brokeback mountain

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apenas algumas anotações interligadas, após ter assistido ao “milk” de gus van sant (de que gostei imensamente):

@ um dos detalhes que mais me emocionam é o fato de ser um filme cuidadoso em enobrecer a política. foi uma lufada de ar nos meus pulmões, que vivem intoxicados de jornalismo – ou melhor, de certo jornalismo praticado em “grandes” empresas de comunicação, as mais reacionárias e direitosas delas. refiro-me ao jornalismo, ou melhor, ao “jornalismo-entre-aspas” que criminaliza a política, só folcloriza a política, só utiliza a política como isca para vender “notícia” a uma sociedade também viciada em criminalização, folclorização, negativismo, olhar distorcido, catastrofismo.

@ refiro-me, cê tá me entendendo, ao “jornalismo” que chama democracia de ditadura e ditadura de “ditabranda” – e que, quando criticado por abuso verbal cometido, reage feito o moleque contrariado que tira a bola do jogo (“é minha!”), feito o imaturo que grita “você não pode falar mal de mim porque você é igual a mim, tão péssimo quanto eu”, que se defende atacando para desfocar o “perigo” de ter de se auto-examinar e autocriticar. sim, “eu” sou igual a “você” e “você” é igual a “mim” e a gente se espelha, mas e aí?, quem vai soltar a bola?, quem vai tomar a iniciativa de destravar o jogo e deixá-lo fluir? obviamente “eu”, e ninguém mais, se for para acontecer, se “eu” quiser de fato que aconteça.

@ mas, ops, o assunto aqui é “milk”, por que será que eu confundo e misturo uma coisa na outra?

@ ok, na embalagem “milk” pode ser hollywood convencional e tradicional (a trilha sonora pomposa eu achei chata de doer), mas que importa?, se é um filme que diz o que diz, conduzido por quem tem autoridade para fazê-lo? atrás da perfumaria, “milk” é um tapão na cara dos homossexuais, muito bem dado por gus van sant, um dos raríssimos homossexuais assumidos dentro da globo, quero dizer, de hollywood.

@ o tapão na cara dos gays é o que eu mais aprecio (e o que mais me incomoda) no filme. aquile enredo se desenlaçou na chamada “vida real” por volta de 1978, quando eu tinha 10 anos. há apenas 30 anos havia gente vertendo sangue, suor e lágrimas para conquistar coisas que hoje parecem banais, inerentes, “naturais”. para conquistar este futuro que temos agora, melhor, mas ainda medíocre demais, covarde demais. e hoje, o que fazemos para seguir aquela, er, linha evolutiva? muito pouco, nada, quase nada. quando muito uma parada gay por ano, e mesmo assim reclamando, reclamando, reclamando, reclamando, achando tudo chato, tudo errado.

@ tem gente que não faz nada pela política, ou contra a homofobia, ou contra o racismo, e aí faz sabe o quê? vira jornalista, ou “jornalista”. senta a bunda numa redação, e… reclama, reclama, reclama, reclama. reclama da política & da despolitização, da homofobia & da parada gay, do racismo & das cotas raciais, da tradicional música popular brasileira & das novas músicas populares brasileiras. outros tantos espelham e espalham o mesmo comportamento por suas respectivas profissões, famílias etc… mas e aí?, quem vai soltar a bola?, quem vai tomar a iniciativa de deixar o jogo fluir?

@ outro aspecto de que gosto muito no filme, e que tem a ver diretamente com o anterior, e que me faz lembrar de “brokeback mountain”, de ang lee, é o tratamento dado aos personagens não-homossexuais – quero dizer, aos personagens heterossexuais, homossexuais dentro do armário & adjacências. em geral, eles não são folclorizados, mas sim abordados em profundidade, janelinha aberta para seus conflitos, dramas, incoerências e fragilidades.

