e aqui, a versão “carta capital” das reflexões sobre maria alcina. saiu na edição 536, de 11 de março de 2009. e um leitor da revista reclamou, com toda razão, de eu não ter mencionado nenhuma vez a personalidade própria que alcina imprimiu a “kid cavaquinho”, de joão bosco e aldir blanc. registre-se então: com sua gravação, “kid cavaquinho” passou a ser mais alcina do que bosco, mais a mineira maria do que o mineiro joão. ao texto:

O QUE É QUE ALCINA TEM?
A cantora de “Fio Maravilha” volta apoiada por músicos da nova geração

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

“Quando eu me perdia, me perdia mesmo”, afirma a mulher de 59 anos que, quando moça de 23, conquistou uma multidão no Maracanãzinho, a bordo de Fio Maravilha. Maria Alcina fez-se conhecer pelo Brasil naquele 1972, quando a versão “black power” para o hino futebolístico de Jorge Ben (hoje, Ben Jor) venceu o VII Festival Internacional da Canção (FIC) no grito, grave e viril.

De lá para cá, a mineira nascida em Cataguases, em família pobre descendente de negros, índios e portugueses, seguiu errática pela música até reencontrar sucesso radiofônico nos anos 1980, agora como “a cantora do duplo sentido”, ao som chulo dos forrós É Mais Embaixo, Bacurinha e Prenda o Tadeu. Maria Alcina era do povo, de uma vez por todas. Na rota previsível das modas efêmeras, saiu das paradas tempos depois e deixou a carreira musical estacionada nalguma dobra do tempo.

Pois hoje Alcina vive mais uma pequena revolução interior, iniciada em 2003, quando lançou o disco Agora, em parceria com o grupo paulista de música eletrônica Bojo. A guinada confirma-se neste 2009 no álbum Maria Alcina Confete e Serpentina, editado, como o anterior, pela gravadora independente Outros Discos, de Maurício Bussab (do Bojo).

Nesses dois trabalhos, a cantora que abanava o “calor na bacurinha” soa não só moderna, como sofisticada. E coloca temas elegantes de Paulinho da Viola (Roendo as Unhas), Sérgio Sampaio (Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua), Tom Zé e Lô Borges (Açúcar Sugar) em contato com novas safras de músicos, em composições e parcerias com Wado, Ronei Jorge, Numismata, Roseli Martins, Tatá Aeroplano, Moisés Santana.

“Esses meninos têm 20 e poucos anos e eu, só de carreira, tenho 37”, espanta-se. “Mas eles dizem que me ouviam quando eram pequenos.” Ouviam, portanto, não só a Maria Alcina quase “chique” de Fio Maravilha, mas a quase “brega” de Bacurinha e Prenda o Tadeu.

“Tem tanta gente chegando. Por que dizem que não tem? Não sei por quê. Ou até sei, mas não quero falar…”, deixa no ar essa artista que gosta de sublinhar repetidas vezes sua condição de “muito ignorante de estudo”, mas de aguçada intuição.

Quando diz que se perdia e se perdeu vezes seguidas, remete-se ao fato de ter conquistado lugares ao sol na marra, sem apoio palpável de ninguém. “Nunca fui uma menina protegida, muito pelo contrário. Saí de casa porque tinha aquelas desavenças de comportamento, o pai exigente, a mãe exigente. Eles querem uma coisa e você pula para outra, tem aquelas coisas de…”, interrompe a frase no ar e ri, e suspende a fala. “Sou operária, venho do operariado. Cantava jovem guarda e trabalhava em fábrica. Foi Gilberto Gil quem me deu o tom, quando cantava olha, lá vai passando a procissão/ se arrastando como cobra pelo chão.

Alcina lembra que, antes do berro de Fio Maravilha, houve a máquina de escrever. Ela aportou no Rio de Janeiro, no início dos anos 1970, instigada pelo talentoso compositor, arranjador e pianista Antonio Adolfo, autor de sucessos pop como Sá Marina (lançada por Wilson Simonal) e Teletema (com Evinha).

Futuro pioneiro na gravação independente de discos no Brasil, Adolfo vencera o tumultuado FIC de 1970 com BR-3, interpretada em tom de manifesto “black power” por Toni Tornado. Abriu a empresa Brazuca Produções, com o objetivo de construir a carreira musical de Tornado, afinal abortada entre episódios nebulosos de prisão pela ditadura, logo após a consagração no festival.

Foi na Brazuca que a mineira franzina encontrou abrigo, dois anos antes de virar ela própria vencedora de outro turbulento FIC, no qual o júri mais intelectual pendia para a concretista Cabeça, de Walter Franco, e o público (mas também a Globo) preferia Fio Maravilha.

“Antonio Adolfo me arrumou o emprego para que eu pudesse ficar no Rio. Tentei ser secretária, mas, quando começava a bater máquina, aquele som lembrava o quê? Lembrava música, ritmo. Eu era cantora, tinha ido ao Rio para cantar. Falei: ‘Prefiro servir cafezinho, varrer, lavar banheiro, mas ficar batucando aqui para lembrar que sou cantora, não vou’.”

