foto: nem de tal

O napolitano Gioacchino, 40 anos, tem uma cadela velha chamada Kelly. Está cega e tem medo do vento. Presos por uma fidelidade antiga, ele a arrasta pelo convés pacientemente, toda manhã. “Acho que ela não passa dessa primavera”, me diz Gioacchino, virando o rosto para longe da cachorra, como se tivesse medo que ela ouvisse. E continua sua caminhada com o radinho colado ao ouvido, tentando ouvir o resultado do jogo do Nápoli.
No sexto dia, Ancelmo, 70 anos, um milanês mais reservado, de poucas palavras, surpreende no salão com uma seleção musical que inclui João e Astrud Gilberto, Chico, Tom e Elis. Assume o posto de disc-jóquei com galhardia.
No oitavo dia, o comissário de bordo troca as fitas de vídeo do programa após o jantar e de repente surge um pornô italiano na telinha. As senhoras – a idade média do público feminino fica ali nos 70 anos – começam a se retirar vagarosamente, praguejando baixinho. O comandante, vermelho, resmunga palavras incompreensíveis e ordena o imediato fim da exibição.
Fica um silêncio mortal. O comandante, para desanuviar, vem ter com os brasileiros. Conta que sua companhia tem planos de cortar o navio para aumentar 98 metros no seu comprimento.
“Nosso armador gosta de cortar navios ao meio”, ri, desnorteado.
Na altura do Cabo Blanc, na Mauritânia, o vento já está frio demais para ficar lá fora e os lábios racham com facilidade.
A entrada no estreito de Gibraltar é de madrugada, mas, alertados, estamos todos acordados. Os marinheiros chamam o Mediterrâneo de Mare Nostrum. Todos já usam, nessa altura, um gorrinho de lã siciliana, e se preparam para a sempre dura travessia do Golfo dos Leões, na França.
Ali, a última tempestade deixou mastros de ferro maciço tortos na proa. Ondas de 20 metros jogavam água até lá no último andar, na cabine de comando.
Mas o contra-mestre Anesse não gosta quando se lhe perguntam da possibilidade de tempestade pela frente.
“Non si parla di tempesta al mare!”, resmunga.
Os navios são modernos, mas não dispensam uma velha bússola magnética sobre a ponte e um sextante, para um caso de pane nos instrumentos.
Os olhos, que se habituaram à paisagem uniforme de água e água e eventualmente alguns peixes-voadores, agradecem ao cardume de golfinhos seguindo o navio. E aos portos que brilham na madrugada.
Agora, uma cidade toda branca surge na costa espanhola.
No 12º dia, começa a surgir ao longe a ilha de Capraia; à esquerda, a Córsega.

abril de 1990

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Jotabê Medeiros, paraibano de Sumé, é repórter de jornalismo cultural desde 1986 e escritor, autor de Belchior - Apenas um Rapaz Latino-Americano (Todavia, 2017), Raul Seixas - Não diga que a canção está perdida (Todavia, 2019) e Roberto Carlos - Por isso essa voz tamanha (Todavia, 2021)

1 COMENTÁRIO

  1. Nem de Tal esteve por aqui. Veio ver a netinha. Almoçamos um bom tutu a mineira na companhia de seus filhos e do Manuel. Levei-o para ver a exposição da Editora Abril na FAAP. Que exposição mal feita! Disse ele.Me lembrei de seu texto sobre a curadoria. As fotos estão no contra luz. Faltava dizer que o rei estava nú. Nem sequer tomamos um copo de espumante mas encontramos muitos amigos fotógrafos. Nem voltou para o Pouso da Chica, em diamantina

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