@ no duro (não no “brando”), “milk” nem é tão generoso assim com a personagem anita bryant, a cantora pop que, mãe de família e garota-propaganda de suco de laranja, vira feroz militante antigay. ela é um tantinho folcloriza no filme, mas isso aguçou minha curiosidade e me fez voltar correndo para casa e digitar um “anita bryant” no you tube para ver o que aparecia e saber mais sobre uma cantora de que nunca tinha ouvido falar. olha só uma das coisas que apareceram:

@ ainda que fosse mesmo um monstro (anita bryant ainda está viva, poderíamos até tentar saber quem ela é, quem é hoje esse wilson simonal da homofobia), ela se magoa e chora ao ser empastelada na cara por um militante gay. os “monstros” também choram.

@ onde quero chegar com esse comentário sobre filmes “gays” que via de regra não folclorizam “heterossexuais” (ou seja, que não fazem com eles o mesmo que eles fazem com a gente) é que de trás dessa relativa desvilanização podem emergir aqueles que são os principais responsáveis pela homofobia, e que portanto são os mais aptos para jogar a bola para cima e deixá-la flutuar livre, leve e solta pelo campo. não são os “malvados” maniqueístas que hollywood sempre gostou de expor nos filmes feito saltimbancos demoníacos virando cambotas de vilania. não. são (somos) os homossexuais, bissexuais, travestis, transexuais, pansexuais etc., os que permitem (permitimos) ser maltratados e zoados e humilhados em silêncio por aqueles que seguram a bola feito moleques, “é minha”. o tapão na cara. bem dado. com luva de pelica. pelo van sant.

@ e daí (o filme é explícito nisto) emerge a evidência máxima, a mais importante, de que não existem vilões a não ser nos livros da carochinha e de que agredidos & agressores não são assim tãããão diferentes uns dos outros. sendo assim, se ao carinha do terreno baldio vizinho é suprimida uma liberdade, somos todos nós que ficamos sem liberdade. ficamos engaiolados nós, que somos negros, índios, mulheres, idosos, orientais, ciganos, muçulmanos, judeus etc. etc. etc. e que não lutamos, grupal & individualmente e para fora & para dentro de nós, pelas liberdades dos negros, índios, mulheres, idosos, orientais, ciganos, muçulmanos, judeus etc. etc. etc. – ou ela, a liberdade, é para todos. ou não é para ninguém.

@ (só voltando um minuto à política, que eu adoro. eu me lembrava muito do lula – e/ou do chávez, do evo, de toda esta quimérica tribo indígeno-governadora que temos hoje aqui nesta terra natal de índios – a cada vez que harvey milk perdia uma eleição e se reerguia para tentar de novo, e de novo, e de novo, até, pluft, se eleger como num passe de mágica, se me permite a ironia. tenho certeza de que não é acaso ou coincidência o fato narrado no filme, de que o judeu milk – o primeiro político eleito sob uma plataforma eleitoral explicitamente gay nos estados unidos da américa indígena do norte – contava com o apoio político de operários, trabalhadores, sindicalistas & outros bichos que rotineiramente costumamos interpretar como brucutus barbudos, machistas e homofóbicos. naquele microcosmo ali, a liberdade dos operários era a liberdade dos homossexuais.

@ e, retificando o resmungo ranzinza que reclamei acima: não é que fazemos pouco, muito pouco ou nada para desengaiolarmos. fazemos muito, muito, muito, muitíssimo – fazemos muitas vezes sem ter consciência de estar fazendo (e esse é o entorpecente ruim que ainda nos anestesia, a muitos de nós). mas fazemos.

@ será que é por toda essa rede subterrânea de afinidades que sean penn, um ator notoriamente tido como homofóbico, foi o eleito para interpretar harvey milk? o “agressor” se colocando na pele do “agredido”, para que, bola solta, o inverso também possa acontecer? que formidável, o sean penn.

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Editor de FAROFAFÁ, jornalista e crítico musical desde 1995, autor de "Tropicalismo - Decadência Bonita do Samba" (Boitempo, 2000) e "Como Dois e Dois São Cinco - Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa)" (Boitempo, 2004)

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