O último gol de placa de Sérgio Sant’Anna

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O escritor Sérgio Sant'Anna. Retrato: Chico Cerchiaro
O escritor Sérgio Sant'Anna. Retrato: Chico Cerchiaro

Sérgio Sant’Anna completaria 80 anos no próximo 30 de outubro e dedicou mais de 50 anos de sua vida à literatura, sendo reconhecido como um dos maiores ficcionistas brasileiros em qualquer tempo. Embora mais reconhecido como contista, também escreveu romances, novelas, peças de teatro e ensaios, tendo tido sua obra também adaptada ao cinema.

É caso raro de autor que em tão longeva carreira desconheceu pontos baixos em se tratando de criatividade. Apesar de algumas obsessões – sexo, morte, futebol, entre outras –, não era repetitivo, invariavelmente abordava os mesmos assuntos com originalidade e continuou escrevendo até ter sua vida abreviada pela covid-19. Faleceu no Rio de Janeiro natal, em 10 de maio do ano passado.

A Dama de Branco, seu último livro, organizado e apresentado por Gustavo Pacheco, leitor convertido em amigo nos últimos anos da vida de Serjão, como os mais íntimos chamavam o autor, reúne os últimos escritos publicados por ele em vida, além de inéditos encontrados em arquivos de seu computador – destaque para a novela “Carta Marcada”, que fecha o volume e funciona como uma espécie de carta de despedida a uma legião de leitores de gerações distintas.

Pacheco, com André Nigri, organizou também o volume O Conto Não Existe (Companhia Editora de Pernambuco, 2021, 228 pág.), que reúne dez ensaios publicados por Sérgio Sant’Anna na imprensa – desde o Suplemento Literário do Minas Gerais, quando era autor estreante, de que foi colaborador contumaz, até a Folha de S. Paulo e o Jornal do Brasil – e dez entrevistas concedidas pelo escritor a jornalistas e veículos diversos.

O par de obras dá exata dimensão da centralidade da literatura na vida de Sant’Anna, que em nome dela não poupava sequer a si próprio: não raro os personagens são seus alter-ego, e ele nunca se eximiu de comentar a política brasileira em seu fazer literário, fosse na ditadura instaurada em 1964, sob cuja égide iniciou sua trajetória, fosse no neofascismo tupiniquim que se retroalimenta com a ascensão de Jair Bolsonaro ao cargo máximo da República.

O conto-título do volume recém-lançado pela Companhia das Letras foi o último texto publicado em vida por Sérgio Sant’Anna – fora suas contundentes manifestações em redes sociais.

Quem julgar as publicações oportunistas ou “raspa de tacho” engana-se redondamente. “É importante dizer que todas as narrativas que ele publicou na imprensa (e mais tarde na internet) desde meados da década de 1970 foram depois incluídas em seus livros, praticamente sem mudanças em relação à versão original”, salienta Gustavo Pacheco na apresentação de A Dama de Branco.

As narrativas – expressão de que acabamos pegando certo ranço graças a senadores bolsonaristas na CPI da pandemia, mas que Sérgio Sant’Anna preferia a contos, pela liberdade de tamanho que ele as julgava permitir – do volume estão à altura das incluídas em O Anjo Noturno (2017), O Conto Zero (2016), O Homem-Mulher (2014) e Páginas sem Glória (2012), para citar apenas suas obras-primas mais recentes.

Ao lado de O Conto Não Existe, A Dama de Branco compõe painel panorâmico que ajuda os leitores mais atenciosos a realizar o sonho de entrar na cabeça de um autor de sua admiração.

“Em abril de 2020, ele escreveu em seu perfil numa rede social: ‘Não quero assustar ninguém, mas acho a peste que nos assola simplesmente aterrorizante. Não encontro outro modo de reagir senão escrevendo’. No mês seguinte, a peste que nos assola interrompeu a vida e a obra de um escritor obcecado pelo seu ofício e que, depois de meio século de carreira, continuava em pleno domínio de seus poderes criadores”, também anota Gustavo Pacheco na apresentação.

Ainda não era hora de Sérgio Sant’Anna pendurar as chuteiras – a metáfora possível é ter sido expulso por um juiz desonesto quando a bola que havia acabado de chutar ainda percorria sua trajetória até um gol de placa.

A dama de branco. Capa. Reprodução
A dama de branco. Capa. Reprodução
A Dama de Branco. De Sérgio Sant’Anna. Companhia das Letras, 2021, 188 pág. Leia um trecho.
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