Pelas brechas e com o apoio de Adolfo, agarrou a oportunidade de cantar na abertura dos shows de Tornado. E afinal estreou show-solo sob direção de Severino Filho, fundador do grupo vocal Os Cariocas. Dali pulou para a vitória no FIC e para o LP de estreia, produzido em 1973 pelo radialista Walter Silva (morto há poucos dias). Os arranjos agressivos, entre Carmen Miranda e tropicália, se distribuíam entre marchinhas carnavalescas (Alô, Alô, Como “Vaes” Você, Me Dá, Me Dá) e baiões (Paraíba, Mulher Rendeira). O sucesso foi maciço. E ela não segurou a barra.

“Se você segue o caminho de se tornar um ídolo, atendendo às expectativas do outro, isso sempre está na sua frente. Vi isso começar quando fiz muito sucesso com Fio Maravilha. E, por algum distúrbio meu (ri), acho que não seguro, não, sabe? Nunca segurei”, explica. E emenda com uma confissão: “Sempre estive na música, estive no Maracanãzinho, e estou até hoje, com muito medo. O medo do sucesso é algo que acontece, mesmo”.

Razões para temor não faltariam. A ditadura esteve de olho em Fio Maravilha desde o pontapé inicial. “Fazia assim com a mão e o microfone (gesticula), e para a censura eu estava sugerindo masturbação”, conta. Afirma que os embates não eram conscientes e alterna para recordações mais pessoais: “Eu era magrinha, barriga de tanquinho. Mas é que também tinha muita fome, né? A gente passava uns perrengues”.

Justifica com candura a afinidade com gerações mais jovens, enquanto outros artistas e críticos reclamam da inexistência de novos autores e canções: “Fui criada sem rádio. Tudo que eu tinha de ouvir para me formar como cantora e gente não ouvi por falta de oportunidade. Então, a vida inteira estou me formando, ouvindo. A música, para mim, sempre vai ser nova”.

Na segunda onda de sucesso, a malícia sexual lhe abriu as portas televisivas dos programas de Raul Gil, Bolinha e companhia. E tampouco essa barra ela parece ter segurado. “A gravadora queria continuar naquela do duplo sentido, e eu preferi pedir rescisão de contrato. Sabia que, se continuasse naquele caminho, eu ia acabar com a minha carreira. Às vezes é preferível não fazer que fazer qualquer coisa. Então fiquei solta, cabeça de bicho solto. Funciono como uma cabeça livre.”

Adiante, relativiza a autonomia do “bicho solto”: “A gente fica falando assim, mas vai ver tomei pé na bunda da gravadora mesmo”. Não esconde que passou anos sem conseguir contrato com gravadora qualquer. E sabe que, hoje, diante da derrocada da indústria do disco, isso tem mínima importância.

“Maurício colocou o novo disco primeiro na internet. Nem sei como funciona, continuo na era do cajado. Mas muita gente me diz que ouviu o CD, que viu matéria aqui e ali. O disco botou o bloco na rua sozinho. Eu digo, nossa, que maravilha, há quanto tempo não me sinto nessa situação.”

A mudança vira sua história ao avesso e resulta em discos elegantes que as gravadoras chamariam de anticomerciais. Sob esse prisma, a relação entre Alcina e a cantora “sacana” de outrora fica conflituosa. Conta com pesar do show recente em que uma mãe na plateia tapou os olhos da filha pequena enquanto ela cantava Bacurinha. Primeiro, se defende: “Isso ainda me espanta, me incomoda. Para mim, estou brincando, estou sendo criança ali. E aquela mãe faz o contrário com a criança, enquanto eu estou ali sem mãe e sendo aquela criança. É a mãe que pensa em maldade, ali, na fila do gargarejo, não a criança. Eu ainda recebo de frente aquele momento, porque isso é uma censura, né?”

Em seguida, busca a autocrítica: “Não pense que acho tudo levianamente interessante. Eu me preocupo. Na verdade, queria frear esse meu jeito (ri). Mas não tem jeito. É tão gostosa a brincadeira”.

Hoje, as tantas personagens que passaram por Maria Alcina convivem nela com certa harmonia. A afinidade profunda com Carmen Miranda a beneficia no ano do centenário da cantora. Alcina viaja o Brasil com show dedicado ao repertório daquela que é sua principal referência. A Bacurinha não arrefece nunca, seja junto ao povão, seja em festas “modernas” de paródia envergonhada, seja junto a jovens que não haviam nascido quando ela, anestesiada, beliscava a ditadura travestida de odalisca jogadora de futebol.

Como sempre fez intuitivamente em música, interpreta com simplicidade a reviravolta vivida e a harmonia entre as várias Marias Alcinas, de ontem e de hoje: “A idade vai chegando, a vida vai andando. E você começa a se encontrar de novo com aquilo que está fazendo”.

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Editor de FAROFAFÁ, jornalista e crítico musical desde 1995, autor de "Tropicalismo - Decadência Bonita do Samba" (Boitempo, 2000) e "Como Dois e Dois São Cinco - Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa)" (Boitempo, 2004)

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