A 45ª Mostra e o deserto do cinema brasileiro

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A personagem Sara em "Deserto Particular", de Aly Muritiba
A personagem Sara em "Deserto Particular", de Aly Muritiba

Selecionado no último dia 15 pela Academia Brasileira de Cinema e Artes Audiovisuais para representar o Brasil na disputa por uma indicação ao Oscar 2022, o filme Deserto Particular, de Aly Muritiba, fará suas primeiras aparições públicas em São Paulo nos próximos dias 23, 24 e 30. O filme está na programação da 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, iniciada com evento preliminar nesta quarta-feira, 20, e que marcará a volta do festival às salas convencionais de cinema, após sua completa virtualização na edição de 2020. Os 264 filmes selecionados serão exibidos em 15 diferentes locais da cidade (com atenção a todas as normas sanitárias em relação à covid-19, conforme promete a organização), e 129 deles terão exibição virtual através do aplicativo Mostra Play e nas plataformas digitais de dois parceiros, Sesc Digital e Itaú Cultural Play. Os ingressos para as sessões remotas serão vendidos por R$ 12 e poderão ser utlizados por três dias após a aquisição (e/ou 24 horas após o primeiro acesso).

O personagem Daniel, em "Deserto Particular"
O personagem Daniel, em “Deserto Particular”

A princípio, a sinopse de Deserto Particular não parece especialmente atrativa ou original. Daniel (Antonio Saboia) é um policial curitibano em crise, que foi afastado da função e enfrenta um processo administrativo na corporação policial. Paralelamente, cuida do pai (ex-sargento) de saúde mental deteriorada e se relaciona via aplicativo de namoro com Sara, que mora no interior da Bahia. Obcecado por Sara e pelo fato de ela ter interrompido repentinamente a comunicação, Daniel decide partir de carro para procurá-la, indo até o triângulo interiorano formado pelas cidades baianas de Sobradinho e Juazeiro e a pernambucana Petrolina, divididas pelo Rio São Francisco. Sua busca lança a história ao manjado formato de road movie, num roteiro bem conhecido pelo cineasta, que nasceu no interior baiano (em Mairi) e é radicado em Curitiba (PR).

Atualmente com 42 anos, Muritiba dirigiu, entre outras produções, os filmes Para Minha Amada Morta (2015) e Ferrugem (2018) e a série televisiva Carcereiros (temporadas de 2019 e 2021). O cineasta conta que entrou pela primeira vez num cinema aos 18 anos – filho de caminhoneiro e dona de casa, sustentou-se como bilheteiro da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos e, durante sete anos, agente penitenciário, antes de entrar na faculdade de cinema da Universidade Estadual do Paraná.

Imprevisível como a vida do diretor, a história de Deserto Particular pode ser lida como banal apenas na superfície. Trata-se de um filme repleto de camadas e alçapões, que se move em sucessivas viradas narrativas e mantém uma atmosfera de constante tensão a partir da primeira grande virada. Navegando com desenvoltura por territórios geográficos e gêneros cinematográficos, é road movie e deixa de sê-lo. Parece um thriller, mas não é. Confunde como filme policial e/ou romântico, expondo relações de afeto mesmo entre personagens a princípio brutalizados (entre eles Thomás Aquino, de Bacurau, em primoroso personagem coadjuvante). Por fim, mas não menos importante, faz-se filme político sem precisar tocar em nenhum momento nos assuntos da política. Tentativas de descrição à parte, não é uma obra a ser descrita, mas sim assistida.

O júri da Academia Brasileira de Cinema, formado pelo produtor, diretor e roteirista Allan Deberton, o produtor e diretor Belisário Franca, o montador Felipe Lacerda, o crítico cinematográfico Luiz Zanin, a produtora Paula Barreto e a atriz e produtora Virginia Cavendish, revela notável coragem política na escolha desse filme para concorrer a concorrer ao Oscar de melhor filme internacional. Por inúmeros motivos (que demandariam spoilers e não serão discutidos aqui), Deserto Particular é um filme de franco combate à boçalidade, ao protofascismo e ao bolsonarismo instalados feito parasitas nas entranhas do Brasil. Poderia ser tolamente romântico, mas inventa algum gênero novo e híbrido, empenhado mais que tudo a afrontar a tão falada “banalidade do mal” (ou da mediocridade, um termo que talvez coubesse melhor).

