“As flores resistem à tempestade/ e cantam por becos, esgotos e bares/ sem ar, sem sol, senhoras e senhores, elas cantam/ nada conterá a primavera”, clama a faixa final de Casa Francisco, terceiro álbum da banda mexicano-brasileira Francisco, el Hombre. A voz principal é da sorocabana Juliana Strassacapa, mas a canção, em toada latino-americana de bailão cubano, revalida a origem transnacional trazida pelos irmãos Mateo Piracés-Ugarte e Sebastián Piracés-Ugarte, que nasceram na Cidade do México, se estabeleceram em Barão Geraldo (distrito universitário de Campinas) e se naturalizaram brasileiros. O tom afirmativo já é marca registrada da Francisco, el Hombre e se repete em outras faixas de Casa Francisco, como “Coração Acorda”, “Arbolito”, “Se Não Fosse por Ontem” e “Arrasta”.
“Coração, acorda, coração, acorda/ que tua batida faz o mundo andar/ coração, acorda, coração, acorda/ que chegou a hora do dia raiar”, diz, em tom de ciranda pernambucana, o refrão de “Coração Acorda”. “Eu não aguento esse ar que eu respiro/ por fora tudo, tá na hora de acordar”, complementa em participação especial a baiana Josyara, transmitindo por baixo do fogo afirmativo um tom de sufoco que já existia nos anteriores Soltasbruxa (2016) e Rasgacabeza (2019). “A atitude instintiva positiva é combativa, viva a iniciativa de quem pensa coletivamente/ ativa e afetiva, tempestiva e assertiva, destrutiva para quem tem medo da alternativa”, continua a ciranda-rap, sempre sonhando com o levante.
A peça de força, ao lado de “Nada Conterá a Primavera”, é a faixa de entrada, “Loucura”, que começa sertaneja nordestina, evoca a asa branca gonzaguiana, se latino-americaniza e mais adiante volta na vinheta “Pele Velha”. “A pele velha/ deixa no chão”, clamam ambas as faixas, vibrantes, esperançosas e atiradas (“só quando tu saltar vai ver se as penas são de verdade/ da queda livre vem a liberdade”, canta a primeira). “Loucura” se comunica com “Triste, Louca ou Má”, o libelo feminista que firmou a banda no primeiro disco.
O som de El Hombre, já descrito pelos músicos como “pachanga folk” ou “transculturalismo transamericano ruidoso”, mantém o vigor em faixas quase sempre enérgicas e executadas em modo maior. A diversidade está em todo canto, como na amorosa “Ocê”, de pique de música caipira brasileira, que se espalha pela América Latina sob outros codinomes. A gostosa “Olha a Chuva” faz ponte sul-norte com a participação da paraense Dona Onete e referências ao carimbó. Como numa tonada chilena, “Arbolito” derrama candura na interpretação de Juliana, em espanhol (“me siento segura con mi aliento y la força del corazón”), e “Solo Muere el Que Se Olvida” conta com a participação do grupo catalão La Pegatina. Completam o elenco de convidados a paulista Céu (no reggae “Arrasta”: “Tira a bunda do sofá!”) e o carioca Rubel (em “Se Não Fosse por Ontem”: “Toda noite o presente se transforma em passado/ aproveite para amar e ser amado/ não deixe pra amanhã porque nunca se sabe”).
Como explica Mateo em texto de apresentação de Casa Francisco, o projeto coletivo busca iluminar o que une, e não o que diferencia os integrantes. No ano passado, a banda perdeu o baixista Rafael Gomes, que foi substituído por Helena Papini. O tempo de pandemia foi utilizado no desenvolvimento de projetos paralelos, que tornam nítidas as divergências acomodadas com tolerância no coletivo. Sob o codinome Sebastianismos, Sebastián lançou em 2020 o álbum Sebastianismos e, há um mês, Tóxico, que tem produção de Lucas Silveira (da banda Fresno) em “Cicatriza” e participação de Badauí (vocalista do CPM 22) em “Não Mudaria Nada”.
Principalmente nesse segundo trabalho, o nervosismo punk rock predomina de alto a baixo, a partir da faixa-título que se limita a repetir uma frase: “Tóxico/ tudo é tão tóxico”. O sufoco dos anos pandêmicos extravasa também em “SOS” (“cantando SOS, será que mais alguém se sente assim?”), “Todo Dia É o Fim do Mundo” (“preciso respirar um segundo”), “Hoje Eu Não Quero Ver Ninguém” (“preciso de férias de mim mesmo/ e sumir do mundo real/ preciso me desconectar do mundo real”), “Se Nem Deus Agrada Todo Mundo Muito Menos Eu” e “Bomba-Relógio”.
“Me sinto tão bomba-relógio/ me envenenei de amor/ tô me afundando em ódio”, revela essa última, levando a consequências mais drásticas o tom explosivo já ensaiado por Francisco, el Hombre em rocks como “Soltasbruxa”, “Bolso Nada” (2016), “Chama Adrenalina :: Gasolina” ou “Chão Teto Parede :: Pegando Fogo”(2019). Os desconfortos estão explícitos: “Acenderam o pavio e virei molotov/ já explodi mais de uma vez e vou explodir de novo/ essa cidade é um hospício/ tirando selfie à beira do precipício/ é tóxico, ilógico/ segue o rastro de pólvora”.
Também se aventurando em trabalho solo, Juliana lançou em 14 de setembro um primeiro single sob o codinome Lazúli. Sóbria e serena, “Me Aconteci” radicaliza em sentido diverso ao de Sebastianismos e mais próxima da antepassada MPB. É produzida por um coletivo de mulheres e volta à rota de auto-afirmação feminina de “Triste, Louca ou Má” (que acumula quase 33 milhões de visualizações no YouTube): “O descompasso no meu pulso tem a ver com um relógio na cabeça/ silencio, vou pra dentro/ não existe nem dentro nem fora/ me aconteci, me manifestei/ me existi, me existi”. A pulsão que afasta (sem deixar de atrair) os polos feminino e masculino prevalece na Casa Francisco de Francisco, el Hombre.
Casa Francisco. Terceiro álbum de Francisco, el Hombre. ONErpm.
Tóxico. Segundo álbum de Sebastianismos. Olga Music.
Me Aconteci. Single de Lazúli. Difusa Fronteira.