O musical Bertoleza, da Gargarejo Cia Teatral, é um sopro de sofisticação e inteligência em um território marcado por grandes oscilações de qualidade cênica. Muitos musicais, no Brasil, são uma espécie de franchising de montagens bem-sucedidas no exterior, sobretudo na Broadway, ou simplesmente parecem não saber o que dizer no palco. Bertoleza consegue fugir desses dois extremos.
Com adaptação, direção e músicas de Anderson Claudir, Bertoleza subverte a história de um clássico da literatura brasileira, O Cortiço, de Aluísio Azevedo. O drama com generosas pinceladas naturalistas se faz presente, mas agora a partir do olhar da escrava Bertoleza. Ela é a companheira do protagonista original, o português João Romão, o dono do cortiço, da taverna e de uma pedreira. A partir da promessa de formarem um casal, e ela conquistar a alforria, os dois trabalham obstinadamente – ela mais do que ele. Tudo vai bem até que a ambição fala mais alto para o comerciante, e Bertoleza sofre uma traição e tem um fim trágico.
Escrito em 1890, O Cortiço tem a perspectiva masculina, algo que a Gargarejo Cia Teatral queria evitar. Cento e trinta anos depois, Bertoleza surge para mostrar o desfecho dessa história a partir do olhar feminino e de um elenco formado majoritariamente por atores negros. Há, nisso, uma reparação histórica. Mais do que reinventar uma narrativa, a dramaturgista Le Tícia Conde propõe que a escrava protagonista represente também outras tantas vozes femininas sufocadas, marginalizadas ou sequestradas de seu papel histórico. Bertoleza é Dandara, Marielle Franco, Maria Firmina dos Reis (a primeira romancista brasileira), Carolina Maria de Jesus e Antonieta de Barros (defensora da emancipação feminina).
A direção musical é de Eric Jorge, e coube a Lu Miranda, o papel de Bertoleza. Com poucas cenas não-cantadas, o musical valoriza as boas vozes do elenco, como as de Taciana Bastos (Zulmira) e Bruno Silvério (João Romão), e as dos integrantes do coro. A todo tempo, esse coro surge como uma consciência crítica para Bertoleza, e também para a plateia. Tão logo começa o espetáculo, os artistas rápida e repentinamente se aproximam aos pés do público, deixando claro que a montagem veio para incomodar os racismos que persistem e rondam a sociedade brasileira.
Bertoleza tem cenografia e figurino enxutos (Dan Oliveira), sem pirotecnia, mas é eficiente em manter o foco nas apresentações musicais e nessa história calcada na lógica racista que resiste ao tempo.
Bertoleza. Com a Gargarejo Cia Teatral. No Sesc Belenzinho, sextas-feiras e sábados, às 21h30; domingo, às 18h30. Até 1º de março. Ingressos a 30 reais.
Que notícia linda essa matéria me trouxe! Parabenizo a cada um envolvido com tal obra. Como gostaria de apreciar esse musical, turma. Quem sabe hora dessas vocês colem aqui nesse cerrado de meu Deus e nos agraciar com tal Expetaculo.🥰😘
Dois sentimentos ao ler, aliás três: tristeza por não estar aí para assistir , alegria por ver que a crítica social está se fazendo presente e a gostosura que é ler a forma de escrever do Eduardo.