O artista da inundação

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Clemencir Donizete
A inundação que cobriu a cidade de São Luiz do Paraitinga há 10 anos na pintura de Clemencir

Em 2010, aos 30 anos de idade, com seu caminhão, Clemencir Donizete passou quatro dias e quatro noites trabalhando em resgates na inundada São Luiz do Paraitinga (a 176 km de São Paulo, no Alto Vale do Paraíba). Na véspera do ano novo de 2010, o rio Paraitinga subira até 13 metros em sua mais trágica inundação em um século, cobrindo toda a cidade, derrubando duas de suas quatro igrejas seculares, arrastando casarões, árvores e animais. Ao volante do Chevrolet basculante, Clemencir buscava içar móveis, gente, cachorros, galinhas, cavalos, porcos e vacas que eram tirados das águas pelos botes. Quando se via na parte mais alta do Vale, parava para olhar sua cidade natal coberta pelas águas. Alguns dias depois, passou a pintar as cenas que tinha presenciado.

Pintor naif, autodidata, ele chama a pintura de “hobbynho”. Além dos temas da paisagem e da memória, também pinta as lendas típicas dos interiores paulistas, como o Saci Pererê, Maria Angu, Cuca, João Paulino. Nunca ouviu falar em Guignard, Volpi, Di Cavalcanti. Nem de Heitor dos Prazeres ou José Antonio da Silva. Clemencir chegou um dia a alimentar o sonho de viver somente da sua pintura, mas nem os conterrâneos nem os visitantes quiseram pagar pelos quadros algum preço que fizesse sentido, e ele agora só pinta quando não está na estrada dirigindo o caminhão.

A enchente de 10 anos atrás destruiu a cidade de São Luiz do Paraitinga, causando prejuízos estimados em R$ 100 milhões. Sem energia elétrica e água potável, isolada (a rodovia Oswaldo Cruz foi interditada), em estado de calamidade pública. O Ministério da Cultura e o BNDES agiram rápido, colocaram o Iphan em ação e liberaram R$ 10 milhões para as obras de escoramento de imóveis, limpeza dos terrenos, restauro de santos e inventário de referências culturais. O governo do Estado liberou R$ 17 milhões e colocou seu órgão do Patrimônio, o Condephaat, para trabalhar no plano de reerguimento. A Igreja das Mercês e a igreja do Rosário foram restauradas, a Igreja Matriz de São Luiz de Tolosa foi reconstruída. No mesmo mês de sua tragédia, a cidade de 10 mil habitantes foi tombada como Patrimônio Cultural nacional, proteção que englobou 450 imóveis.

A mãe de Clemencir, Fátima, pilota o famoso Bar do Maurício no Mercado Municipal de São Luiz, às margens do Rio. Ela lembra que, quando a água começou a chegar aos joelhos, ela e o marido tiraram as bebidas dos armários e colocaram as caixas no telhado. “Se a gente tivesse deixado as garrafas irem com o caminhão, não teríamos perdido tudo”, conta, ainda lamentando o desacerto logístico daquela noite. Maurício Donizete mostra o lugar, no alto do telhado, onde a água depositou o balcão frigorífico de seu bar, hoje milagrosamente de volta ao lugar original (não gela mais as bebidas e os refrigerantes, mas lhes serve de armário). O casal fez das paredes do seu bar uma espécie de memorial da inundação, com fotografias, retratos e as pinturas de Clemencir, seu filho, único artista a registrar em seu trabalho a desolação daqueles dias.

O trabalho de Clemencir, apesar de tratar da enchente, não é melancólico nem desesperançado. Pontilhado com tons fortes,cores quentes, parece atestar sempre a tenacidade de um minúsculo habitante frente à prodigiosidade da natureza. “Não sei explicar o que eu sentia, porque foi muita correria”, conta, laconicamente, sobre a experiência. O pintor tem uma habilidade que sugere treinamento, persistência; acentua a profundidade, tem certo senso intuitivo de perspectiva e demonstra até alguma veleidade arquitetônica (como no quadro em que retrata o Bar do Maurício Donizete, onde cresceu).

“Desde criança eu gosto de pintar”, conta Clemencir. Como está o tempo todo na estrada, o pai e a mãe fazem o serviço de galeristas eventuais. Uma vez, uma estrangeira, europeia, quis comprar um dos quadros. Escolheu aquele no qual Clemencir tinha pintado as quatro igrejas da cidade e levou, ele não sabe de que País era. “Você gostou dele, vê quanto acha que vale”, diz Clemencir, mostrando como faz a avaliação de preços.

Em 2018, uma bióloga da Unicamp, Juliana Farinaci, realizou um estudo tratando do que chamou de “resiliência socioecológica” da cidade de São Luiz, um trabalho que a levou à conclusão de que as festanças locais (a festa do Divino, o Carnaval, as paradas de rua) foram imprescindíveis para estimular o sentido coletivo de reação e reconstrução. A cultura salvou São Luiz do Paraitinga, e segue salvando, assim como os pasteis de angu, os pipoqueiros da praça, o café batizado após o conto de Mario de Andrade (Será o Benedito?) e o ritmo muito particular, muito próximo da gentileza. No domingo, durante a missa, dois cães dormiam sem serem molestados no saguão da Igreja Matriz, a mesma que era pura ruína há 10 anos. São Luiz do Paraitinga primeiro procurou pelo sino. Assim que encontrou, a cidade decidiu que era possível refazer sua História. Assim foi.

 

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