Ney Matogrosso
Ney Matogrosso aos 80 anos - fotos Marcos Hermes

A introspeção é o norte do novo álbum de Ney Matogrosso, batizado de Nu com a Minha Música em sincronia com a canção homônima de Caetano Veloso, que a gravou em 1981. Definido em ritmo de pandemia e isolamento, o título cai como luva para expressar o tempo e o humor que orienta o cantor sul-matogrossense de 80 anos. Na origem, “Nu com a Minha Música” expressava a solidão do compositor baiano durante uma turnê musical pelo interior paulista, e soa irônico que Ney apanhe uma canção de estrada para nortear um trabalho produzido na reclusão e na impossibilidade de cair na estrada. “Nu com meu violão, madrugada nesse quarto de hotel/ logo mais sai o ônibus pela estrada embaixo do céu”, canta Ney, quem sabe recolhido no silêncio do seu quarto. “Às vezes é solitário viver”, conclui o intérprete.

Talvez como maneira de manter agrupados os músicos que costumam acompanhá-lo nas turnês, Ney adaptou o conceito de produção e entregou três canções para cada um de quatro produtores, seus parceiros de palco Leandro BragaMarcello GonçalvesRicardo Silveira Sacha Amback. Habituados ao imaginário do artista, eles fazem trabalhos individuais que chegam a parecer conduzidos por uma pessoa só. Os tons menores são onipresentes, mesmo em um forró-canção nordestino popular como “Espumas ao Vento” (do pernambucano Accioly Neto, gravado pelo cearense Fagner em 1997) ou nas faixas mais sexuais, “Estranha Toada” (lançada pelo autor, o pernambucano Martins, em 2019), “Boca” (2020, do ator carioca Felipe Rocha, gravada em dueto de seu irmão Rafael Rocha com Ney) e “Faz um Carnaval Comigo” (da catarinense Jade Beraldo e do carioca Pedro Luís, gravada por ambos em 2019).

Ney mantém a sobriedade sempre, mesmo diante de versos como “a boca feita foi feita pra morder, a boca foi feita pra beijar/ e pra lamber, a boca foi feita pra chupar/ pra cuspir, engolir, bochechar” (de “Boca”), “eu cravaria meus dentes na tua garganta/ pra te morder as mentiras que saem da boca”, “minha garganta repele o que trazes nos dentes/ arrepiando verdade nos pelos da nuca/ pra levantar bem a voz/ com as mentiras de sempre” (“Estranha Toada”, bela canção vampiresa cuja poesia nutre parentesco longínquo com a literatura “Sangue Latino” dos Secos & Molhados) ou “sou eu no seu colo, você na minha mão”, “faz um carnaval comigo/ desfilando em meu umbigo/ evolui em minha nuca”/ (…) desejo é o comando e nós salivando, rolou ligação/ corre lábio em todo canto, rolam línguas feito ondas/ tá rolando um tsunami do meu corpo com o seu” (de “Faz um Carnaval Comigo”). Nessa última aparece outra dimensão do truncamento pandêmico, a da melancolia provocada pela ausência de Carnaval e pela suspensão de contato físico. Violinos eruditos e baixos funk-roqueiros povoam essas faixas, mas elas nem por isso afetam algum furor carnavalesco em época inadequada. Todas canções recentes, fazem cama para que Ney comunique o sufoco e a vontade de viver de 2021.

Em direção mais propriamente introspectiva, vai a sensual, mas contida “Noturno” (2004), do gaúcho Vitor Ramil. Algo parecido acontece no “Mi Unicornio Azul” (1982) do cubano Silvio Rodriguez, em espanhol, no “Quase Um Segundo” do paraibano/brasiliense Herbert Vianna e na “Sua Estupidez” (1969) da dupla capixaba-carioca Roberto CarlosErasmo Carlos, provavelmente no andamento mais lento que essa (sempre lenta) balada já conheceu. As duas primeiras só ao piano, a terceira em tom de blues e a última como um jazz quase nu, todas soam tristíssimas.

Num meio de caminho entre a melancolia e algum vislumbre afirmativo, em arranjos quase alegres, ficam “Se Não For Amor Eu Cegue” (2011, dos pernambucanos Lenine Lula Queiroga), e “Sei dos Caminhos”, do paulista Itamar Assumpção e da paranaense Alice Ruiz, lançada em 1991 pela sul-matogrossense Alzira E.

Ney Matogrosso

Nu com a Minha Música termina com a balada profética/messiânica “Gita” (1974), do duo baiano-carioca Raul SeixasPaulo Coelho. Os versos “às vezes você me pergunta/ por que é que eu sou tão calado” ganham outra conotação no recolhimento forçado pela pandemia, ainda que uma sombra de apocalipse permaneça no ar. Retomando canções criadas entre 1969 e 2020 por compositores de diversas gerações, o álbum encontra no contemporâneo Caetano o fio condutor que ata os tempos com o triste presente. Compondo num final de ditadura, Caetano falou sobre 1981 e fala sobre 2021: “Vejo uma trilha clara pro meu Brasil apesar da dor/ vertigem visionária que não carece de seguidor/ nu com a minha música, fora isso somente amor/ vislumbro certas coisas de onde estou”. Ney, intérprete cuja principal ferramenta de trabalho (a voz) aparece miraculosamente intacta e vibrante aos 80 anos, seleciona, transcreve e faz a mais completa tradução.

"Nu com a Minha Música" (2021), de Ney Matogrosso

Nu com a Minha MúsicaDe Ney Matogrosso. Sony Music.

 

PUBLICIDADE

DEIXE UMA REPOSTA

Por favor, deixe seu comentário
Por favor, entre seu nome