Sua mera existência é motivo de espanto num contexto de brutalização total do Brasil e de tantas adversidades no caminho, mas a profundidade com que o filme elege e trata suas questões é, por si, uma demonstração de maleabilidade, vigor e excelência da cultura nacional frente aos agentes infecciosos que querem carcomê-la.

O sol

Os personagens de "Sol" olham o rio São Francisco
Pertencentes a três gerações diferentes, os personagens de “Sol” olham para o rio São Francisco

Deserto Particular não está sozinho na tarefa dura de resistir (e revidar) às agressões ininterruptas no contexto da arte, da cultura, do cinema, da 45ª Mostra. Todos realizados no país entre os espinhosos anos de 2020 e 2021, os 33 filmes na chamada Mostra Brasil apontam para uma safra potente de produções, temas e abordagens. A diversidade é enorme, entre estreias dos já estabelecidos Laís Bodanzky, Karim AïnouzPaulo CaldasJoel Zito Araújo José Eduardo Belmonte e filmes de novos diretores como Adilson MendesAlex Carvalho, Amadeo CanônicoBeto MarquezCaco CioclerCarla Dauden, Celia Catunda e Kiko MistrorigoCesar Cabral, Claudio BorrelliDucca RiosÉmerson MaranhãoGabriel di GiacomoLuís Antônio IgrejaMadiano MarchetiMarcelo Sebá, Sandra AlvesThais Fujinaga e Thiago Cóstackz.

O panorama de documentários inclui entre seus temas a covid-19, a Copa do Mundo de 2014, a trajetória do cineasta Ruy Guerra, a história do circo no Brasil, nossas origens indígenas (A Terra de Frente, dirigido por Thiago Cóstackz, ativista LGBTQIA+ e indígena potiguara ibirapi), a atriz Leila Diniz (Já Que Ninguém Me Tira pra Dançar, de Ana Maria Magalhães), a transexualidade e o coronel torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra (Memória Sufocada, de Gabriel di Giacomo).

Outro destaque brasileiro é Sol, segundo longa-metragem de ficção de Lô Politi, diretora de Jonas (2015) e do documentário Alvorada (2021, filmado com Anna Muylaert durante o processo de deposição da presidenta Dilma Rousseff). Sol guarda semelhanças com Deserto Particular, a começar pelo fato de que, para acontecer, ambos precisam cruzar (de balsa) o Rio São Francisco. A figura paterna é determinante nos dois filmes, e nos dois casos é espelhada em homens idosos que estão se ausentando de suas próprias consciências.

Em Sol, Théo (Rômulo Braga) é um homem de classe alta que vive em Salvador, está recém-separado e tenta aprofundar a relação com Duda (Malu Landim), a filha skatista de 10 anos. A história se desenrola a partir da notícia de que Theodoro (Everaldo Pontes), o pai que o abandonou na primeira infância e por quem Théo nutre grande rancor, está prestes a morrer e precisa do socorro do filho. O road movie, aqui, é rumo ao sertão baiano, a uma cidade não nomeada, onde a casa empobrecida do velho Theodoro à margem do São Francisco foi vendida e será demolida por uma incorporadora voraz à maneira daquela de Aquarius.

Everaldo Pontes é Theodoro pai em "Sol"
Everaldo Pontes é Theodoro pai em “Sol”

Relutante e contrariado, Théo carrega a filha na dolorosa volta à terra natal, e ela assumirá o papel de fazer a ponte entre dois homens que não se comunicam. No pano de fundo, vê-se a batalha campal entre passado e futuro nos interiores nordestinos: há seca, mas a água é abundante no rio e nos caminhões-pipa. A diretora não parece imune aos seculares preconceitos antinordestinos gerados no Sudeste – num laivo de grosseria em meio a cenas de grande delicadeza, Théo xinga de “podre” a cidade do pai (que deve ser dele também).

Entre as sutilezas que complicam a relação já complicada entre os dois theodoros, há o dado excêntrico de que ambos fazem desenhos – Theodoro pai é artista, escultor. O sol que dá nome ao filme remete talvez ao astro que brilha ao espelho do rio São Francisco, talvez ao patriarca em decomposição – e vai além desses domínios, como personagem ausente, mas ao mesmo tempo sempre presente atuante. As figuras femininas (entre elas a sempre excelente Luciana Souza) alicerçam e sustentam a ação, mas Lô Politi investiga sobretudo a condição masculina em Sol. Segundo a contabilidade da 45ª Mostra, 80 dos 264 filmes selecionados neste ano têm mulheres na direção. Na Mostra Brasil, elas são nove.

