o som à superfície, eterna cantoria.

Elas pedem silêncio, são as mestras do acalanto que agem. São as placas tectônicas deslizando amanteigadas no fogo constante do sol interior. São as lavas, o calor da perfeição, a trabalhar. E, em outra coreografia semelhante, explodem erupções. São os vulcões, montanhas avós a nos dizer: sou a Terra e estou viva, a água e o firmamento podem se unir. As forças comuns, as artes da natureza vão reuni-las. Repete-se: a arte como veio não pode voltar.

Não houve nem convite, apenas o inevitável chegar do ente tão evitado. Agora mesmo os sapos cantam no rio, milhares. Uma chuva de dois dias passou nessa parte da Amazônia, a avisar: acelerem, melhorem. Agora são meteoros, visíveis, a deslizar. Dizem o mesmo: sintam. Os astros são movimentos constantes, e nós pensando errado, e ainda dizemos para as nossas crianças que eles caem. Astros saúdam a vida nos chamando a olhar para eles, a ver, a perceber, sentir e desejá-los. São eles, ou elas, isso que não tem gênero, apenas gêneses, as energias que manejam as existências. São eles que devem aplacar nossas constantes exigências, devolver nossas ciências. Eu preciso ir para lá, ou nada disso, preciso me enxergar nisso para nos colocar em conexão, com os pés no chão. A consciência deve se expandir, pois, retraída, está em maremoto. De novo é o agente só, falando de um prisma só, o lugar que ora ocupa. Mas, na ressaca de um mar revolto, ele é a arte, o prático que nega culpas aos outros. O aparente duelo das irmãs águias parece estar perdendo força. Incertezas querem nos dominar, e digo que conseguem, com muita facilidade. O caos, antes só imaginado, invade nossa brincadeira, derruba a nossa trincheira. Estamos, ao que parece, sujeitos entre os movimentos. Estamos sendo ventilados em ascendência; ponto positivo. Agora, abandonados à decadência, definhamos. A força de queda atua, constante. Sentimos, por vícios outros, mais tristeza que conforto. Impera a nostalgia quando cá, não estando flexíveis, é o abismo que nos engole. É para essa paisagem extrapolada que pretendo levar as leituras. Reúno no inconsciente uma tribo de avatares, seres mágicos sem descrição. Jogando redes ao léu, são polidirecionais. Elas tensionam, e pegamos peixes grandes já sem iscas ou armadilhas. Eles estão vivos, debatem-se em retirada, mas não deveriam. A expertise do pescador trabalha além. Quando logo se completa o rito é o moquém, a paisagem. Moquém – tratar com fogo lento o alimento coletivo, na caçada, para levar para casa. Jornada que esquecemos quando, delongando quereres, edificamos megalópoles.

Vamos tentar falar, em escrita, disso que não tem meios. Contudo, ainda nos restam fragmentos de escadas, pontes, aspectos de meandros e trilhas que podem nos dar pistas de como ir ao buraco da minhoca, à oca. Ideias para encantamentos são como achamentos. Canta em mente, internamente, é o canto da serpente. O refluxo traz a semente, devolve o antes demente. Por sorte, longe da morte estamos contentes. Poderíamos fazer outros exercícios, mas é que estamos ocupados já fazendo. Arrisco dizer, em escrito, o que os nossos antigos nem sequer pronunciavam. As palavras sempre foram para positividades; as escritas, mensagens de pura cautela. Cuidemos, e logo. Sabíamos, pois sábios éramos. Amávamo-nos sem nem mandar ou exigir, pois era essencial o dito natural. Enquanto dentro, não enxergávamos o fora, embora suspeitássemos de sua força; seguíamos e cá estamos, à frente. Uns de nós sempre trarão reflexos, complexos; é como passam. Atravessamentos constantes, instantes, eternidades.
Idades não são vaidades, e o arvorar-se sempre dá em exagero. Agora, ao que parece, estamos dormentes. Mas, para as mais sensíveis mentes, a dormência não tem qualquer efeito sobre as dores outras, dos outros. São as dores que dão as cores; escuro, esquecimentos.