As transversais

"Transversais", de Émerson Maranhão
A professora Érikah Alcântara em “Transversais” – foto Juno Braga e Linga Acacio

Outro filme protagonizado pelo Nordeste na 45ª Mostra é Transversais, do alagoano Émerson Maranhão, alagoano interiorano radicado no Ceará, onde moram também os personagens do filme. Na capital Fortaleza e nas interioranas Quixeramobim e Pacatuba, Maranhão encontra as cinco personagens que retrata no formato de documentário. Dois são transexuais masculinos (Caio José Batista e Kaio Lemos), duas são transexuais femininas (Érikah Alcântara e Samilla Aires) e uma quinta (Mara Beatriz) é mãe de uma adolescente trans.

Quem primeiro deu celebridade a esse documentário foi o presidente da República, em pessoa. “Conseguimos abortar essa missão”, ele afirmou em 2019 em uma de suas lives, referindo-se à temática de Transversais e ao veto de financiamento público que determinou à Ancine para essa e outras três produções de temática LGBTQIA+ candidatas a um edital no âmbito federal.

Tentativas de censura à parte, o filme existe e retrata um cenário contrário ao pretendido pelo governo, de conquista de cidadania e avanços, mais que de repressão ou discriminação. Uma das personagens leciona na rede pública estadual e fala do passado como aluno e do presente como professora: “As pessoas me xingavam na escola e ninguém fazia nada. Eu não permito que aconteça o mesmo com meus alunos”.

Entre as focalizadas, o rol de profissões é diverso e por vezes múltiplo: há professor, pedagoga, enfermeiro, jornalista, antropólogo, diretora de escola, pai de santo, servidora pública, pesquisador acadêmico. Na maioria dos casos, relatam histórias de aceitação pelas famílias e no ambiente profissional. A mãe e o pai da adolescente Lara dão depoimentos emocionados de pleno apoio a ela, inclusive enfrentando preconceitos familiares e escolares. Beatriz participa do grupo Mães pela Diversidade e se orgulha da palavra de ordem levada à parada LGBTQIA+ de Fortaleza: “Tire seu preconceito do caminho que nós vamos passar com nosso amor”. O pai agradece à filha: “Ela me deu essa força, eu não era de militar”. Mesmo que o maquinista tente engatar a marcha à ré, a locomotiva da história segue em frente, para lugares ainda não visitados.

Erikah Alcântara em "Transversais"

Kaio Lemos em "Transversais"
Em “Transversais”, funcionária pública e pai e santo: Samilla Aires e Kaio Lemos – fotos Juno Braga e Linga Acacio

Os urubus

Para cá do Nordeste, outros cidadãos geralmente marginalizados pela sociedade são os protagonistas de Urubus, longa-metragem ficcional de estreia do paranaense Claudio Borrelli que também debuta na 45ª Mostra de São Paulo. A história é inspirada em fatos reais que impactaram o circuito brasileiro das artes em 2008, durante a 28ª Bienal de São Paulo: celebrizada como a “Bienal do Vazio”,  a mostra foi ocupada por um grupo de jovens periféricos que picharam o andar conceitualmente vazio, precipitando um grande debate sobre se pichação é ou não é arte.

O pichador Trinchas lidera a ação na Bienal de São Paulo
O pichador Trinchas lidera o levante na 28ª Bienal de São Paulo

Um dos roteiristas de Urubus é o pichador e artista plástico Djan Ivson, conhecido como Cripta Djan, integrante de fato do grupo que há 13 anos pichou com frases como “abaixo a ditadura” o prédio projetado por Oscar Niemeyer no Parque Ibirapuera. Ele parece inspirar o protagonista Trinchas (Gustavo Garcez), líder do levante concretizado por seu grupo de pichadores. A eles se integra a jovem Valéria (Bella Camero), uma “pat” (nos dizeres dos rapazes) que se aproxima para fazer um trabalho de faculdade sobre pichação e inicia um romance com Trinchas.

Na ficção, o grupo se autodenomina Urubus, um nome que se relaciona à Bienal seguinte, a 29ª, que convidou o grupo para participar oficialmente da exposição, numa tentativa não totalmente eficaz de integrar o pixo às artes socialmente aceitas. Uma obra de Nuno Ramos, chamada Bandeira Branca, causava controvérsia por aprisionar três urubus vivos em seu interior. O choque entre a arte institucionalizada e a arte das ruas – entre o branco e o preto – se deu mais uma vez: um dos integrantes do grupo que expunha na Bienal, chamado Pixação SP, imprimiu a frase “liberte os urubu” numa das esculturas da obra de Ramos.