Os sistemas se corporificam. Infiltrados não usam filtros, e seus efeitos vazam matéria orgânica. A lógica deu penitências, desviadas poluições, contas para quitar. Tomam volumes vultuosos os corpos de um conflito negado. Para quais campos da vida caminham tais seres, senão para as cercanias das artes ou das filosofias outras? Devemos seguir sem cerimônia? Não há cura sem rito. Não há escuta sem grito. Não há grito sem vida. Não há vida sem o outro decodificado. É fundamental que fique registrada, com elegância típica, neste documento histórico, a nossa passagem fenomenal pelo exibicionismo. O catálogo da 34ª Bienal de São Paulo é que vai falar bem mais explicado como se deu tal privilégio. Que fiquem registradas as passagens e que o privilégio se desfaça quando estas letras chegarem aos povos-donos. Fenômenos paranormais, constelações de indígenas artistas, várias regiões, gerações, povos distintos e realidades plurais se fizeram ver. Desceram os improváveis no restrito universo das artes de palco alto.

É mesmo contraditório, e nem chega a ser, pois merecer é nosso caber. É básico, mas ninguém vê, ou fingem. Por isso ainda acontecer, tratamos de esclarecer. Seria um universo à parte a nossa arte, e somos, pois, estamos, firmes. Não poderiam ser mais mil folhas brancas preenchidas só de vazios. Não poderia ser mais um desfile de lamúrias e desgostos copiados. Não poderia ser mais uma festa sem gente, sem pimenta, sem fogo, sem ar, sem par. Artes datadas e manejadas em esquemas de estruturas colossais, mal-orquestradas, não podem permanecer, não mais pós-nós.

Antes arte do que tarde.

Essa pequena frase foi posta à mostra por Ailton Krenak. Isso arde e, se arde, é bom. Nossa referência midiática, o Ailton-ancião, foi trabalhada desde sempre para nos unir. Deu muito certo. Essa referência vem, sem pausa, orquestrando as águias para que nos levem a ver as pistas, a subir as vistas. Não nos detenhamos, porém, no mensageiro; olhemos a mensagem inteira. Ela é feminina, felina, cristalina e lúcida. A cena acima, que me atrevo a ilustrar na sua mente, é uma voz comum, do lado de cá, a essência, a lealdade. São as mulheres em nós que, sentadas firmemente sobre as palhas do infinito, tecem fios a nos dizer: se vão, voltem. Se voam, pousem, ou voo não é. A performance é mesmo desdizer, e dizer que não há mais para onde ir, senão voltar, e eu estou a esperar; estamos. As vozes das mulheres são o ar, esteja a par, escute as sábias sabiás.

Importante é destacar, neste relato, como aconteceu a primeira reunião com a equipe de curadores desta edição. Uma vez que aqui escrevo, minha mãe reza por mim. Quando aqui narro, limpo a honra dos meus irmãos, curo as feridas das minhas irmãs, alegro nossas anciãs. É assim que trazemos as manhãs. Energia com elegância, força com encantamento. Magia inferindo além dos sentidos superficiais, agimos nas camadas mais sensíveis da paisagem inanimada.

São manhas, coisas delongadas, típicas dessa nossa gente evitada o que se age. Aqui, para os povos nativos deste país e do mundo todo, devemos dizer o quê? Não, não podemos dizer que viemos ou que chegamos para ficar. Devemos apenas existir e insistir com esse abacaxi colonial. Há um abacaxi artificial no nosso meio, ainda. Vamos tomar um caxiri e assistir, trazer você do longe até aqui, pra te escutar e, assim, pedir pra te curar. Curadores curam, curadores sofrem, em cena.

Falar em tom de enunciação, essa oração, é estar ainda perdido nas armadilhas da inconsciência. Se somos de fato a tal ciência, nos portemos com sapiência. É básico estar, é justo participar. É inevitável brilhar, partir estando aqui, em constelação. Se somos constelações, não brilhamos a sós, tampouco desaparecemos quando chegam os sóis. Continuaremos para o sempre, aqui, o todo movimento é aqui, terras guaranis, fantasias dos tais tupiniquins.