Urubus não decifra muito dos mecanismos internos do mundo da pichação, mas o que revela é suficiente para tirar o fôlego e causar vertigem, em cenas de escaladas pelo lado de fora de edifícios altos e pichações feitas com os artistas dependurados de cabeça para baixo pelas mãos dos companheiros. O choque (ou polarização, para usar termo corrente) entre mundos opostos é contínuo e brutal. O que a cobertura midiática classifica como “vandalismo”, “violência” ou “agressão”, os pichadores chamam de “anarquia”, “protesto”, “ódio”, “revolta”. A câmera percorre com intimidade as ruas e calçadões do centro da cidade, mas também a comunidade periférica de Paraisópolis. Em ritmo de rap, a trilha sonora chama atenção para a “caligrafia refinada” inventada pelos “ninja da escalada”, mas a trilha que acompanha as evoluções dos pichadores é composta de óperas e peças sacras de Giacomo Puccini, Gregorio Allegri e Wolfgang Amadeus Mozart. A provocação central de Borrelli atravessa o filme, através da proposição “arte como crime, crime como arte”. É polarização o nome da coisa, ou está tudo virado ao avesso no Brasil empenhado a odiar a arte e os artistas que amam o Brasil?

Urubus
O logotipo-arte do grupo protagonista de “Urubus”

Este texto focaliza apenas quatro das produções brasileiras que resistem e chegam à 45ª Mostra de São Paulo, mesmo com o furacão destruidor passando em sentido contrário. A programação completa abriga 29 produções latino-americanas (de Argentina, Bolívia, Colômbia, Costa Rica, Equador, México, Peru e Uruguai) e roda todos os continentes do planeta com filmes de Afeganistão, África do Sul, Alemanha, Austrália, Bangladesh, Bélgica, Bulgária, Canadá, Cazaquistão, China, Coreia do Sul, Croácia, Egito, Eslovênia, Espanha, Estados Unidos, França, Geórgia, Grécia, Holanda, Indonésia, Irã, Israel, Islândia, Itália, Japão, Kosovo, Líbano, Malta, Macedônia do Norte, Noruega, Polônia, Portugal, Quirguistão, Reino Unido, República Tcheca, Romênia, Rússia, Suécia, Suíça, Taiwan, Tunísia e Turquia.

 

45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. De 21 de setembro a 3 de outubro, em cinemas e espaços paulistanos e no aplicativo Mostra Play. Ingressos de gratuitos a R$ 30. Programação completa no site da 45ª Mostra.

Deserto ParticularDe Aly Muritiba. Brasil, 2021, 120 min. Dia 23, às 20h45, no CineSesc. Dia 24, às 15h50, no Petra Belas Artes. Dia 30, 13h30, no Espaço Itaú.

SolDe Lô Politi. Brasil, 2021, 110 min. Dia 27, às 20h30; dia 28, às 14h; dia 30, às 13h30, no Espaço Itaú.

UrubusDe Claudio Borrelli. Brasil, 2021, 113 min. Dia 27, às 16h, no CCJ Ruth Cardoso. Dia 7, às 19h30, no Vão Livre do Masp. Dia 31, às 15h45, no Espaço Itaú. Dia 31, às 19h, no Circuito Spcine – CFC Cidade Tiradentes. Sessões virtuais pelas plataformas Mostra PlayItaú Cultural Play (que exibirá gratuitamente os filmes Antígona 442 A.C., de Maurício Frias, O Melhor Lugar do Mundo É Agora, de Caco Ciocler, Meu Tio José, de Ducca Rios, O Circo Voltou, de Paulo Caldas, Memória Sufocada, de Gabriel di Giacomo, Tarsilinha, de Celia Catunda e Kiko Mistrorigo, e SARS-CoV-2 – O Tempo da Pandemia, de Eduardo Escorel e Lauro Escorel) e Sesc Digital (que mostrará 19 títulos grátis).

Transversais. De Émerson Maranhão. Brasil, 2021, 85 min. Dia 21, às 20h45, no Espaço Itaú. Dia 22, às 19h, no Circuito Spcine Paulo Emílio – CCSP. Ingressos para todos os filmes no site da 45ª Mostra ou no aplicativo Mostra Play.

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