Eu a levei comigo. A minha mãe foi na frente à primeira reunião. Ela é uma cobra grande, dessas que têm ovos infinitos dentro de seu existir. É saber, aquele poder que todos querem, mas que nem sabem onde está, pois está escuro. Não, o escuro não é o problema. Se há problema é com nossa falta de visão. Quem anda em mundos paralelos sabe regular o foco à ocasião. Foi muita luz, luz em demasia, que ofuscou a hierarquia, que se perdeu.
Eu, sem dizer, disse àquela representação – equipe de curadores, presta atenção: esta aqui é a nossa mãe! O rosto-terra enrugado desta menina é a tataravó de vossos atos falhos. Ela é quem deveria ser percebida, ouvida e acolhida. Eu não estava só entrando em um prédio de arte sistemática, numa tarde suja de uma cidade inviável.

A tarde se eternizou de encantamento, subitamente, pois, nessas horas, a mente não mente, e a gente sente. Então, entramos em um portal, e eram muitos. Vimos e fomos vistos, botamos para mais verem. Ver, a gente vê toda hora, somos os mestres das visões. As cosmovisões não fecham os olhos para as constelações. Cada passo é sobre os rastros, espiral que se devolve. Envolver, devolver, demover, não entreter ou entristecer. Desenvolver um dia ainda irá ser devolver. Devolves e desenvolvido és! Minha mãe foi nos guiar, foi nos benzer. Meriná foi para nos trazer. Meriná foi para dar prazer, dar de comer. Meriná foi lá para ver. Eu não estou a lhes dizer que é a voz da mulher a nos tecer? O que mais posso lhes dizer?

O escuro começou a esmaecer. A escuridão da falta de fé se dissipava. A obscuridade dos corpos concretados veio abaixo. Eu desci, fui caminhar no parque para ter mais clareza. A cidade morria, mas choveu para almar. Almar, a chuva faz almar. A chuva leva ao mar, a chuva é o ar – e Bernaldina, lá, a enfeitiçar. Foi feitiço, e isso é bom e necessário. Enfeitiça-te e serás benquisto!

Lá, apenas formalidades, distâncias representativas em mesa quadrada. Não eram meras tentativas, foram horas assertivas. Por nosso computador soltamos mais feitiço. O feitiço nada mais é que o básico do repertório. A arte não tem mais para onde ir senão sentar aqui, na nossa frente, a escutar. Nós é que estamos vivos e vivos podemos voar. Arte é para os vivos, arte é sobre os vivos, em arte sobrevivo, de arte é que vivo. Foi algo assim o que foi dito naquela tarde feliz ao inaudito. Infeliz de quem balbuciou, infeliz de quem teimou, de quem se desviou, devaneou.

Colhidos dos quatro cantos do mundo fizemos a primeira exposição. Amazonian Cosmos, o filme da introdução. Tarefa de situar, fazer assimilar. Demos uma volta na serpente, a ente estranha de enganar toda a nação. Noção, parâmetro, e agora, aqui neste texto, a devolução: todas as nações originárias destas terras devem se expressar com autonomia. Aqui onde estou, sou todos vocês num corpo só. Esse “ataque” não é um saque, à moda colonial. É um rito, um grito, uma guinada radical no maquinário estrutural. A casa das máquinas tem uma mente e ela mente, minha gente!

O ato de uma anciã que caminha ativa no grande mundo, levando a eterna voz do bem viver, é muito mais legítimo que nós, os mais midiáticos ou reivindicantes da condição ou do lugar de artista. Baseado na minha performance de abordagem dos outros, comemoro o alcance inédito que acabou se configurando nas minhas passagens por esta edição especial da Bienal de São Paulo, uma das maiores do mundo.

É que pouco ganhamos ao disputar. É que pouco somamos ao despistar. É que não é nem um pouco elegante enganar, humilhar, trapacear. Talvez, seria mais nobre a paridade; comer, cada um, suas metades. Quando a mesa é posta pronta, há um lado opressor na etiqueta. Quando as regras surgem impostas, alguém marcou por si, e isso ainda é grave. Para onde queremos ir isso não vai servir. Não serve aos que vêm de outra verve. Portanto, tivemos de vir até aqui, e deste ponto em diante, até os outros cantos, os caminhos se fazem por si.

JAIDER ESBELL foi um pensador, artista visual, curador, xamã, ativista e escritor que lutou pela conceituação de um sistema artístico indígena autônomo e pela saúde da civilização. Esse manifesto foi escrito por Jader para o catálogo da 34ª Bienal de São Paulo, da qual é um dos destaques. Ele morreu aos 42 anos no último dia 2 de novembro de 2021, em São Paulo
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